RESUMO: O presente artigo visa analisar as principais questões e modificações surgidas com o advento da Lei 12.015/2009, responsável pela modificação do Título VI da Parte Especial do Código Penal, que dispõe sobre os crimes contra a dignidade sexual. Pelo fato de a mudança ter envolvido praticamente todos os dispositivos anteriormente existentes, tornou-se necessária a análise pormenorizada, artigo por artigo, de forma a expor as opiniões de importantes doutrinadores, sem deixar de se atentar às peculiaridades da norma penal. Ademais, obriga a uma maior atenção do exegeta à costumeira falta de técnica do legislador pátrio na elaboração estrutural e semântica do texto legislativo. Desse modo, tornou-se impreterível a observância dos princípios penais vigentes, bem como a utilização dos instrumentos hermenêuticos adequados, com o intuito de se precaver de algumas ulteriores discussões doutrinárias e de possibilitar a realização da justa interpretação normativa.
Palavras-chave: 1. Alterações. 2. Código Penal 3. Crimes 4. Dignidade Sexual 5. Lei 12.015/2009.
RESUMEN: El presente artículo pretende analizar las cuestiones clave y los cambios derivados de la promulgación de la Ley 12.015/2009, responsable de la modificación del Título VI de la Sección Especial del Código Penal, que trata de delitos contra la dignidad sexual. Debido a que los cambios han involucrado a prácticamente todas las disposiciones ya existentes se hizo necesario analizarla detalladamente, artículo por artículo, para exponer las opiniones de importantes doctrinarios, sin dejar de prestar atención a las peculiaridades de la norma penal. Por otra parte, se requiere una mayor atención del exégeta a la habitual ausencia de técnica del legislador patrio en la creación estructural y semántica del texto legislativo. Por lo tanto, se hizo imperativo defender los principios penales vigentes, así como el uso de las herramientas hermenéuticas adecuadas, con el fin de evitar las discusiones doctrinarias posteriores y permitir la realización de la justa interpretación normativa.
Palabras claves: 1. Cambios. 2. Código Penal. 3. Delitos 4. Dignidad sexual 5. Ley 12.015/2009.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL; 2.1 Art. 213 – Estupro; 3 DOS CRIMES SEXUAIS CONTRA VULNERÁVEL; 3.1 Art. 217-A – Estupro de vulnerável; 3.2 Art. 218 – Corrupção de menores; 3.3 Art. 218-A – Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente; 3.4 Art. 218-B – Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável; 4 DAS DISPOSIÇÕES GERAIS; 4.1 Art. 225 – Ação penal; 4.2 Art. 226 – Aumento de pena; 5 DO LENOCÍNIO E DO TRÁFICO DE PESSOA PARA FIM DE PROSTITUIÇÃO OU OUTRA FORMA DE EXPLORAÇÃO SEXUAL; 5.1 Art. 227 – Mediação para servir a lascívia de outrem; 5.2 Art. 228 – Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual; 5.3 Art. 229; 5.4 Art. 230 – Rufianismo; 5.5 Art. 231 – Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual; 5.6 Art. 231-A – Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual; 6 DO ULTRAJE PÚBLICO AO PUDOR; 6.1 Art. 233 – Ato obsceno e Art. 234 – Escrito ou objeto obsceno; 7 DISPOSIÇÕES GERAIS; 7.1 Art. 234-A – Aumento de pena; 7.2 Art. 234-B; 7.3 Art. 234-C; 8 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS
1. INTRODUÇÃO
A Lei 12.015/2009 trouxe significativas mudanças no Código Penal pátrio, de forma a alterar primordialmente o Título VI, a começar pela sua intitulação, que antes era "Dos crimes contra os costumes" para "Dos crimes contra a dignidade sexual". Esse foi um indicativo da intenção do legislador em se adaptar às mudanças sociais ocorridas ao longo dos anos, bem como aos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais sobre a matéria.
A nova divisão no Código Penal agora dispõe dos seguintes Capítulos: "Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual", "Capítulo II - Dos crimes sexuais contra vulnerável", "Capítulo III – Do rapto" (com o conteúdo revogado pela Lei 11.106/2005), "Capítulo IV – Disposições gerais", "Capítulo V – Do lenocínio e do tráfico de pessoa para fim de prostituição ou outra forma de exploração sexual", "Capítulo VI – Do ultraje público ao pudor" e "Capítulo VII – Disposições gerais".
Juntamente com as mudanças, surgem novas críticas, lacunas e imprecisões. Na jurisprudência são escassas as decisões relacionadas ao tema, o que se justifica pelo curto período de vigência da Lei. Por esse motivo, cabe ao jurista realizar o estudo da norma, não a isentando de críticas, de forma a prevenir o Direito de qualquer argumento falacioso, tendente a desvirtuar o real valor normativo da Lei.
É esse o objetivo do presente artigo, ao analisar cada um dos dispositivos inseridos nos Capítulos acima descritos, sem a pretensão de esgotar o tema, muito menos de discorrer sobre questões já consolidadas pelos juristas, porém, buscando sempre alcançar a melhor interpretação jurídica das normas em estudo.
2. DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL
2.1 ART. 213 – ESTUPRO
Estupro
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 2º Se da conduta resulta morte: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Uma das principais mudanças advindas com a Lei 12.015/2009 foi a unificação dos crimes de estupro e de atentado violento ao pudor sob a única denominação "estupro", o que veio a acarretar na impossibilidade de aplicação do concurso material nas modalidades "conjunção carnal" e "outro ato libidinoso", vez que ambas estão dispostas no caput do art. 213 do CP, formando um crime único. Por ser benéfica, essa alteração deverá retroagir, devendo atingir todos os fatos anteriores à vigência da Lei.
Por outro lado, a nova Lei possibilita a aplicação da continuidade delitiva para ambas as modalidades, o que não ocorria anteriormente, devido à existência de duas espécies delitivas diferentes. Também, agora poderá ocorrer a consumação do estupro sem o contato físico, na modalidade "outro ato libidinoso", o que só ocorria no delito de atentado violento ao pudor.
Tese que poderá ser defendida por doutrinadores, principalmente advogados, é a da ocorrência do abolitio criminis, pela supressão do art. 214 do CP. Apesar de todo esforço que se possa fazer para a sua admissão, observa-se que a conduta ainda é reprovável, tendo ocorrido apenas um deslocamento da norma prevista no antigo art. 214 do CP para o art. 213 do CP. É o que defende corretamente Evandro Fabiani Capano (2009, p. 70), ao dizer que "permanecendo a conduta típica em lei e com potencial ofensivo à sociedade, não há como defender que houve abolitio criminis".
No que concerne ao tipo subjetivo do delito em tela, a doutrina ainda diverge quanto à necessidade do dolo específico. Para Nucci (2009, p. 16), "exige-se o elemento subjetivo específico". No mesmo sentido é o entendimento de Rogério Sanches Cunha (2009, p. 39). Em oposição, fazem coro: Francisco Dirceu Barros (2010, p. 06) e André Estefam (2009, p. 40).
Quanto à classificação do delito, anteriormente à Lei 12.015/2009, o delito de estupro era considerado "bi-próprio", pois exigia condição especial de ambos os sujeitos (homem x mulher). Atualmente, ele se classifica como "bi-comum", pela falta dessa exigência. Já em relação à hediondez, a mudança deixa claro que o crime é hediondo em todas as suas formas. Nesse aspecto, saliente-se que o legislador trouxe um grande avanço na direção da pacificação de discussões doutrinárias e judiciais.
Os novos parágrafos do artigo 213 trazem as formas qualificadas do delito em tela. Agora, pune-se não só a conduta que resultar lesão corporal grave ou morte, mas também se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos, nos termos do §1º. Vale tecer algumas críticas advindas com essa mudança. A primeira, apontada por Nucci (2009, p. 25), refere-se ao texto do §1º. Para ele, ocorreu "o equívoco da inserção da partícula alternativa ou, quando o correto seria "e". Rogério Sanches (2009, p. 37) e André Estefam (2009, p. 45) apontam uma lacuna da norma, pelo fato de o tipo não abarcar a vítima que for violentada no dia do seu 14º aniversário. Para o primeiro, o estupro seria simples, caso consentido, fato atípico. Já o segundo preconiza a aplicação do estupro qualificado, sob o argumento da exclusão do enquadramento do estupro de vulnerável, através da aplicação da analogia in bonam parte.
Vale discorrer, também, sobre a controvérsia que reside na incidência ou não do dolo nessa qualificadora. Para Nucci (2009, p. 26), "todo resultado qualificador pode ser alcançado por dolo ou culpa". Em sentido contrário, Greco (2009, p. 16) assevera que incide a qualificadora apenas a título de culpa, pelo fato de o crime ser preterdoloso. O mesmo autor levanta a tese da possibilidade da tentativa qualificada desse delito em situações do caso concreto, por exemplo, no caso em que o agente, querendo estuprar a vítima, a derruba, causando-lhe a morte antes de lograr o feito. Seria essa uma exceção à regra de inadmissibilidade de tentativa para crimes preterdolosos. Greco (2009, p. 18) embasa a sua tese, utilizando-se dos seguintes argumentos:
No entanto, quase toda regra sofre exceções. O que não podemos é virar as costas para a exceção, a fim de se reconhecer aquilo que, efetivamente, não ocorreu no caso concreto.
Veja-se o exemplo do estupro, praticado através da conjunção carnal, que se consuma com a penetração, total ou parcial, do pênis do homem na cavidade vaginal da mulher. Se isso não ocorrer, o que teremos, no caso concreto, será uma tentativa de estupro. Portanto, há necessidade inafastável de se constatar a penetração para efeitos de reconhecimento do estupro, desde que, obviamente, outros atos libidinosos não tenham sido praticados. Se é assim, como no caso de ocorrência de um dos resultados que qualificam o crime poderíamos entender pelo delito consumado se não houve a conjunção carnal?
