SUMÁRIO: Introdução; 1. Ônus da prova; 2. Inversão do ônus da prova; 3. Direitos coletivos; 4. Da necessidade de inverter o ônus nas demandas coletivas; 5. Conclusão; Referências Bibliogáficas
RESUMO
Neste trabalho é analisado o processo coletivo sob o ângulo da sistemática probatória. Estuda-se o instituto do ônus da prova para, logo em seguida, ser feito o exame da inversão do mesmo e das hipóteses legais em que o ordenamento jurídico brasileiro a permite. Da inversão do ônus, passa-se à investigação dos direitos coletivos no cenário nacional. A partir disto, surge o momento de discorrer sobre a hipótese levantada, qual seja a de se inverter o ônus probatório em favor da coletividade quando esta litiga em juízo.
Palavras-chave: DIREITO – PROCESSO COLETIVO – ÔNUS DA PROVA
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, cada vez mais as demandas coletivas têm se tornado uma realidade no Brasil. Fenômeno cuja importância dispensa comentários, a defesa dos interesses coletivos em juízo tem despertado nos estudiosos do Direito um sentimento de engajamento social e político. Defendendo os direitos supraindividuais através de suas teses e perquirições, o jurista se aviva e se volta para os problemas sociais e resplandece sua consciência política, na mesma medida em que se defende dos ataques insidiosos daqueles que o enxergam como um vetusto glosador escondido atrás de seus compêndios.
Ora, mas não são as razões de foro íntimo que movem a investigação aqui engendrada, mas sim a necessidade de se dar maior eficácia às postulações coletivas que alçam ao Judiciário. Através da hipótese defendida, não se quer outra coisa que armar a coletividade de um instrumento processual de privilégio para possibilitar a consecução da efetiva tutela de seus interesses. Para tanto, fundamental que se indiquem as etapas que deverão ser superadas em nosso estudo, de maneira a propiciar a sustentação da tese e uma conclusão abalizada ao final.
A primeira seção deste trabalho compreende a exposição do instituto processual do ônus da prova, visando a permitir um melhor entendimento da questão que se ventila. Nesse momento, será possível discorrer também sobre as provas de uma maneira geral e seu objetivo no processo civil. Em seguida, passa-se ao problema da inversão propriamente dito. Estudaremos as situações em que o ordenamento jurídico nacional permite e vislumbra a possibilidade da inversão do ônus. Também, nessa parte, reservar-se-á um parágrafo para se tratar do Código de Defesa do Consumidor e de sua importância para o amadurecimento dos direitos coletivos no Brasil.
Por conseguinte, a próxima seção não poderia ser outra que não uma exposição dos direitos coletivos de maneira geral. A grande importância da análise desses direitos é reforçar as características que lhes são próprias, bem como embasar a tese que defendemos, dando-lhe substrato principiológico e jurídico. Assim, através de uma explanação clara dos direitos metaindividuais, poderemos galgar o derradeiro degrau, ou seja, a proposição da inversão do ônus da prova em favor da coletividade em qualquer demanda judicial que tenha por foco interesses coletivos.
Como de praxe, a exposição se encerra no fecho que deverá nos propiciar a conclusão. Nessa ocasião, serão uma vez mais relembrados os pontos cruciais debatidos, procurando-se amarrar o tema. Outras considerações poderão vir à tona na conclusão conforme o transcorrer do exame, mas sempre terão cunho elucidativo.
1.Ônus da prova
Iniciamos nossa análise trazendo para o cerne da proposta as questões relativas ao ônus da prova. Se rememorarmos o conceito de ônus, teremos que se refere a encargo, melhor dizendo, a um dever que alguém assume para com algo em decorrência de uma situação ou ato. Difere da obrigação, porque o seu descumprimento não é ilícito e não gera o efeito do inadimplemento ou da mora, além de não poder ser convertido em pecúnia [01]. Nas palavras de Francisco Amaral, o ônus ou encargo seria algo "imposto a uma liberalidade com o fim de limitá-la [02]".
Embora essa se constitua numa definição oriunda do Direito Civil, no campo processual não ocorre grande diferença. Se aferirmos que o ônus gera uma limitação a alguém em função de uma situação ou ato, trazendo para o contexto do processo, o ônus da prova gera uma limitação ao conteúdo probatório, consubstanciado nas alegações da parte. Assim, provém disto o célebre jargão de que "quem alega deve provar", sendo diretriz geral da programática deste instituto.
