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Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo

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02/09/2010 às 15:47
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5 REVISÃO JUDICIAL DOS CONTRATOS

Como antes afirmado, as complexas necessidades sociais comprometeram a estrutura clássica do contrato dando ensejo a uma verdadeira crise. Esse fenômeno alavancou uma teoria pós-moderna que pugna por uma reconstrução do modelo contratual. É neste contexto que a revisão dos contratos se insere e assume especial importância. Reconhece-se a revisão contratual como um poderoso instrumento de perene revitalização do instituto, possibilitando a modificação do seu conteúdo à luz dos valores maiores do ordenamento jurídico postos pela Constituição [30].

Imperioso que se lembre que a revisão dos contratos é elemento intrínseco da própria evolução contratual, agora diante de sua concepção socializada, muito mais preocupada com a justiça e equilíbrio contratual do que com o resguardo irrestrito da palavra dada. Trata-se de uma diretiva que pugna pela conservação dos contratos sempre que possível, deixando-se de lado o tratamento clássico em que a preferência era pela resolução ou mesmo anulação. Com mais razão, há de se recordar que, hodiernamente, muitos contratos acabam tendo como uma de suas partes pessoas hipossuficientes que necessitam dos bens da vida, objetos dos contratos [31].

Interessante notar que existem precedentes na doutrina e jurisprudência em que se aplica a vontade estatal no conteúdo contratual de forma a conservar os contratos, sem, contudo, se dizer inexistente as cláusulas por este estipuladas, excluídas ou modificadas. São eles, a lesão, a alteração das circunstâncias contemporâneas à formação dos contratos e as cláusulas abusivas.

A lesão é um instituto muito antigo e que ao longo da história deteve inúmeros significados. Concebida no direito romano e associada na Idade Média aos vícios do consentimento, submeteu-se também ao direito canônico sendo influenciado de perto pelas idéias religiosas. Adotou-se, então, o caráter de pecado para as vendas maiores do que o justo preço, dando surgimento também à usura como uma das suas variantes [32].

Não obstante, no período liberal, o instituto cai em descrédito com o crescimento das idéias jusracionalistas e iluministas, ambas elevatórias de um individualismo racionalismo como já se viu, sendo que todas as expressões de um princípio contratual justo passa a ser o Code. Restrita às alienações imobiliárias e às partilhas, em associação com a teoria dos vícios do consentimento, prestava apenas ao desfazimento contratual, facultando o comprador escolher entre a restituir a coisa recuperando o preço ou guardar o fundo, pagando o justo valor, com a dedução de um décimo do total [33].

Já no direito brasileiro, sorte diferente não teve, até pela influência do estatuto civil francês. Apenas tempos após a promulgação do CC de 1916 é que surgem leis que tratam da usura, tal como o Decreto nº 22.626/33. Mesmo assim o tema se manteve distanciado da normativa brasileira até a promulgação do Código de Defesa do Consumidor, que trouxe a regra do art. 6º, inc. V, primeira parte, e do Código Civil de 2002, que consignou a regra do 157.

Em todas suas formas, conclui-se que o instituto permite a revisão contratual, tendo implícito em seu sentido histórico a noção de equidade e justiça material. No que concerne às alterações dos contratos por fatos supervenientes, também não constituem instituto materialmente novo, mas sim um mero retorno da cláusula rebus sic stantibus que estava adormecida por força da concepção liberal do contrato.

Em verdade, independente da teoria que a tente explicar, a revisão do contrato com base na alteração das circunstâncias contemporâneas se prende mesmo à necessidade de retorno ao equilíbrio contratual em caso de superveniência de fatos que impliquem no desajuste da equivalência material entre as prestações de um contrato.

Interessante notar que se atribui ao jurista pós-glosador medieval Bartolo de Sassoferrato (1314/1357) a difusão da expressão "contractus qui habent tractum successivum et dependentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur", significando que o cumprimento de um contrato de execução diferida no tempo dependeria da manutenção das circunstancias como quando da celebração [34].

Insta esclarecer que mais tarde surgiria na França, Alemanha e Itália três teorias que explicariam o fenômeno, quais sejam a teoria da imprevisão, a teoria da quebra da base do negócio jurídico e a teoria da onerosidade excessiva superveniente [35].

No direito brasileiro, encabeçado pelo Código Civil de 1916, em apoio à concepção moderna de contrato, não se aceitava a alteração dos contratos por qualquer das teorias revisionistas. Entretanto, as necessidades sociais surgidas também no pós-guerra fizeram com que a jurisprudência acatasse a teoria da imprevisão.

