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Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo

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02/09/2010 às 15:47
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6 CONCLUSÃO

A teoria contratual tradicional teve origem com as transformações de cunho social-econômico-filosófico operadas na modernidade, sobretudo com a tomada de poder pela burguesia, a consolidação do capitalismo e a influência de Kant. O Estado Liberal entendia o homem como o centro e o objetivo final de tudo e erigiu a liberdade, a autonomia da vontade e a apropriação de bens como princípios maiores de uma sociedade justa. Neste contexto, consectário lógico da igualdade formal entre os sujeitos, a força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) é formatadacomo verdadeira armadura ético-jurídica, uma garantia contra o sistema anterior em que existia hierarquia entre classes.

Em meio a este contexto, entretanto, começou-se a verificar que o apego exagerado à estrutura clássica do contrato trazia inúmeras injustiças, e o dirigismo contratual e o surgimento dos contratos de adesão apenas contribuíram para uma crise dos contratos.

Há necessidade, então, de reconstruir a concepção do contrato, relevante e indispensável instrumento jurídico, com base nas mudanças operadas contemporaneamente no direito brasileiro que leva em consideração a tábua axiológica constitucional. Hoje deve ser entendido como meio, também de circulação dos bens, mas, sobretudo, de persecução dos objetivos constitucionais da valorização do homem enquanto ser digno, do desenvolvimento de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades sociais e promoção do bem de todos.

Nesta senda, em que pesem os valores constitucionais, devem orientar o contrato, em todos os momentos de sua existência, os princípios sociais da dignidade da pessoa humana, da função social do contrato, do equilíbrio material, da boa-fé, da solidariedade, da cooperação e da conservação dos contratos. Não só. Como instrumento de efetiva justiça, impõe-se a revisão dos contratos como mecanismo veiculador destes princípios.

A revisão contratual nas hipóteses de cláusulas abusivas, lesão e alteração das circunstâncias contemporâneas à formação do contrato restou insuficiente diante do novo ordenamento jurídico instalado com a Constituição Federal de 1988 e o redimensionamento crítico do direito contemporâneo. Os referidos institutos compõem um arcabouço dogmático construído sob o amparo tecnicista moderno e, com exceção das cláusulas abusivas, nem sequer constituem inovação da época atual.

Em verdade, a revisão dos contratos encontra sustentáculo no próprio anseio de justiça, cujas bases principais estão expostas na Constituição, e restará autorizada sempre que os supracitados princípios sociais estiverem mitigados em um determinado pacto. Com base neste entendimento, poderá o juiz criar, modificar e excluir cláusulas contratuais, observando-se sempre a conservação do pacto de forma que se mantenha útil, justo e equilibrado. Trata-se verdadeiramente de uma interpretação tópica.

A legitimidade do magistrado para imprimir e formatar uma cláusula contratual antes inexistente ou disposta de modo contrário decorre não do método tecnicista, pela subsunção de um fato a uma norma casuística, mas sim do imperativo supremo do princípio supralegal da dignidade da pessoa humana e seus corolários lógicos, compostos pelos princípios sociais, os quais têm guarida na Constituição da República.

A revisão dos contratos deve ser operada sob uma análise tópico-sistemática que possibilite a resolução dos problemas a partir do caso concreto. O interesse de agir do contratante, autor da ação revisional, tem de ser aferido sob a análise do caso em sua inteireza e o direito material o respaldará com a aplicação dos famigerados princípios constitucionais, enquanto normas abertas e de conteúdo indeterminado.

A partir, então, de uma interpretação crítica, cabe ao julgador, observando o pedido da parte autora, extrair e formatar as cláusulas contratuais segundo os princípios constitucionais, sendo a razoabilidade e proporcionalidade os limites dessa intervenção judicial.