Apenas para elucidar a questão, lembremos que a prova se presta a abalizar um fato ou uma alegação de quem postula em juízo, tem a função precípua de convencer o juiz da causa da verossimilhança do que se afirma. Portanto, apenas os fatos são objeto de prova, uma vez que o juiz conhece o direito, exceção feita às normas especiais. Contudo, essa afirmação gera um problema, o de se saber se uma questão é de fato ou de direito, havendo grande celeuma doutrinária neste ponto [03].
Entretanto, não nos cabe neste opúsculo adentrar nesta questão, ficando apenas a referência. No sucedâneo processual, a querela se dá mesmo no problema de se saber quem deve produzir a prova, ou seja, a quem cabe o ônus. Liebman, ao tratar do ônus da prova, pondera:
Da necessidade para o juiz de julgar, em princípio, com base nas provas produzidas ou propostas pelas partes, deriva a conseqüência de que ao ônus de alegar os fatos relevantes da causa se acrescenta para as partes o ônus de prová-los [04].
Assim, surge a questão da distribuição do ônus da prova, matéria de suma importância, que resplandece no momento do julgamento da lide, no qual, a parte a quem incumbia provar e não o fez será apenada com a sucumbência. Por isso, começamos nossa exposição afirmando que o ônus se constitui num dever. A parte que não cumpre seu dever de provar o que alega não terá suas pretensões atendidas.
Façamos um breve apanhado das principais teorias acerca do ônus da prova. Segundo a teoria utilitarista de Bentham, a prova deveria ser produzida por que tivesse maior facilidade em fazê-lo. Webber acreditava que o ônus de provar incumbe a quem pleiteia uma liberação ou um direito, com relação a fatos ainda incertos (não notórios). A doutrina de Hollweg, que contava com adeptos do quilate de Savigny e Windscheid, baseava-se na presunção de veracidade do fato fundado. Fitting opôs-se a seus predecessores no sentido de que somente as alegações de mudança num estado anterior deveriam ser provadas. E, ainda, Gianturco pontificava que o ônus cabe a quem da prova aferir vantagem.
Quando o assunto era polêmico em nosso Direito, à época da feitura do Código de Processo Civil de 1939, o professor Soares de Faria soube dissecar bem a questão. Em dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para consecução do cargo de professor da disciplina que ainda era chamada de Direito Judiciário Civil, o mestre pondera que as teorias todas foram beber na Jurisprudência romana, resultando, por exemplo, em nosso ordenamento na regra de que o autor deve provar o fundamento de sua ação e o réu de sua exceção [05].
Chiovenda encara o ônus da prova a partir do princípio da igualdade entre as partes. Destarte que o autor precisa provar os fatos que constituam seu direito e ou réus os que impeçam o do autor. Carnelutti trabalha a temática segundo o interesse. Tem o dever de provar quem tem o interesse de afirmar ou infirmar. Ele admite a inversão legal do ônus. Betti amplia a visão de Carnelutti e transforma o interesse de afirmar em ônus de afirma, excetuando a exemplo os fatos notórios.
Contudo as doutrinas que mais esmiuçaram o tema são a de Rosenberg e a de Michelli. Rosenberg afere que a distribuição do ônus se faz com base num critério de diferença de preceitos jurídicos. Não se trata de provar fatos, mas sim de comprovar a efetivação dos pressupostos fáticos de incidência de uma norma jurídica que acolha a pretensão do autor ou o rechaço do réu. Michelli diverge de Rosenberg na medida em que concebe o processo de forma concreta, pois que a adequação dos fatos às normas abstratas é insuficiente. É preciso que as pretensões concretas das partes sejam amparadas e se coadunem com a previsão normativa. Entretanto, não faltam os que procuraram conciliar as doutrinas dos dois mestres, como Devis Echandía.
Hodiernamente, o Código de Processo Civil brasileiro, açambarcando a doutrina de Carnelutti, dispõe o seguinte a respeito do ônus da prova:
Art. 333. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:
I - recair sobre direito indisponível da parte;
II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.
