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A fronteira entre os conceitos de "bem de pequeno valor" e de "bem de valor insignificante", para aplicação do princípio da bagatela no crime de furto

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29/07/2010 às 07:52
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O direito penal brasileiro trabalha com dois conceitos próximos, porém distintos, para caracterizar o objeto de valor pouco representativo no crime de furto: "bem de pequeno valor" e "bem de valor insignificante", com soluções frontalmente opostas.

RESUMO

O direito penal brasileiro trabalha com dois conceitos próximos, porém distintos, para caracterizar o objeto de valor pouco representativo no crime de furto: "bem de pequeno valor" e "bem de valor insignificante". Tal distinção tem por consequência a opção por soluções frontalmente opostas, quais sejam, a descaracterização da tipicidade e a imposição de pena, ainda que reduzida. A grande dificuldade que se apresenta é que não há como se definir um critério puramente objetivo, baseado no valor da coisa, para distinguir as categorias. A correta definição só pode ser obtida no caso concreto, a partir da identificação de outros vetores ínsitos à conduta bagatelar. Nesse cenário revela-se imprescindível o estudo do princípio da insignificância e das principais questões que envolvem sua aplicação como forma de se conciliar a segurança jurídica com os princípios regentes do direito penal e assim tutelar de forma justa e adequada o direito fundamental da liberdade

Palavras-chave: Direito penal. Furto. Princípio da insignificância. Princípio da bagatela. Bem de pequeno valor. Bem de valor insignificante. Ninharia. Furto de insignificância. Furto de bagatela.


INTRODUÇÃO

O crime de furto está tipificado no artigo 155 do Código Penal Brasileiro. O parágrafo 2º do dispositivo prevê que, se o agente for primário e a coisa for de pequeno valor, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços ou aplicar somente uma multa. Tal situação recai sobre os chamados "bens de pequeno valor" e constitui causa de diminuição de pena prevista em razão da baixa ofensividade da conduta do agente somada a sua condição pessoal de não reincidente.

Por outro lado, o furto cujo objeto constitui "bem de valor insignificante" está acautelado pelo princípio da bagatela, cujo fundamento reside nas idéias de proporcionalidade, fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal. Desse modo, se sustenta que o sujeito que subtrai coisa de valor ínfimo sequer pratica crime, uma vez que a tipicidade da conduta deve ser desconsiderada por se tratar de gravame a bem jurídico que não acarreta uma adequada reprovabilidade social.

Conquanto o campo de atuação e as consequências derivadas da aplicação de ambas as figuras seja distinto - a primeira reduz a pena do sujeito que subtrai coisa de pequeno valor enquanto a segunda exclui da tutela penal o bem de valor insignificante – os limites para aplicação de uma ou outra são nebulosos e não se restringem a aspectos meramente patrimoniais. Nesse cenário, é comum a ocorrência de decisões que julgam casos análogos de maneira extremamente conflitante, o que traz grande prejuízo à segurança jurídica.

Assim, em uma sociedade em que a subtração de coisas alheias é conduta praticada de forma reiterada, estabelecer a fronteira entre o fato socialmente aceitável e aquele que merece reprimenda penal é tarefa de grande importância, visto que está em jogo a prática ou não de um crime e com ela as pesadas conseqüências impostas pelo direito penal.


DESENVOLVIMENTO

1.O CRIME DE FURTO

O crime de furto está tipificado no artigo 155 do Código Penal Brasileiro como "subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel"(1). A pena prevista para o delito é a "reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa"(2).

Para Guilherme de Souza Nucci, "furtar significa apoderar-se ou assenhorar-se de coisa pertencente a outrem, ou seja, tornar-se senhor ou dono daquilo que, juridicamente, não lhe pertence"(3). Coisa, por sua vez, é tudo aquilo que existe, podendo tratar-se de objetos inanimados ou de semoventes, sendo imprescindível que tenha, para seu dono ou possuidor, algum valor econômico. Alheia é toda coisa que pertence a outrem, seja a posse ou a propriedade e móvel é aquilo que se desloca de um lugar para outro, independentemente de eventual classificação diversa que o bem possa receber no direito civil(4).

O objeto material do delito é a coisa sujeita à subtração, que sofre a conduta criminosa. O objeto jurídico é o patrimônio do indivíduo, que pode ser constituído de coisas de sua propriedade ou posse, desde que legítimas(5).