Entre nós, entendeu-se que para possibilitar a sua adoção a teoria da imprevisão somente seria aplicada com cautela e quando demonstrados os seguintes requisitos: a) vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou de trato sucessivo; b) ocorrência de fato extraordinário imprevisível; c) considerável alteração da situação de fato existente no momento da execução, em confronto com o que existia por ocasião da celebração; e d) onerosidade excessiva para um dos contratantes e vantagem exagerada para o outro [36].

Já o Código de Defesa do Consumidor, também inovando no tema da revisão fundada por onerosidade superveniente, trouxe a norma do art. 6º, inciso V, segunda parte, estabelecendo ser direito básico do consumidor a revisão do contrato em razão de fatos supervenientes que o torne excessivamente oneroso. Tal previsão não requer, pois, a extraordinariedade e imprevisão ou mesmo a vantagem exagerada para a parte beneficiada, sendo verdadeiro avanço do legislador brasileiro que não se encaixa, assim, em qualquer das teorias retro citadas.

Importante esclarecer, entretanto, que não existem, substancialmente, diferenças entre as teorias revisionistas "surgidas" no século XX.

Apesar da diferença de formulação, "base do negócio" e "circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar" (ou de negociar) são exatamente o mesmo. Ambas correspondem à expressão alemã Geschäftsgrundlage. São aquelas circunstâncias que comumente levaram as partes a contratar, e a contratar assim. Fazem com que o contrato seja o que é, de modo que seria injusto manter as partes vinculadas se essas circunstâncias sofressem uma modificação essencial [37].

Ocorre que "o fundamento mais moderno do direito e dever de revisão contratual, inclusive sob a égide da teoria da imprevisão, reside atualmente nos novos princípios sociais do contrato, em especial no princípio da equivalência material das prestações contratuais" [38].

Ao lado da lesão, as cláusulas abusivas constituem causas contemporâneas à formação do contrato autorizadoras de revisão contratual.

Com efeito, o fenômeno das cláusulas abusivas nasce com o esvaziamento axiológico do princípio da autonomia privada característico da sociedade de massas, cuja conseqüência em termos contratuais é a redução unilateral das obrigações do contratante mais forte ou majoração das atribuídas ao mais fraco [39].

Neste sentido, entende-se que as cláusulas abusivas geralmente estão presentes em contratos de massa. São aquelas cláusulas insertas de forma demasiadamente favorável ao estipulante e desfavorável ao aderente que geram desequilíbrio contratual. Em outras palavras, cláusulas abusivas são aquelas que atribuem, ao mesmo tempo ou separadamente, vantagem exagerada ao estipulante e onerosidade excessiva ao aderente, o que rompe o equilíbrio das prestações do contrato [40].

Vale dizer que, não obstante o notável avanço da legislação, doutrina e jurisprudência, os referidos precedentes de revisão judicial ainda continuam por ser insuficientes para satisfazer as necessidades do novo modelo contratual. A construção de uma teoria revisional assente com os imperativos constitucionais perpassa, então, pela análise crítica da atividade judicial contemporânea.

Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a admissão de que o Direito possa não estar integralmente contido na lei, tendo condição de existir independentemente da bênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso pela estrutura do poder. O intérprete deve buscar a justiça, ainda quando não a encontre na lei. A teoria crítica resiste, também, à idéia de completude, de auto-suficiência e de pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele afasta os outros conhecimentos teóricos. O estudo do sistema normativo (dogmática jurídica) não pode insular-se da realidade (sociologia do direito) e das bases da legitimidade que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica (filosofia do direito). Interdisciplinaridade, que colhe elementos em outra área do saber, tem uma fecunda colaboração a prestar ao universo jurídico [41].

Ao ser colocado em choque o binômio liberdade-igualdade que forjou o liberalismo no direito dos contratos, a força obrigatória deixou de ser apreciada à luz de um dever moral de manter a palavra empenhada, mas sob o aspecto do bem comum. O homem moderno já não mais aceita o dogma no sentido de que seja justo tudo o que seja livremente acordado [42].

Repise-se, pois, que o jurista, cumprindo seu mister, deve desejar que o contrato, previsto e regulado pelo direito, seja justo, rejeitando a idéia de um contrato ao mesmo tempo injusto e eficaz [43].O contrato, que já exerceu uma função individual, vinculada à ideologia do liberalismo, deve ser reestruturado para atender e exercer uma função social, segundo a ideologia que, em nosso tempo, parece ser dominante: o igualitarismo, com suas demandas de justiça social [44].