Aqueles que entendem que o delito se consuma com a ocorrência das lesões graves ou da morte justificam seu ponto de vista dizendo que, se reconhecêssemos a tentativa, a pena seria menor do que aquela prevista para o delito de lesão corporal seguida de morte. Isso acontece, realmente, quando se leva em consideração a pena máxima cominada em ambos os delitos, muito embora a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009 a tenha aumentado para 30 (trinta) anos, e não no que diz respeito à pena mínima, que será idêntica.
É claro que o Código Penal não é perfeito, como nenhuma outra legislação o é, seja nacional ou estrangeira. As falhas existem. Entretanto, raciocinando no contexto de um Estado Social e Democrático de Direito, não podemos permitir que essas falhas sejam consideradas em prejuízo do agente. Não podemos simplesmente considerar como consumado um delito que, a toda prova, permaneceu na fase da tentativa, raciocínio que seria, esse sim, completamente contra legem, com ofensa frontal à regra determinada pelo inciso II do art. 14 do Código Penal.
Dessa forma, entendemos como perfeitamente admissível a tentativa qualificada de estupro.
Importante mencionar como ficaram algumas questões curiosas referentes ao delito em estudo. Para Greco (2009, p. 35), pacifica-se a antiga discussão sobre qual delito sofria o transexual: se era o atentado violento ao pudor ou o estupro. Com a fusão dos dois tipos penais, "a relação sexual forçada conduzirá, obrigatoriamente, ao reconhecimento do delito de estupro", bem como, do mesmo modo que ocorre com o agente com a impotência generandi (incapaz de procriar), o agente com a impotência coeundi (sem ereção) também passa a responder pelo delito de estupro, quando praticar outros atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
A despeito das mudanças, subsiste a necessidade de cautela por parte do julgador dessa espécie de delito na análise da verossimilhança das provas. Se por um lado, a palavra da vítima continua a ser de extrema importância, dada à costumeira ausência de testemunhas oculares, por outro, devido à denominada "síndrome da mulher de Potifar", continua tênue a linha que separa a punição justa da injusta.
Por fim, vale registrar que a Lei 12.015/2009 não fez nenhuma referência ao Código Penal Militar (Dec-Lei 1.001/69), que ainda dispõe sobre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Segundo Capano (2009, p. 44), as disposições do Código Penal Militar continuam tendo vigência. A nova Lei também nada dispôs em relação ao art. 59 do Estatuto do Ìndio (Lei 6.001/73), que reza que: "no caso de crime contra a pessoa, o patrimônio ou os ‘costumes’, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena, a pena será agravada de um terço". Para Greco (2009, p. 47), deve haver uma adaptação interpretativa, "entendendo-se a palavra ‘costumes’ como dignidade sexual".
2.2 ART. 215 – VIOLAÇÃO SEXUAL MEDIANTE FRAUDE
Violação sexual mediante fraude (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
(Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)Art. 215. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Parágrafo único. Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
O tipo penal em análise, conhecido como "estelionato sexual", do mesmo modo que ocorreu com o delito de estupro, resultou da unificação de dois tipos penais - os antigos artigos 215 e 216 do Código Penal - de forma a englobar a conjunção carnal e outro ato libidinoso no mesmo tipo.
Também ocorreu a elogiável supressão dos termos "mulher" e "virgem", que se encontravam no parágrafo único, anteriormente reconhecidos como causas qualificadoras. Segundo Nucci (2009, p. 27), "é o fim de um ciclo de machismo e retrocesso", o que resulta na qualificação do delito como misto alternativo e comum. Do mesmo modo, é merecedora de aplausos a inclusão da multa pela Lei 12.015/2009, nos casos em que houver a obtenção de vantagem econômica, devendo se aplicar a regra constante do artigo 49 do CP.
Por fim, vale dizer que o julgador deve estar atento ao tênue limite da tipicidade do delito em tela, visto que a fraude não pode chegar a anular a capacidade de resistência da vítima, "caso em que estará configurado o delito de estupro de vulnerável".
2.3 ART. 216-A – ASSÉDIO SEXUAL
Assédio sexual (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
(Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função.
Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos. (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
Parágrafo único. (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.224, de 15 de 2001)
§ 2º A pena é aumentada em até um terço se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
O dispositivo em tela existe desde 2001, tendo a Lei 12.015/2009 inserido apenas a causa de aumento de pena para o caso de a vítima ser menor de 18 (dezoito) anos. Vale registrar a costumeira confusão do legislador, ao elaborar o §2º mesmo ante a inexistência do §1º.
Não obstante a citada desordem numérica, Nucci (2009, p. 32) também alerta sobre a ausência de técnica legislativa na redação que dispõe sobre a causa de aumento de "até um terço" ao invés de "um terço". Segundo ele, isso dará ensejo à possibilidade de o magistrado fixar "apenas um dia", sendo "tal medida incompatível com o cenário das causas de aumento, diversas que são das agravantes".
Diante das considerações acima mencionadas pode-se deduzir que, na modificação do delito em tela, o legislador explicitou a sua falta de afinidade com a legislação penal, o que dá ensejo às injustiças que poderiam ser evitadas.