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A teoria da co-culpabilidade como causa de atenuação genérica da pena.

Uma análise do art. 66 do Código Penal brasileiro à luz da Hermenêutica Criminológica e do Estado Democrático de Direito

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01/09/2010 às 14:57
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3 A TEORIA DA CO-CULPABILIDADE CONTEXTUALIZADA PELA HERMENÊUTICA CRIMINOLÓGICA E PELO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

De início, cumpre salientar que, em se tratando da teoria da co-culpabilidade "ainda não se dispensou um estudo aprofundado no Direito Penal brasileiro, [...], talvez por ir de encontro aos interesses das classes privilegiadas". [37] À conta dessa parca literatura disponível sobre o tema, ainda não se cunhou um conceito preciso a respeito.

Não obstante isso, depreende-se por co-culpabilidade ou co-responsabilização a influência que o meio social exerce sobre a formação da personalidade humana, comprometendo o âmbito de autodeterminação ligado ao livre-arbítrio de cada ser humano.

Impende aclarar que este conceito foi introduzido no Brasil a partir das idéias de Zaffaroni e de Pierangeli, os quais aduzem que

toda pessoa atua numa determinada circunstância e com um âmbito de autodeterminação também determinado

. Em sua própria personalidade há uma contribuição para esse âmbito de autodeterminação, posto que a sociedade - por melhor organizada que seja - nunca tem a possibilidade de brindar a todos os homens com as mesmas oportunidades. Em conseqüência, há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionado desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao indivíduo e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação de culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade e o Estado devem arcar. [38]

Trata-se, como se vê, da responsabilidade conjunta do tecido societário sobre os atos praticados por seus cidadãos, mormente quando estes sofreram menosprezo em seus direitos fundamentais por parte de um Estado omisso no campo social.

Assim sendo, nada mais justo que repartir com o agente infrator da lei parte da pena a ele imposta pelo próprio Estado - o qual, diga-se de passagem, é quem mais transgride as normas na sociedade -, assumindo este sua mea culpa nas práticas delitivas e, por conseqüência, diminuindo o quantum da pena aplicada ao autor do delito.

No entanto, para que isso seja possível na prática forense, torna-se premente a realização de um exercício hermenêutico de viés crítico do artigo 66 do Código Penal, o qual estatui in verbis: "A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei" (grifo nosso). Mas o que se entende por circunstância relevante? Quem é o intérprete que extrairá o sentido e o alcance destes termos ambíguos e vagos? Certamente é o Judiciário que ficará com esta incumbência na hora de aplicar a norma abstrata ao caso concreto.

Nessa senda, é oportuno destacar que, por razões diversas, o Estado e a sociedade não oferecem de forma igualitária as mesmas oportunidades sociais aos cidadãos para que estes possam ter condições mínimas e dignas de desenvolvimento pessoal, visto que a lógica que impera no tecido societário é a da "[...] desigual distribuição de bens e de oportunidades entre os indivíduos". [39]

Acerca desta realidade, Alessandro Baratta leciona que a base do comportamento desviante encontra-se inserta nessa "[...] desproporção que pode existir entre os fins culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos, à disposição do indivíduo para alcançá-los [...]". [40] Deste modo, deve a reprovabilidade da conduta dos sujeitos alijados de participarem de forma isonômica no mercado ser atenuada diante do que seria uma co-responsabilização do Estado e da sociedade, na medida em que não lhes são ofertadas as mesmas condições para alçarem uma vida digna relegando-os, tão-somente, a uma vida de miséria e marginalização, fatores estes que contribuem sensivelmente para uma perene e aviltante exclusão social.

Nessa perspectiva, fala-se numa culpabilidade [41] compartilhada entre o delinqüente, o Estado e a sociedade, pois, no exercício do direito de punir, o Poder Público deve reconhecer e inserir também na balança suas próprias falhas e omissões, enquanto sociedade politicamente organizada, por não patrocinar a seus cidadãos alternativas e perspectivas para que não escolham o caminho da criminalidade. Para tanto, "o entorno social [...] deve ser levado em consideração na aplicação da pena [...]", [42] de forma a não transferir unicamente o encargo de uma punição ao sujeito infrator.

Importante frisar que essas falhas e omissões guardam estreita relação com o Estado de Bem-Estar Social, surgido na 1ª metade do séc. XX. Este padrão de dominação jurídico-político relaciona-se com o desenvolvimento do processo de industrialização e com os problemas sociais advindos a partir dele. É basicamente um compromisso assumido pelo Poder Público no qual este pretende assegurar padrões mínimos de: educação, saúde, moradia, trabalho, renda, seguridade social; enfim, garante aos cidadãos um leque de direitos sociais enquanto critério de legitimidade da atuação estatal.