Especialmente o juiz deve estar no centro desta pesquisa, porquanto são os principais agentes da jurisprudência ao lado dos advogados e promotores. Historicamente eles sempre foram tidos como meros aplicadores do direito posto, mas o juiz moderno não pode ser mais este pequeno burguês com sede de poder que, em determinado momento, resolve ingressar na casta da magistratura [45].

Deve-se colocar o juiz em sintonia com os sentimentos e aspirações do povo, auscultando-lhes as opiniões, para que suas decisões reflitam, tanto quanto possível, os valores consagrados pela ética em vigor no seio do povo, a qual ele deve interpretar e fazer valer no exercício da soberania estatal que lhe compete [46].

No bojo do que se viu a alteração de paradigma operada pelo pensamento crítico induz um perfil do intérprete que passa a deter relevância no contexto de sua atividade enquanto agente de mudança social. Essa nova postura dos "operadores do direito" é cravada e acompanhada de perto por uma legitimidade constitucional.

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Na perfeita lição de Bezerra [47], a atividade judicial não está restrita à mera aplicação do direito posto, sendo, em verdade, mister criativo, interveniente, teleológico e produtor de direito, além de se submeter também as leis sociológicas e ideológicas. Aliás, tratando sobre o tema, o professor Carvalho [48] elucida que o argumento de que o juiz deve aplicar a lei por ser falível seve também para justificar a sua não-aplicação quando for injusta, porque o legislador também é falível. Logo, do confronto entre as falibilidades do juiz e do legislador, parece ser menos danoso que se fique com a do juiz, que está próximo das partes; sua visão é do momento concretizado e não da situação abstrata. Ou seja, o legislador universaliza direitos e o juiz concretiza a universalidade abstrata, então o mais comum é a falibilidade do legislador ante o litígio presente.

Com base no aporte delineado, portanto, tem o jurista à sua disposição mecanismos efetivos de concretização do direito aqui estampado que perpassa pela análise crítica dos contratos a qual pugna pela sua reconstrução e vê na revisão judicial um relevante instrumento de realização da justiça.

O que se quer dizer é que para que o contrato possa assumir a função social a que fora constitucionalmente designado, há o necessário enfrentamento dos contratos injustos e desequilibrados que devem ser revisados e, por conseguinte, conservados, ainda que não configuradas as hipóteses restritivas da lesão, modificação das circunstâncias contemporâneas á formação do contrato, e cláusulas abusivas.

Desse modo, a revisão dos contratos tem seu espectro aumentado, não se encaixando em nenhum dos pressupostos comumente colocados nas teorias que buscaram explicá-la (existência de fato posterior, imprevisibilidade, perseguição exclusiva de equilíbrio contratual de acordo com a intenção das partes). O contrato é revisado de maneira a facilitar a instrumentalidade do bem essencial à dignidade humana dos contratantes, por força da incidência direta do princípio da dignidade humana. A autonomia privada, então, é condicionada aos interesses existenciais, prevalentes por força da Carta Magna [49].

A questão que se desdobra neste momento, é traçar as diretrizes para uma revisão dos contratos de forma emancipada, de maneira que possa assumir uma posição firme e aplicável diante de qualquer situação injusta que se apresente, tudo em conformidade com os anseios constitucionais.

Essa ordem de idéias impede fórmulas gerais e acarreta a análise detida das conseqüências contratuais a cada um dos contratantes. Não satisfaz plenamente ao princípio da dignidade da pessoa humana a simples predeterminação legal de sujeitos débeis, como a de consumidor pelo Código de Defesa do Consumidor. A análise deve ser tópica, a partir de cada caso e considerando-se o real poder de negociação de cada contratante. Trata-se de (re)valorizar a efetiva autodeterminação de cada contratante [50].

Neste diapasão, a revisão contratual se destaca para adotar um conceito ampliado e tópico, sendo instrumento hábil para criar, modificar ou excluir cláusulas contratuais. No que concerne à exclusão de cláusulas contratuais, não se trata de desempenhar atividade nova, vez que não há quem duvide que declaração da nulidade das cláusulas abusivas constitua situação semelhante. Quanto à modificação das cláusulas, outrossim, não deve encontrar óbices enquanto permissivo geral, já que a alteração do conteúdo material do pacto pela teoria superveniente interfere positivamente para a alteração de um valor desequilibrado.