O crime traz uma causa de aumento de um terço, para a hipótese de ser praticado durante o repouso noturno (§1º), além de quatro qualificadoras que alteram a pena para reclusão de dois a oito anos (§4º) e uma que estabelece o patamar de três a oito anos (§5º).

2.O FURTO DE COISA DE PEQUENO VALOR

O §2º do artigo 155 prescreve que "se o criminoso é primário, e é de pequeno valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a pena de reclusão pela de detenção, diminuí-la de um a dois terços, ou aplicar somente a pena de multa"(6). Conquanto essa figura seja comumente denominada de furto privilegiado, sua natureza jurídica é de causa de diminuição de pena, uma vez que não há fixação de novos patamares mínimo e máximo. Para Nucci, "poder-se-ia falar em privilégio em sentido amplo"(7).

Para fins de configuração do benefício, primário é o não reincidente, ou seja, aquele que não sofreu condenação por crime com trânsito em julgado nos cinco anos anteriores à prática do delito.

Conforme sustentado pela ampla maioria da doutrina, presentes ambas as circunstâncias (primariedade e pequeno valor da coisa), o magistrado está obrigado a conceder o privilégio(8). Assim, levando em consideração as finalidades atribuídas às penas, que devem ser necessárias e suficientes para a reprovação e a prevenção do crime, o juiz deverá escolher, entre os benefícios previstos, o que melhor se enquadre ao caso concreto(9).

Quanto à aplicação do privilégio às figuras qualificadas, em que se pese a polêmica existente em sede doutrinária e jurisprudencial, prevalece a posição de que não é possível. Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal, ao contrário do Superior Tribunal de Justiça, tem se posicionado pela incidência do benefício apenas nas hipóteses do furto simples (caput) ou do praticado durante o repouso noturno (§1º)(10).

2.1.A COISA DE PEQUENO VALOR

Conquanto a conceituação de coisa de pequeno valor não seja pacífica na doutrina e na jurisprudência, prevalece o entendimento de que é aquilo cuja perda pode ser suportada sem maiores dificuldade pela maioria das pessoas. "Ao rico - lembrava Magalhães Noronha - porque, talvez, nem perceberá sua falta; ao pobre porque, na sua penúria, de pouco lhe valerá"(11).

Sobre o assunto, ensina o professor Fernando Capez que

não se deve confundir o pequeno valor da coisa com o pequeno prejuízo sofrido pela vítima. Assim, a ausência de prejuízo em face de a vítima ter logrado apreender a res furtiva ou o pequeno prejuízo não autorizam o privilégio legal.

Do mesmo modo, a aferição do valor do bem não se dá em face da vítima, mas da sociedade. Assim, não se leva em conta o tamanho da lesão provocada no patrimônio do sujeito passivo no caso concreto, mas sim um montante concebido a partir da generalidade das pessoas. Dessa forma, a orientação majoritária nos Tribunais é a de que, para fins de configuração do crime de furto, coisa de pequeno valor é aquela que não ultrapassa um salário mínimo ao tempo da conduta.

3.A SUBTRAÇÃO DE COISA DE VALOR INSIGNIFICANTE

Diferentemente da coisa de pequeno valor, a coisa de valor insignificante é aquela que, por ser tão inexpressiva, sequer merece a proteção do direito penal. Tal circunstância se dá por força do princípio da insignificância ou da bagatela, que acautela as ações que, apesar de inicialmente abrangidas pelo tipo, constituem fatos tão pouco relevantes que dispensam a intervenção penal. Desse modo, aquele que subtrai coisa de valor insignificante não comete qualquer delito(12).

Embora no plano teórico essa distinção pareça simples, a definição do campo de incidência do princípio da insignificância é matéria tormentosa em sede jurisprudencial. Isso porque doutrina e jurisprudência são praticamente unânimes ao afirmar que o enquadramento de uma subtração como de bagatela não depende unicamente do valor da coisa subtraída.

Para ilustrar a situação, no ano de 2008, o Supremo Tribunal Federal deferiu pedido de habeas corpus fundado na insignificância da subtração de um violão avaliado em R$ 90,00 (noventa reais) (HC 94770 / RS)(13) e denegou a ordem em caso de furto de duas sinaleiras e uma antena de automóvel no valor de R$ 54,00 (cinquenta e quatro reais) (HC-AgR 93388 / RS)(14).

Sendo assim, torna-se clara a necessidade de aprofundar a análise do princípio da insignificância com vistas a uma melhor compreensão do objeto de estudo que ora se propõe.