Todavia, a dicção do artigo mencionado tem merecido críticas em razão de sua insuficiência e por não se indicar o critério adequado para a qualificação do fato dentro das categorias elencadas no diploma processual [06]. Encerrando-se a questão do ônus e de sua distribuição, atente-se que ao autor compete provar fato constitutivo de seu direito e ao réu os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor. A primeira vista, o demandado se assenta em posição confortável, vez que somente deverá fazer prova em contrário. Dado o fato que, em muitas ocasiões, a prova constitutiva é difícil de ser produzida, a lei prevê hipóteses de presunção juris tantum (relativa) e de inversão do ônus.
2.Inversão do ônus da prova
Temática bastante debatida é a que concerne à possibilidade de se inverter o ônus da prova. A inversão é do dever. Na prática, opera-se da seguinte maneira: não é o autor que deverá provar seu direito e sim o réu que deverá provar que o autor não possui o direito que alega. O que se dá é uma presunção relativa da veracidade das alegações do autor. É diferente do que ocorre no processo penal, em que o réu nunca deve provar sua inocência, mas sim a acusação provar a culpa dele.
Antes de nos debruçarmos neste tema, convém trazer a lume duas considerações de Goldschmidt. Primeiro: a prova se dá mediante um ato de prova, ou seja, provar é um ato processual. Deve ser requerido, obedece a prazo e é realizado pela parte. Observe-se que ele não admite os poderes instrutórios do juiz, consagrados modernamente (v.g. inspeção judicial). Segundo: é crucial que a prova produzida tenha o escopo de solucionar a questão e esteja amparada de fundamento, ou seja, defende o princípio da adequação probatória [07]. A importância de resgatar essas assertivas reside no fato de a inversão sempre se dar em relação às partes. Portanto, invertido o ônus, a outra parte recebe um ato processual a mais para praticar, sob pena de preclusão.
Pois bem, passemos agora às hipóteses em que se admite a inversão do ônus no ordenamento processual brasileiro. Notadamente, está no Código de Defesa do Consumidor em seu art. 6º, VIII a possibilidade de se inverter o encargo de provar. Continua o dispositivo discriminando as hipóteses em que a inversão é permitida como sendo quando o juiz verificar a verossimilhança da alegação ou o consumidor se encontrar em posição de hipossuficiência.
Ao nosso entendimento, parece mais sensato pensar em inversão do ônus da prova somente na situação em que o consumidor estiver em flagrante disparidade em relação ao fornecedor. Esse abismo sempre se dá quando se verificam fatores como a carência de meios técnicos, econômicos ou jurídicos. Nestes casos, a inversão é recomendada. Ainda, há quem acredite que o ônus nestas relações deve ser dado a quem tiver maior possibilidade de produzir a prova [08]. Algo que não deixa de ser verdade, mas que, na maioria das vezes, é o fornecedor mesmo o mais apto. Assim, se o diploma consumerista é destinado a proteger o consumidor, a hipótese de inverter-se o ônus da prova é razoável.
Deste modo, o que se verifica é que a inversão do ônus da prova é matéria excepcional. O grande princípio norteador deste instituto é a igualdade das partes. Portanto, quando o equilíbrio processual é ameaçado pela dificuldade de uma parte de provar seu direito de tal maneira que corre o risco de tê-lo perecido, imperioso que se aplique o permissivo processual da inversão. Contudo, é um benefício que só pode ser concedido perante a prova da hipossuficiência.
3.Direitos coletivos
Trataremos agora dos direitos coletivos. A temática dos direitos difusos e coletivos tem suscitado grandes divagações entre os doutrinadores do Direito. Seja pela relativa novidade ou pela abrangência de questionamentos, o tema desperta profícua discussão teórica, bem como instiga os operadores do Direito na prática cotidiana, sobejamente os processualistas. Não é segredo que a processualística caminha no sentido da instrumentalização do processo [09], rechaçando o formalismo barato e trazendo novas proposições como a efetividade do Direito, o acesso à Justiça e o processo coletivo. O moderno Direito Processual, conquanto seja ramo do Direito, vestido da dogmática jurídica, tem abraçado a zetética como imperativo teleológico. Foi, sobretudo, a coletivização dos direitos a responsável por impelir o processo a buscar novas formas de solução de litígios por meios de novos instrumentos processuais – ações – visando tutelar os direitos transindividuais.