Por fim, a questão que se impõe num patamar de maior dificuldade de resolução diz respeito à possibilidade da ação interventiva revisional no sentido positivo de criação de cláusulas contratuais. É aqui que se situa o maior problema: ninguém se obriga senão em virtude de lei ou da própria vontade. Ocorre que mais uma vez cumpre lembrar que a crise dos contratos trouxe a necessidade de intervenção estatal nas relações privadas, acarretando a modificação da sua própria concepção jurídica. Nesta situação, os princípios, em especial, detêm inigualável força normativa e validam a norma sentencial como comando cogente, mormente quando se trata de interesse constitucional.

A premissa de que só existe contrato com a manifestação da vontade não se sustenta contemporaneamente. Verifica-se que, em decorrência da lei, hipóteses há em que não precisa sequer que a parte tenha a intenção de contratar. A autonomia da vontade é deixada de lado enquanto faculdade e se transforma em verdadeiro dever jurídico imposto pela norma.

Assim, não existe razão que se sustente diante da possibilidade de inovação judicial nos contratos. Até por analogia, mais uma vez, se chega a esta resposta. A modificação de uma cláusula se afigura ontologicamente como uma atividade interventiva inovadora parcial. Modificar o valor de uma prestação é inserir regra não "prevista" pelo contratante assim como criar uma cláusula específica. A única diferença é o tamanho da ação interventiva do Estado-juiz, mas que não se iguala a criar um contrato do nada.

Substancialmente, fala-se em revisar o contrato para criar, modificar ou excluir cláusula contratual. Conserva-o para retirar a injustiça que originalmente o maculava e adequá-lo aos imperativos constitucionais, cumprindo, com plenitude, o seu mister social.

Nesse diapasão, alguns exemplos podem servir de ilustração.

A primeira hipótese, idealizada pelo professor M. SC. Veronildes Moreira Santo, é a que se sobressai dos permissivos legais que autorizam a renúncia de determinado direito, como a grafada no art. 828 do Código Civil, quando esse diploma permite a renúncia do fiador ao seu benefício de ordem.

Ora, está-se diante de uma situação perfeitamente legal, mas que, ao nosso entender, não deve ser analisada de forma absoluta e abstrata.

Em verdade, a despeito de encontrarem-se fora de uma relação consumerista, muitos contratos civis são clausulados de forma padronizada e por adesão, o que põe em dúvida a validade daquela previsão. Não somente. Mesmo nos acordos livremente pactuados, a interpretação tópica deve ser utilizada na verificação da justiça contratual que necessariamente deve estar presente no pacto.

Assim sendo a renúncia do benefício de ordem, em determinadas hipóteses, como quando tal acordo constitui uma imposição do outro contratante, pode retirar desta cláusula a função social a que está subordinada e, de resto, atingir o princípio da justiça contratual.

A revisão contratual se operará, então, conservando o contrato, para alterar uma cláusula não porque está inserida nos moldes da alteração das circunstâncias contemporâneas, da lesão ou das cláusulas abusivas, mas porque fere preceito constitucional suficientemente amplo e vinculante.

Outrossim, a revisão tópica e emancipada pode ocorrer nos contratos de leasing, que rotineiramente guardam uma injustiça qualificada porque plenamente conservada pela lei em nome do lucro e dos interesses das financeiras.

O leasing, ou arrendamento mercantil, nasce de uma relação triangularizada por um contratante que vende o objeto, um que compra este do primeiro e paga o preço, e um que o obtém, sem ter comprado o referido bem, a título de aluguel com opção de compra ao final (GOMES, 2008, p.571).

O problema deste contrato surge da realidade atual, especialmente com a utilização do leasing financeiro para a aquisição de veículos. Na prática, várias pessoas adquirem carros e caminhões através de contratos de financiamento sem ter qualquer noção de como se opera aquela transação, não sabendo sequer o que é um arrendamento mercantil.

O fato é que, quando ocorre o inadimplemento, opera-se a busca e apreensão do veículo, perdendo o concessionário o bem e todos os valores despendidos a título de aluguel.

Há de se dizer que nestas situações a justiça deve encarar o fato concreto e revisar o contrato para resguardar o equilíbrio econômico, a função social, a boa fé, a solidariedade, a cooperação e principalmente a dignidade da pessoa humana.

Imagine-se a hipótese em que um caminhoneiro adquire o seu instrumento de trabalho e proceda ao pagamento corretamente, até que nas últimas prestações encontre-se em dificuldade financeira e não consiga honrar os seus compromissos. Pergunta-se, então: é justo que este trabalhador perca a única fonte de sobrevivência própria e de sua família, a fonte de renda que lhe servia ao pagamento do crédito, além de todos os valores pagos como "aluguel"?