3.1.O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

3.1.1.Origem

Segundo sustenta Diomar Ackel Filho, o princípio da insignificância já vigorava no direito romano consubstanciado no brocardo "minimis non curat praetor", pelo qual o pretor não cuidava de causas ou delitos de bagatela(15).

Ainda remotamente, Montesquieu afirmava que "quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas"(16). Beccaria, por sua vez, lembrava que "proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes não é prevenir os crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos"(17). Franz von Liszt, já no ano de 1903, foi ainda mais enfático ao afirmar que

a nossa legislação faz da pena, como meio de luta, um emprego excessivo. Se deveria refletir se não mereceria ser restaurado o antigo princípio mínima non curat praetor, ou como regra de direito processual (superamento do princípio da legalidade), ou como norma de direito substancial (isenção de pena pela insignificância da infração).(18)

Em que se pesem essas considerações, certo é que, em matéria penal, o princípio da insignificância, tal qual o conhecemos hoje, foi formulado por Claus Roxin no ano de 1964(19). Sua fundamentação parte do entendimento de que o fato punível não pode ser analisado unicamente à luz da lei, de modo literal. Os princípios de política criminal (exclusiva proteção de bens jurídicos, intervenção mínima, proporcionalidade, etc.) devem sempre ser utilizados quando da aplicação do Direito Penal. Ou seja, letra da "Lei é só o ponto de partida da construção do Direito"(20).

Para Roxin, uma conduta só pode ser sancionada se for absolutamente incompatível com uma convivência harmônica, livre e materialmente assegurada. Isso porque o Direito Penal moderno ocupa-se unicamente de fatos que tenham potencial de dano social, ou seja, incompatibilidade com as normas de uma vida pacífica em sociedade(21).

Diz Roxin: "Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (...) o Direito Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos". (...) O legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas de bens jurídicos(...).(22)

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O objetivo do princípio seria, pois, auxiliar o intérprete, de modo que pequenas infrações fossem excluídas do âmbito de incidência da lei. Com efeito, Roxin reconhecia que a insignificância não era característica da norma delitiva, mas sim um auxiliar interpretativo seu, com o fim de restringir o teor literal do tipo formal, conformando-o a condutas socialmente admissíveis(23). O tipo penal seria como uma pedra bruta que necessita ser lapidada, trabalhada, integrada com elementos externos ao seu conteúdo tomado no plano puramente objetivo.

3.1.2.Conceito

Em sede doutrinária, o conceito do princípio da insignificância é, de forma geral, uniforme. Para o professor Carlos Vico Mañas é

um instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal(24).

Diomar Ackel Filho, por sua vez, afirma que

o princípio da insignificância pode ser conceituado como aquele que permite infirmar a tipicidade de fatos que, por sua inexpressividade constituem ações de bagatela, despidas de reprovabilidade, de modo a não merecerem valoração da norma penal, exsurgindo, pois como irrelevantes. A tais ações, falta o juízo de censura penal.(25)

Assis Toledo, de forma ainda mais simples, ensina que

segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria denominação, o direito penal, por sua natureza fragmentária, só vai aonde seja necessário para a proteção do bem jurídico. Não deve ocupar-se de bagatelas.(26)

O princípio da bagatela é, pois, um instrumento de interpretação que afasta da incidência do tipo penal as condutas inofensivas, que não acarretam uma devida reprovabilidade social.

3.1.3.Aplicabilidade

A despeito da inexistência de expressa positivação do princípio da insignificância na legislação brasileira, sua aplicabilidade é corolário de uma série de outros princípios norteadores do direito penal (intervenção mínima, lesividade, proporcionalidade, entre outros), motivo pelo qual, salvo raras vozes dissonantes, doutrina e jurisprudência posicionam-se pela sua incidência no direito pátrio.

Em primeiro lugar, o princípio da intervenção mínima determina que o Direito Penal só deve atuar quando os demais ramos do direito se mostrarem ineficazes para solucionar os conflitos existentes na coletividade, razão pela qual se diz que o direito criminal é subsidiário ou "ultima ratio". Dessa maneira, aquele que subtrai bem de valor insignificante deve responder por sua conduta na esfera cível, trabalhista, administrativa ou ainda puramente na esfera moral. O que não se justifica – e aí se percebe a atuação dos princípios da proporcionalidade e da lesividade - é a incidência do direito penal que, em face das pesadas conseqüências impostas à vida do condenado, deve ser reservado para fatos igualmente graves, relevantes, capazes de lesar efetivamente bens jurídicos de terceiros. De acordo com expressão consagrada na jurisprudência, não se deve utilizar um canhão para matar um passarinho.