A nova Carta Magna brasileira de 1988, já com a alcunha de Constituição Cidadã, logrou positivar em seu corpo tanto os direitos metaindividuais quanto propiciar abrigo a institutos processuais de garantia dos direitos nela previstos. Os direitos coletivos, na denominação que lhes é dada pela Lei Maior, estão distribuídos nos artigos 5º e 6º, mas encontram-se direitos desta natureza também no título da Ordem Social, como o direito ao meio ambiente [10]. Outros direitos da mesma forma coletivizados são os dos consumidores. O Código de Defesa do Consumidor em seu artigo 81 traça alguns parâmetros de tutela dos direitos transindividuais. A Constituição é solene ao garantir a defesa do patrimônio público, da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico-cultural a qualquer cidadão por meio da Ação Popular (art. 5º, LXXIII).
Pode-se dizer que os direitos chamados de coletivos em sentido amplo são relativamente novos, não em sua essência, mas no fato de terem sido e ainda estarem sendo positivados recentemente no corpo dos ordenamentos e nas cartas constitucionais das nações. Assim, é imprescindível uma explanação acerca dos mesmos. Eles se dividem em coletivos, difusos e individuais homogêneos, segundo a doutrina moderna e mais acurada [11]. Atente-se para o fato de a classificação empregar aqui o termo "coletivos" em sentido estrito, pois coletivo lato sensu designaria toda a categoria abrangida pelos direitos que transcendem a individualidade da pessoa humana.
A classificação se dá com base em critérios como a transindividualidade, podendo ela ser essencial (coletivos e difusos) ou acidental (individuais homogêneos) decorrente apenas da lei ou da situação fática [12]. Outro fator é a indeterminação dos sujeitos, característica intrínseca dos direitos difusos, sendo que os coletivos e os individuais homogêneos têm sujeitos identificados ou identificáveis. Outro ponto concerne ao modo de agregação dos sujeitos. Para os interesses difusos, nunca há uma relação jurídica base, apenas uma situação de fato, como ocorre com os individuais homogêneos. Os sujeitos de direitos coletivos estão ligados por uma situação jurídica.
De forma sintética, pode-se inferir que os difusos, nessa divisão, seriam aqueles direitos transindividuais indivisíveis em que não é possível identificar uma coletividade específica. Os coletivos seriam também indivisíveis, no entanto, pode-se delimitar uma coletividade abrangida por eles, como os moradores de um bairro, ou a categoria dos metalúrgicos. Por fim, os individuais homogêneos seriam aqueles que transcendem a esfera individual, contudo, guardam caráter de divisibilidade, como o que acontece no litisconsórcio simples.
Deste modo, suscita-se a necessidade de uma sistematização dos direitos metaindividuais, dada a grande abrangência da temática, sendo que alguns chegam a identificá-los com os princípios gerais do Direito [13]. Por isso, a pertinência de nosso estudo, uma vez que é necessário deixar-se claro que os direitos coletivos não são princípios e sim que há princípios que devem nortear sua tutela e aplicação, sendo que um deles poderia bem ser o da inversão do ônus da prova.
É paradigmática a lição de Bobbio neste sentido de que "(...) O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje não é tanto de justificá-los mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político [14]". Ora, encarando-se a coletivização dos direitos do ponto de vista processual, sobejamente em se pensando o Direito como meio de transformação social, invocamos o instituto da inversão do ônus probatório para revestir a coletividade de uma posição preponderante na prestação jurisdicional, como veremos adiante.
4.Da necessidade de inverter o ônus nas demandas coletivas
Vimos que o instituto da inversão do ônus da prova ganhou relevo com a aprovação do Código de Defesa do Consumidor. Ora, nesse diploma está presente uma das grandes definições do ramo coletivo do Direito, aquela que reparte em difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos os direitos transindividuais. Neste diapasão, o art. 81 do CDC:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Assim sendo, ao permitir a defesa dos direitos dos consumidores em juízo de forma coletiva, o código abriu espaço para que também nesta defesa se fizesse uso do instituto da inversão. Portanto, fazendo-se uso de uma interpretação sistemática da lei, também nas demandas coletivas a inversão do ônus probatório se aplica, pois à coletividade que haja tomado parte numa relação de consumo se estendem os dispositivos do código [15].
Muito bem, a porta está aberta. Para que possamos conceber a inversão do ônus da prova em uma demanda que tenha por objeto interesses coletivos, precisamos ter em mente duas premissas. A primeira diz respeito ao legitimado. Somente nas demandas em que o Ministério Público não for autor é que se pode pensar em inversão do ônus, já que o parquet já dispõe de um meio de instrução de soberba importância: o inquérito civil. Deste modo, aplicar a inversão neste caso colocaria o réu em flagrante disparidade processual. O MP é órgão dotado de poderes investigativos, por isso não precisa do benefício da inversão já que não é, de maneira alguma, hipossuficiente.