Devido a este avanço do setor industrial houve a necessidade de ampliação dos serviços públicos, abarcando diversas áreas sociais. Com efeito, o Estado passou a intervir fortemente na seara econômica com vistas a regulamentar as atividades produtivas com o objetivo de assegurar a geração de riquezas materiais paralelo à diminuição das desigualdades sociais entre os indivíduos.

Para tanto, diversos direitos sociais foram reconhecidos e incorporados nos textos constitucionais depois uma série de manifestações advindas principalmente do proletariado, devido às condições subumanas em que se encontrava nas indústrias, para que se pudessem amenizar os efeitos nocivos advindos do novo contexto por que passava a sociedade, ancorada no aumento da divisão do trabalho decorrente da expansão do sistema capitalista.

Todavia, para uma parcela da população - os socialmente excluídos - esses direitos sociais declarados pelo Estado não foram efetivamente concretizados, fator que contribui, sobremaneira, para que muitas pessoas não tenham oportunidade sequer de melhorar suas condições de vida, restando a elas apenas miséria, marginalização e exclusão social.

Diante tal situação, resta evidenciado que "o Estado intervencionista do bem-estar social foi mais uma configuração do poder instituído que primou por defender os interesses do capital em detrimento dos interesses sociais", [43] não cumprindo, portanto, com o compromisso firmado de melhora das condições de vida dos cidadãos.

Dito isso, será que é humana e juridicamente razoável se cogitar a exigibilidade de conduta diversa daqueles indivíduos que se encontram numa aviltante e perene situação de miserabilidade e de segregação social? O que se sabe é que um ser humano com frio, com fome, com sede, enfim, sem um mínino de direitos assegurados para se ter dignidade na sua existência, não é livre o bastante para se autodeterminar da mesma forma que uma pessoa que sempre teve uma boa condição material de vida.

Em síntese, tendo em vista as omissões na efetividade dos direitos sociais declarados pelo Estado de Bem-Estar Social, emerge o Estado Democrático de Direito o qual "[...] contém em seu núcleo a ideia de que o ente estatal está juridicamente vinculado a uma finalidade: a promoção da transformação da sociedade". [44] Nesse novo marco constitucional, o Estado deve concretizar as normas inseridas na Carta Política para que o compromisso assumido por ele possa, efetivamente, transformar vidas, futuros, pessoas, enfim, reduzir as desigualdades existentes e promover o bem de todos no tecido societário.

Acerca disso, torna-se premente analisar, no plano concreto, a maneira pela qual os alguns tribunais brasileiros interpretam a Teoria da co-culpablidade. Para tanto, apresentar-se-ão trechos de dois acórdãos que dizem respeito à temática proposta neste tópico.

3.1 A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA DA TEORIA DA CO-CULPABILIDADE NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA

Para se atingir o objetivo proposto neste subtópico, faz-se imperioso analisar a forma pela qual os tribunais brasileiros vêm interpretando a Teoria da co-culpabilidade nos casos que se lhes apresentam.

À conta disso, serão destacadas algumas passagens da Apelação Criminal nº 2006 06 1 000699-5 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), julgada pela sua 1º Turma Criminal; bem como trechos da Apelação Criminal nº 70014561898 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRGS), julgada pela sua 2ª Câmara Criminal. (grifos nossos)

Nesse sentido, debruçando-se sobre o voto do Desembargador Mario Machado, Relator da Apelação Criminal nº 2006 06 1 000699-5 do TJDFT, resta evidenciado que a Teoria da co-culpabilidade não foi recepcionada por ele, senão veja-se:

[...] O apelante Leobaldo requer a redução da pena com base na teoria da co-culpabilidade do Estado. A defesa pleiteia a aplicação da atenuante genérica do artigo 66 do Código Penal, porque o apelante, desde a sua infância, foi uma pessoa marginalizada, possuindo menor capacidade de autodeterminação. Dessa forma, por motivos de eqüidade, em face da co-responsabilidade da sociedade, a pena deve ser atenuada. Ocorre que, de início, nada consta dos autos que leve a concluir que o apelante é ou foi um pessoa marginalizada pela sociedade ou que teve suas necessidades básicas negadas pelo Estado, o que impede, amparado nessa tese, o reconhecimento da referida atenuante. Ademais, verifico que o réu tinha plena capacidade de autodeterminar-se, pois, no seu depoimento (fl. 23), afirmou que estudou até a 6ª série do ensino fundamental, que vive com sua companheira há cerca de 10 anos e tem uma filha. A carência do Estado em prover meios que possibilitem a todos os indivíduos galgarem o status de cidadãos, sujeitos de direitos e cientes de seus deveres, não pode ser utilizada como escusa para a prática de crimes. Caso contrário, a omissão estatal conduziria à dupla punição da sociedade, já vítima constante da criminalidade e, ao mesmo tempo, responsabilizando-a pela conduta dos que fazem da criminalidade um modo de vida, assim como o acusado em tela. (Grifos nossos)

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Do exposto, cuida-se da tese apresentada pela defesa do condenado para que haja a redução do quantum da pena aplicada ao apelante, ancorando-se na Teoria da co-culpablidade do Estado e da sociedade, tendo por fundamento legal o artigo 66 do Código Penal brasileiro, o qual versa sobre a atenuação inominada ou genérica da pena.