Por fim, conforme célebre julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pode-se até mesmo buscar inspiração para o princípio da insignificância no princípio da dignidade humana, insculpido na Constituição Federal de 1988 como fundamento da República Federativa do Brasil:

Fere a dignidade humana a condenação por um fato que não lesa, de forma concreta, o bem jurídico eleito, como a aplicação de uma sanção criminal se não houve relevância no ataque. A ausência de ataque não autoriza a reação punitiva, sob pena de o ser humano ser considerado mero objeto.(27)

3.1.4.Natureza jurídica

Tradicionalmente, o conceito de crime sempre esteve associado à idéia de legalidade. Isso porque o Estado, antes de intervir concretamente na repressão a certas condutas, deveria descrever, por meio dos tipos penais, fórmulas abstratas que desempenhariam uma autêntica função seletiva, decidindo o que é e o que não é ilícito(28). Ocorre que, com o tempo, passou-se a perceber que o legislador, ao criar os tipos penais - cujo objetivo é defender a sociedade dos prejuízos graves - acaba por incluir na mesma esfera de proteção os casos mais leves, de ínfima significação.

Assim, diante do fortalecimento da ideia de que o direito precisa ser estruturado não só por critérios lógicos, mas também por um juízo axiológico, percebeu-se que, diante de um tipo penal, cabe ao intérprete não apenas assinalar uma conduta, mas também valora-la. Dessa forma, passou-se a defender o desmembramento da tipicidade em dois momentos distintos, quais sejam, a tipicidade formal (que se resume na mera e pura adequação da conduta praticada pelo agente com o fato descrito na lei) e a tipicidade material.

De tal modo, foi possível a constatação de uma tipicidade tão importante quanto aquela formal, senão até mais formidável por comportar a idéia de danosidade social. (...) A tipicidade não se consome na concordância lógico-formal (subsunção) do fato ao tipo. A ação delineada tipicamente há de ser na maioria das vezes ofensiva ou arriscada a um bem jurídico.(29)

Assim, sempre que ocorre a subsunção formal da ação à descrição legal, porém sem uma devida ofensa ao bem jurídico tutelado, há a exclusão da tipicidade, entendida em sentido material. Dessa forma, uma conduta, para ser típica, deve não só adequar-se à literalidade da norma senão também ofender de forma significativa ou oferecer perigo de dano potencialmente relevante ao bem jurídico tutelado(30).

Ante o exposto, percebe-se que o princípio da bagatela atua como causa excludente de tipicidade, posição que é adotada pela esmagadora maioria da doutrina e da jurisprudência, inclusive a do Supremo Tribunal Federal(31).


4.A DISTINÇÃO ENTRE O BEM DE PEQUENO VALOR E O BEM DE VALOR INSIGNIFICANTE

Conforme definição apresentada nos capítulos anteriores, para fins de configuração do crime de furto, coisa de pequeno valor é a que não ultrapassa um salário mínimo. A coisa de valor insignificante, por sua vez, é aquela que por ser tão inexpressiva sequer merece a proteção do direito penal.

Buscando-se a conciliação entre ambas as figuras, é de se perceber que, num primeiro momento, deve-se cogitar a insignificância do bem. Uma vez que se chegue a um juízo positivo, restará excluída a tipicidade da conduta e, dessa forma, não há que se arguir qualquer outra circunstância. Apenas na hipótese de não incidência do princípio da bagatela é que o bem pode ser definido como de pequeno valor. Dessa forma, a fronteira entre ambas as categorias está situada exatamente onde se encerra a zona de ação do princípio da insignificância.

Buscando um critério objetivo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul firmou entendimento de que "para ser inexpressivo o dano causado à vítima, o valor atribuído à res não deve ultrapassar um décimo da cotação do salário mínimo na época do fato"(32).

Em que se pese tal orientação, percebe-se que ela é isolada. Isso porque, diferentemente do que ocorre com o bem de pequeno valor, doutrina e jurisprudência são praticamente unânimes em afirmar que não há um critério meramente objetivo no qual se possa firmar o princípio da insignificância. Assim, conforme ensina o professor Luis Flávio Gomes, é indispensável a avaliação do caso concreto para perceber se o comportamento, apesar de formalmente típico, também ocasiona, no plano material, perturbação social(33). Nos dizeres de Francisco de Assis Toledo, é "a gradação qualitativa e quantitativa do injusto que permite ser o fato insignificante excluído da tipicidade penal"(34).