A segunda premissa aborda a natureza dos direitos coletivos. Ninguém questiona serem interesses, os quais, toda a coletividade, melhor dizendo, toda a sociedade, visa estarem assegurados. Assim, seriam eles integrantes do que chamamos interesse público? Antes de investigarmos a fundo os direitos coletivos, convém mencionar a diferença entre interesse público e privado.
Não é segredo que tal distinção repousa na ancestral dicotomia público-privado, concluindo-se que os interesses públicos são aqueles regidos pelos princípios e regras de direito público (legalidade, publicidade, etc) e os privados os regidos pelos princípios e regras de direito privado (autonomia da vontade, liberdade contratual, etc) [16]. Contudo, tal separação não é satisfatória, pois é possível que os interesses coletivos tenham relação com os privados como nos individuais homogêneos.
Assim, podemos dizer que existem duas espécies de interesses: os puramente individuais (o interesse do locador de receber o aluguel, por exemplo) e os metaindividuais (o interesse da sociedade em ver preservado o meio-ambiente, por exemplo). A questão é que os interesses coletivos devem ser públicos, para que possam ser tutelados por princípios e regras de direito público, uma vez que é da matriz teleológica do Estado Democrático de Direito a consecução do bem comum [17], o qual só se viabiliza quando os direitos comuns do povo recebem tutela adequada.
Todavia, não é preciso grande divagação para se saber que, na realidade, o interesse público é o interesse político do Estado, consubstanciado na figura do governo. Citem-se as robustas cláusulas da reserva do possível, excrescências jurídicas, que sempre se invocam quando o Estado se vê obrigado a ceder numa demanda coletiva. Dessa forma, resta claro que os interesses supraindividuais estão no prato mais leve da balança. Por conseguinte, qualquer demanda coletiva não promovida pelo MP sempre estará tratando de interesses de que são titulares sujeitos hipossuficientes.
A título de exemplificação, poderíamos citar Mancuso, que comenta haverem dois meios de prova cruciais na ação popular: a documental e a pericial [18]. Ora, não é difícil imaginar os transtornos e os custos que podem ameaçar os outros legitimados não dotados de inquérito civil. Por isso, quando os "mais fracos" postulam em juízo, ainda que representados por associações ou entidades de classe, deve ser considerada, do ponto de vista processual, sua maior dificuldade em produzir as provas necessárias para constituir seus direitos. Daí o porquê de o Ministério Público ter assumido posição preponderante no cenário nacional como grande bastião da defesa dos direitos coletivos.
Por outro lado, a despeito da imaturidade democrática do Brasil, Rodolfo de Camargo Mancuso infere que o parquet tem desempenhado a contento suas funções, principalmente no que concerne à ação civil pública, haja vista que o número de ações desta natureza propostas pelo órgão supera em muito o número de ações propostas pelos outros co-legitimados do art. 5º da Lei n. 7347/85 [19]. Porém, sustentamos não ser em virtude da primorosa atuação do Ministério Público que os outros legitimados possuem menor número de feitos ajuizados, mas sim em razão de que quando vão demandar sempre encontram entraves probatórios a lhes dificultar o acesso à Justiça. Ressalte-se:
A observância pelo Estado da lei – e, então, o controle desta observância pelo próprio Estado – é a única garantia da legitimidade dessa instituição. Por seu turno, as demandas coletivas representam talvez o mecanismo mais moderno de democracia participativa e, assim, de controle social daquela observância, o que as eleva à categoria de instrumento fundamental na manutenção do Estado Democrático de Direito. [20]
Neste sentido, esclarecemos que a posição atual da doutrina concebe a hipossuficiência não somente do ponto de vista econômico, mas também do viés da impossibilidade de informação. No entanto, não se pense que a inversão desonera totalmente o beneficiado, como se não precisasse provar nada. Pelo contrário, deve ele provar que preenche os requisitos legais de poder invocá-la. Destarte, as associações, as entidades de classe, o cidadão (na ação popular), os sindicatos, entre outros precisam ser contemplados com essa possibilidade processual.