Ao arrepio de muitos juristas, não é possível enxergar justiça contratual nesta situação. A análise profunda desta espécie de contrato, especialmente visualizada sob a ótica da prática usual de aquisição de veículos, indica claramente que tem por função social a venda à prestação do móvel.

Perceba-se que a estrutura do arrendamento é, pragmaticamente, uma ficção jurídica que esconde a natureza de contrato de compra e venda. Como bem ensina o mestre Gomes (2008, p.576), no caso de perecimento, quem suporta o risco é o utilizador e continuará pagando o aluguel se a coisa perece, ainda que a causa da destruição não lhe seja imputável. Quanto aos vícios da coisa, a norma é que o concedente não assume a correspondente garantia, salvo se tornam impossível a sua utilização. Ora, não se está aplicando a velha máxima do direito civil das obrigações consubstanciada no brocardo res perit domino segundo o qual a coisa perece para o dono? Então por que se fala em aluguel?

Tem mais. Conforme a lição de Gomes (2008, p.573), a opção de compra, faculdade do concessionário, sendo um elemento jurídico essencial à caracterização do leasing, determina a cobrança de aluguel superior ao valor de uso dos bens, porquanto esse aluguel é ao mesmo tempo parcela eventual do preço pelo qual serão comprados os bens arrendados. O próprio STJ, através da súmula 293 permitiu a cobrança antecipada do valor residual garantido (VRG). Ora, é nítida a intenção de mascarar a compra e venda de um bem mediante a utilização de uma ficção jurídica que diz existir, em vez daquela, um contrato de aluguel.

Argumenta-se de um lado que o arrendamento permite a redução de juros e o crescimento econômico já que o crédito restaria garantido diante de um eventual inadimplemento. Entretanto, não se pode entender que estes benefícios (se é que plenamente comprovados cientificamente) devem ser utilizados como autorizativos de um enriquecimento ilícito das financeiras - que mesmo com tanta inadimplência continuam a superar recordes de lucros – em detrimento de pessoas que já não têm renda suficiente, ainda perdem o pouco investido e pagam juros extorsivos.

Apenas uma atuação judicial tópica pode aferir a validade do combinado e revisar o contrato de maneira que atenda aos anseios de uma justiça contratual.

Por fim, utiliza-se do exemplo trazido pelo doutrinador Cordeiro (2009, p. 184-185), quando falando da importância da jurisprudência na formação da revisão dos contratos, colaciona julgamento do Tribunal de Alçada de Minas Gerais na Apelação Cível 264.003-9 que, no caso concreto, determinou-se o cumprimento de prestação contratual, preservando-se o contrato:

Plano de saúde. Transplante de órgão. Prestação de serviço. Cláusula contratual. Nulidade. CF/88. Lei 8.078/90. A saúde, como bem intrinsecamente relevante à vida e à dignidade humana, foi elevada pela atual CF/88 à condição de direito fundamental do homem. Assim, ela não pode ser caracterizada como simples mercadoria, nem confundida com outras atividades econômicas. O particular que presta uma atividade econômica correlacionada com serviços médicos e de saúde possui os mesmo deveres do Estado, ou seja, prestar assistência médica integral aos consumidores de seus serviços, entendimento esse que não se sustenta somente no texto constitucional ou no Código de Defesa do Consumidor – CDC (Lei 8.078/90), mas principalmente, na lei de mercado de que quanto maior o lucro, maior também é o risco. Em razão das peculiaridades fáticas e jurídicas do caso, deve o plano de saúde ressarcir o consumidor das despesa médico-hospitalares decorrentes de transplante de fígado.

Importante que se lembre, contudo, a relevância que o intérprete assumirá. Compõe a revisão contratual uma verdadeira cirurgia com todos os cuidados inerentes. O magistrado deverá ser absorvido pelo mundo real e complexo que envolve as relações privadas em seu contexto específico e concreto, balizando as posições jurídicas dos sujeitos, suas necessidades e o influxo que atividade judicial desencadeará, conseqüentemente, na vida das pessoas envolvidas no caso fático.

Em tese, não há crime em se pugnar por uma revisão contratual emancipada e tópica que aspire à utilização social de um pacto justo e equilibrado. Antes há o dever constitucional do direito de garantir uma prestação jurisdicional eficiente que atenda aos anseios de uma justiça contratual substancial.

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Sobre o autor
Ruano Fernando da Silva Leite

Assistente Técnico-Administrativo do Ministério Público do Estado da Bahia; Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Ruano Fernando Silva. Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17322. Acesso em: 18 abr. 2024.

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