4.1.O critério adotado pelo Supremo Tribunal Federal

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal vem adotando quatro requisitos principais para o reconhecimento da insignificância, quais sejam, a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, a falta de reprovabilidade da conduta e a inexpressividade da lesão jurídica causada(35).

A mínima ofensividade da conduta se relaciona ao princípio da lesividade, que proíbe "a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico"(36). Desse modo, a conduta do agente deve ser apta a gerar um dano ou um perigo de dano relevante a um interesse.

A ausência de periculosidade social da ação, por sua vez, consiste na avaliação dos efeitos causados pela conduta e por sua eventual descriminalização na sociedade como um todo. Assim, a aplicação do princípio da bagatela em um caso concreto não pode, por exemplo, gerar descrença da coletividade no Judiciário.

A falta de reprovabilidade da conduta se relaciona com o princípio da adequação social. Consiste na avaliação do desvalor da ação diante da sociedade. Através desse critério, o funcionário que toma para si uma cesta básica em uma empresa alimentícia não pode ser tratado de maneira idêntica ao sujeito que a subtrai de um miserável que utilizaria os alimentos para manter sua família.

Por fim, a inexpressividade da lesão jurídica ocasionada relaciona-se ao ínfimo valor da coisa. Questão tormentosa acerca desse tópico é se a proporção da lesão deve ser verificada em face da vítima ou através de um critério objetivo. Sobre o assunto, o Supremo Tribunal Federal já proferiu julgado manifestando o seguinte entendimento:

Se interpretássemos o tipo penal do furto por meio do princípio da insignificância para excluir a incriminação em caso de objeto material de baixo valor, seja quanto ao patrimônio da vítima, seja em face de um parâmetro genérico e abstrato como o salário mínimo, poderíamos chegar a situações absurdas como a exclusão do crime quando a vítima fosse um milionário e o bem furtado não lhe diminuísse sensivelmente o patrimônio. Por hipótese, poderíamos considerar uma vítima cujo patrimônio se assemelhasse ao de Bill Gates; ocorrendo o furto de um automóvel de propriedade dessa pessoa, não se pode dizer da ocorrência de prejuízo significativo. Entretanto, em face da sociedade, tal conduta não poderia ser tida como um indiferente penal. Portanto, o critério para a utilização da insignificância não deve ser exclusivamente a relação entre o objeto material do delito e o patrimônio da vítima no caso concreto, sob pena de chegarmos a interpretações teratológicas.(37)

Em que se pese a existência de divergência sobre o assunto(38), pelo mesmo motivo, a coisa puramente de estimação, sem qualquer valor de comércio, não pode ser objeto de furto. Conforme ensina Guilherme de Souza Nucci,

não se pode conceber seja passível de subtração, penalmente punível, por exemplo, uma caixa de fósforo vazia, desgastada, que a vítima possui somente porque lhe foi dada por uma namorada, no passado, símbolo de um amor antigo. Caso seja subtraída por alguém, cremos que a dor moral causada no ofendido deve ser resolvida na esfera civil, mais jamais na penal, que não se presta a esse tipo de reparação.(39)

4.2.O desvalor da conduta e o desvalor do resultado

Em análise dos critérios adotados pelo Supremo Tribunal Federal, o professor Paulo Queiroz critica sua redundância, uma vez que, segundo ele, todos convergem para o grau da lesão jurídica:

É de notar, por fim, que há diversos precedentes do Supremo Tribunal Federal condicionando a adoção do princípio aos seguintes requisitos: a) mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade; d) inexpressividade da lesão jurídica. Parece-nos, porém, que tais requisitos são tautológicos. Sim, porque se mínima é a ofensa, então a ação não é socialmente perigosa; se a ofensa é mínima e ação não perigosa, em conseqüência, mínima ou nenhuma é a reprovação; e pois, inexpressiva a lesão jurídica. Enfim, os supostos requisitos apenas repetem a mesma ideia por meio de palavras diferentes, argumentando em círculo(40).

Nesse sentido, o professor Luiz Flávio Gomes sustenta que, para a incidência do princípio da insignificância em determinada conduta, bastaria que inexistisse ou o desvalor na ação - associado à idoneidade ofensiva da conduta - ou o desvalor no resultado – existência de um ataque significativo ao bem jurídico. Tal circunstância derivaria do fato de a insignificância estar intrinsecamente relacionada com o âmbito do injusto penal(41), cujo conteúdo, defende, se exprime no binômio desvalor do resultado e desvalor da ação(42).