O maior óbice a este entendimento encontra-se na falaciosa alegação de insegurança jurídica. É que, infelizmente, ainda entende-se no direito brasileiro que a segurança contratual está na obrigatoriedade e intangibilidade do acerto, já que derivada da autonomia da vontade. Isto nada mais é do que a perpetuação de um modelo moderno que fora criado sustentado na liberdade irrestrita e imune à intervenção estatal, que tentava se libertar das amarras feudais.

Entretanto, a segurança jurídica como valor essencial e que não pode faltar no direito contratual, em verdade, hoje encontra guarida é no justo equilíbrio e na função social que cumpre. A insegurança e desconfiança, ao contrário, decorrem da pretensão de manutenção de institutos jurídicos concebidos séculos atrás sob premissas historicamente adequadas à situação pretérita e que não mais se sustentam. A revisão contratual deve ser entendida como verdadeiro instrumento de realização da justiça e materialização dos objetivos e princípios constitucionais.

Se a tese ora defendida é, ainda, para alguns, uma posição utópica e talvez de difícil aplicação, mesmo assim este trabalho terá logrado êxito em seu objetivo em afirmar a correição científica do quanto proposto.


REFERÊNCIAS

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Notas

  1. PEREIRA (2005, p. 11)
  2. GOMES (apud GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2006, p.4)
  3. GAGLIANO e PAMPLONA FILHO (2006, p.1)
  4. CUNHA (2007, p.24)
  5. ibidem, p.24
  6. CORDEIRO (2009, p.32)
  7. CUNHA (2007, p. 31)
  8. GOMES (1975, p.5)
  9. CORDEIRO (2009, p. 60)
  10. apud (CORDEIRO, 2009, p.69)
  11. ibidem, p.80
  12. BRAVO e SOUZA (2001, p. 8)
  13. GOMES (2008, p.9)
  14. ibidem, p.XI.
  15. CORDEIRO (2009, p. 45)
  16. CORDEIRO (2009, p. 3)
  17. BORGES (apud NEIVA, 2007, p. 2)
  18. CORDEIRO (2009, p.176)
  19. apud DIAS (2005, p. 2)
  20. CORDEIRO (2009, p. 170).
  21. apud CORDEIRO (2009, p. 171-172)
  22. SILVA (2007, p. 105)
  23. CORDEIRO (2009, p. 189-190)
  24. MARTINS-COSTA (apud CORDEIRO, 2009, p.191)
  25. ASSIS (2005, p.4)
  26. GONÇALVES (2006, p.33)
  27. TARTUCE (apud VENOSA, 2008, p. 365)
  28. apud BRAVO E SOUZA (2001, p. 9)
  29. apud LYRA JÚNIOR (2003, p. 12)
  30. CORDEIRO (2009, p. 166)
  31. CUNHA (2007, p. 110-111).
  32. CUNHA (2007, p. 153-153)
  33. ibidem, p. 155
  34. CUNHA (2007, p. 179)
  35. ibidem, p. 179-199)
  36. GONÇALVES (2006, p. 31)
  37. ASCENSÃO (apud CUNHA, 2007, p. 202)
  38. CUNHA (2007, p. 203)
  39. CORDEIRO (2009, p. 243)
  40. CUNHA (2007, p. 132-133)
  41. BARROSO (apud CORDEIRO, 2009, p. 168)
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  45. BEZERRA (2008, p. 205-206).
  46. CARVALHO (apud BEZERRA, 2008, p. 209).
  47. BEZERRA (2008, p. 211)
  48. CARVALHO (1996, p. 34)
  49. CORDEIRO (2009, p. 183)
  50. ibidem, p. 181
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Sobre o autor
Ruano Fernando da Silva Leite

Assistente Técnico-Administrativo do Ministério Público do Estado da Bahia; Bacharelando em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Ruano Fernando Silva. Revisão contratual como instrumento de justiça social: uma visão crítica e emancipada do direito contemporâneo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2619, 2 set. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17322. Acesso em: 28 mar. 2024.

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