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Justiça ambiental e Medida Provisória 1710/98

01/09/1998 às 00:00
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Ao mesmo tempo em que a sociedade brasileira agradece as providências governamentais que resultaram na publicação da conhecida e recente "Lei dos Crimes Ambientais", fica perplexa com a nova medida que, escandalosamente, contraria a proteção do meio ambiente sadio, bem de uso comum do povo e essencial à boa qualidade de vida.

Trata-se da Medida Provisória (MP) n° 1.710, de 07 de agosto de 1998 (publicada no DOU n° 151, de 10 de agosto de 1998) . Esta MP, adotada pelo chefe do Executivo, acrescenta o artigo 79 a Lei 9.0605, de 12/02/98 ("Lei dos Crimes Ambientais") .

O art. 79 permite a realização de um Termo de Compromisso entre os órgãos ambientais integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente) - responsáveis pelo controle e fiscalização das atividades suscetíveis de degradarem a qualidade ambiental - e as pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais considerados efetiva ou potencialmente poluidores, bem como, os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental.

Esse Termo de Compromisso terá força de ato exclusivo e extrajudicial, podendo durar de 90 dias a 10 anos!

A aplicação e a execução de sanções administrativas (relacionadas aos fatos que deram causa a celebração do Termo de Compromisso) ficarão suspensas enquanto perdurar a vigência do Termo em apreço.

Essa MP inclui na Lei 9.0605/98 um artigo que tolera a ilegalidade ambiental (poluição de qualquer natureza) por até 10 anos. A lei permite que, prestado o "compromisso", o responsável pela poluição ambiental continue poluindo por até 10 anos; ou seja, permite-se a morte e/ou todas as formas de impactos sobre a saúde humana e animal, gerados pela poluição, por até 10 anos!

Parece-nos que está ocorrendo uma grave e séria inversão e desvirtuamento entre as funções dos Poderes Estatais. Hodiernamente, nota-se uma proliferação e sucessiva reedição, por parte do Executivo, de Medidas Provisórias que não respeitam seus próprios fundamentos - a relevância e urgência.

Talvez exista, para certos interesses que de modo algum representam os interesses da sociedade brasileira, uma certa urgência e relevância em melhor atingir seus objetivos; porém, é o interesse público primário (utilizando a definição do jurista Italiano Renato Alessi) e a ordem instaurada sobre a justiça que merecem consideração. Qual a urgência e relevância em manter-se uma atividade poluente?! Qual a urgência e relevância em permitir-se a morte de milhares de animais e/ou causar doenças e anomalias nos cidadãos?!

Tomás de Aquino esclareceu que toda lei deve ser ordenada à salvaguarda comum dos homens. O fim da lei é o Bem Comum. Isidoro já dizia que "Não é em vista de um interesse privado, mas da comum utilidade dos cidadãos que uma lei deve ser escrita" (Etimologias, II, 10, PL 82, 131; V, 21, 82, 203) .

Quando se pretende satisfazer interesses não sociais, encontra-se uma maneira de legislar em beneficio de determinados grupos e parcelas da sociedade, prejudicando o Bem Comum (que, necessariamente, engloba a qualidade ambiental) . Em verdade, é a justiça que esta sendo desafiada e todos os que por ela trabalham.

Quando mal utilizada, a Medida Provisória transforma-se num forte instrumento de dominação e poder existente no mundo político-jurídico, servindo aos governos despóticos e políticos sofistas para justificarem suas dominações e opressões.

A Medida Provisória pode não ser condizente com sua finalidade original por ter sido elaborada de forma a não considerar a urgência e relevância destinada ao Bem Comum ou, por sua desvirtuada aplicação. Na medida em que a Medida Provisória se afasta de sua finalidade original, ela perde seu compromisso com o Bem Comum e, naturalmente, deixa de beneficiar a todos para beneficiar alguns.

Tanto a adoção da Medida Provisória como a sua reedição (se realmente necessária) devem visar ao Bem Comum. Se assim não for, a Medida Provisória não estará cumprindo a sua finalidade, devendo perder sua eficácia.

Adotar Medidas Provisórias para benefício de minoria e em flagrante prejuízo da qualidade de vida é uma aberração.

Alertem-se, pois, as Organizações Não Governamentais - ONGs, o Ministério Público, o Poder Judiciário, a sociedade e todos os profissionais do Direito, que não podem admitir tamanho desrespeito e inversão de valores.

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Sobre o autor
Rodrigo Andreotti Musetti

mestre em Direito Processual Civil pela PUC/Campinas, especialista em Direito Ambiental, coordenador jurídico da Associação para Proteção Ambiental de São Carlos (APASC)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Justiça ambiental e Medida Provisória 1710/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 26, 1 set. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1704. Acesso em: 26 abr. 2024.

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