Dessa forma, o sujeito que atira um pedaço de papel contra um ônibus coletivo realiza uma conduta objetivamente não perigosa ou de periculosidade mínima. Logo, evidencia-se ausente o desvalor da conduta, o que justifica a aplicação do princípio da insignificância. Em outra hipótese, aquele que subtrai uma maçã ou um pote de manteiga pratica uma conduta relevante, desvalorada, mas o resultado jurídico é absolutamente insignificante. Também é caso de fato materialmente atípico, em razão do mesmo princípio(43).

O professor Carlos Vico Mañas, por sua vez, ensina que, para que se verifique o aspecto mais importante – desvalor da conduta e desvalor do resultado - no caso concreto, é necessário analisar a estrutura legal do tipo penal. Se ele é constituído sobre a mera causação do evento, deve-se valorizar a intensidade do resultado. Quando, ao contrário, o tipo dá destaque à forma de ação, importa destacar o potencial agressivo da conduta praticada(44). Sendo assim, uma vez que o delito de furto é crime de resultado, percebe-se a preponderância do desvalor do evento na análise de eventual insignificância.

Contudo, ambos os critérios, desvalor da ação e desvalor do resultado, revelam-se importantes na tarefa de descriminalização interpretativa, pois estão perfeitamente entrelaçados e é impossível imaginá-los separados. O valor ou desvalor de uma conduta pressupõe sempre o valor ou desvalor de um resultado. Assim, por exemplo, a proibição de matar é conseqüência da proteção à vida; a proibição de roubar resulta da proteção à propriedade. Nos dois casos, o desvalor da ação (matar, roubar) deriva já do desvalor do resultado (destruição da vida humana, lesão da propriedade). Os mandamentos de "não matar" e "não roubar" só têm sentido se previamente se reconhecerem os valores que os fundamentam: a vida e a propriedade. (...) [Resumindo,] nem toda lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico (desvalor do resultado) é ilícita, mas apenas aquela que deriva de uma ação desaprovada pelo ordenamento jurídico (desvalor da ação)(45).

4.3.A ANÁLISE DA CULPABILIDADE DO AGENTE

Acerca da necessidade de análise da culpabilidade do agente para fins de aplicação do princípio da insignificância, emergem duas correntes antagônicas. A primeira sustenta a necessidade de se avaliarem circunstâncias de cunho subjetivo, como reincidência, maus antecedentes e comportamento social do autor do delito. A segunda entende desnecessária tal análise, uma vez que a conduta bagatelar se exaure com a aferição do injusto penal.

Com a devida vênia aos defensores da primeira tese, é de se perceber que não se pode passar à análise da culpabilidade do agente se a conduta não foi sequer típica. Sendo assim, é inconveniente qualquer verificação da personalidade do acusado. Nas precisas palavras do professor Luiz Flávio Gomes,

toda referência que é feita (na esfera do princípio da insignificância) ao desvalor da culpabilidade (réu com bons antecedentes, motivação do crime, personalidade do agente etc.) está confundindo o injusto penal com sua reprovação, leia-se, está confundindo a teoria do delito com a teoria da pena (ou, na linguagem de Graf Zu Dohna, o objeto de valoração com a valoração do objeto). Não se pode utilizar um critério típico do princípio da irrelevância penal do fato (teoria da pena) dentro do princípio da insignificância (que reside na teoria do delito). Essa é a confusão que precisa ser desfeita o mais pronto possível, para que o Direito penal não seja aplicado incorretamente (ou mesmo arbitrariamente)(46).

Assim, nos termos de célebre voto proferido pela Ministra Laurita Vaz,

as circunstâncias de caráter eminentemente pessoal não interferem no reconhecimento do delito de bagatela, uma vez que este está relacionado com o bem jurídico tutelado e com o tipo de injusto, e não com a pessoa do acusado, que não pode ser considerada para a aplicação do princípio da insignificância, sob pena de incorrer no inaceitável direito penal do autor[(47)], incompatível com o sistema democrático(48).

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Sobre o autor
Clauber Santos Guterres

Graduado em Comunicação Social e em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, técnico judiciário da Justiça Federal – Seção Judiciária do Espírito Santo, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Gama Filho.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUTERRES, Clauber Santos. A fronteira entre os conceitos de "bem de pequeno valor" e de "bem de valor insignificante", para aplicação do princípio da bagatela no crime de furto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2584, 29 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17039. Acesso em: 26 abr. 2024.

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