Como se pode inferir, o julgador foi bem enfático ao aduzir que não constavam dos autos daquele processo-crime, provas capazes de sustentar as alegações de que o apelante foi um ser humano marginalizado pelo corpo social ou que teve as suas necessidades básicas não providas pelo Poder Público. Nesse caso, verifica-se que não basta alegar que é miserável e marginalizado, tem de provar que o seja. Mas como, se o indivíduo não tem sequer condições econômicas para se alimentar? Como irá produzir as provas a que alude o eminente julgador?

Além disso, assevera o Relator que o réu tem a plena capacidade de autodeteminar-se já que havia estudado até a 6ª série do ensino fundamental! Com efeito, será que é razoável aduzir que um indivíduo que possui uma irrisória e precária educação (6ª série do ensino fundamental), seja realmente capaz de autodeterminar-se como apontou o julgador?

Acerca das passagens acima, bem como as palavras do órgão julgador, será mesmo que algum ser humano escolhe a criminalidade como forma de vida e a carreira criminosa como profissão? Será que as circunstancias que o rodeiam (miserabilidade, exclusão social, desestruturação familiar, marginalização, omissão estatal, etc.) não acabam, de alguma forma, conduzindo-o a delinqüir, reduzindo, assim, a sua capacidade de se autodeterminar?

Em consonância com essa perspectiva, passa-se analisar trechos do voto da Desembargadora Marlene Landvoigt, Relatora da Apelação Criminal nº 70014561898 do TJRGS, para também demonstrar a rejeição da Teoria da co-culpabilidade por aquela julgadora, senão veja-se:

[...] Da mesma forma, bem decidiu o eminente juiz ao aumentar a pena em razão da alta lesividade da droga apreendida, pois, ainda que a lei não traga expressamente prevista a possibilidade de tal diferenciação, também não impõe qualquer vedação a isso, restando, portanto, tal hipótese abarcada na consideração das circunstâncias do crime, contida no artigo 59 caput da Lei Substantiva Penal. (grifos nossos)

Do fragmento aludido acima, infere-se que a douta Relatora aduz que inobstante haver expressamente na lei permissão para que o juiz aumente a pena tendo em vista o alto poder lesivo da droga, também não há qualquer vedação por parte da norma quanto ao seu emprego.

Ocorre que, no mesmo acórdão analisado, a ilustre julgadora adota um raciocínio um tanto quanto contraditório quando se refere ao acolhimento da atenuação da pena do réu tendo por base a Teoria da co-culpablidade. Acerca disso, a magistrada diz que

[...] quanto à atenuante de co-culpabilidade suscitada, novamente sem razão o acusado, não se sustenta a alegação defensiva na medida em que não encontra amparo na parte geral do Código Penal, nem no sistema legal, além de, a idéia de que a sociedade e seus segmentos constitui motivo relevante para que os menos favorecidos tenham legitimidade para praticar delitos é demasiadamente absurda, pois o crime atinge todos os níveis sociais. (Grifos nossos).

Ora, já que a co-culpabilidade não se encontra expressa na parte geral do Código Penal, e tampouco no sistema legal, por que não lhe foi dada a mesma interpretação pela Relatora no que tange à permissão do agravamento da pena tendo por base o alto poder lesivo da droga (crack)? O raciocínio é o mesmo. Assim, se o Ordenamento Jurídico brasileiro não vedou expressamente a utilização da Teoria da co-culpabilidade, mister se faz adotar o mesmo entendimento esposado anteriormente pela douta Desembargadora-Relatora da Apelação Crime sob análise, ou seja, a de permitir o seu emprego como fundamentação legal argüida pela defesa do apelante.

Por fim, vale destacar que, em que pese a criminalidade ser democraticamente distribuída, conforme expôs a eminente Relatora, a repressão aos delitos não se dá de forma isonômica, mas altamente seletiva, classista e racista pelo Sistema Penal, consoante exposto alhures, atingindo, como é cediço, apenas uma ínfima parcela do tecido societário, os socialmente excluídos.

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Sobre o autor
Charles Francisco Rozário

Acadêmico do 5ºp do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória/ES - FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROZÁRIO, Charles Francisco. A teoria da co-culpabilidade como causa de atenuação genérica da pena.: Uma análise do art. 66 do Código Penal brasileiro à luz da Hermenêutica Criminológica e do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2618, 1 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17315. Acesso em: 17 nov. 2024.

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