SUMÁRIO: 1. Prequestionamento: origem, conceito e natureza jurídica. – 2. Prequestionamento implícito, explícito e a divergência entre o STJ e o STF. – 3. Análise de caso: A flexibilização do posicionamento do STF. – 3.1. Reconstrução fática. – 3.2. O Recurso Extraordinário como forma de controle abstrato de constitucionalidade. – 3.3. O princípio da instrumentalidade - 4. Conclusões. – 5. Bibliografia.
Acórdão
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDORES DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. REAJUSTE DE VENCIMENTOS CONCEDIDO PELA LEI MUNICIPAL 7.428/94, ART. 7º, CUJA INCONSTITUCIONALIDADE FOI DECLARADA PELO PLENO DO STF NO RE 251.238. APLICAÇÃO DESTE PRECEDENTE AOS CASOS ANÁLAGOS SUBMETIDOS À TURMA OU AO PLENÁRIO (ART. 101 DO RISTF).
1. Decisão agravada que apontou a ausência de prequestionamento da matéria constitucional suscitada no recurso extraordinário, porquanto a Corte a quo tão- somente aplicou a orientação firmada pelo seu Órgão Especial na ação direta de inconstitucionalidade em que se impugnava o art. 7º da Lei 7.428/94 do Município de Porto Alegre - cujo acórdão não consta do traslado do presente agravo de instrumento -, sem fazer referência aos fundamentos utilizados para chegar à declaração de constitucionalidade da referida norma municipal.
2. Tal circunstância não constitui óbice ao conhecimento e provimento do recurso extraordinário, pois, para tanto, basta a simples declaração de constitucionalidade pelo Tribunal a quo da norma municipal em discussão, mesmo que desacompanhada do aresto que julgou o leading case.
3. O RE 251.238 foi provido para se julgar procedente ação direta de inconstitucionalidade da competência originária do Tribunal de Justiça estadual, processo que, como se sabe, tem caráter objetivo, abstrato e efeitos erga omnes. Esta decisão, por força do art. 101 do RISTF, deve ser imediatamente aplicada aos casos análogos submetidos à Turma ou ao Plenário. Nesse sentido, o RE 323.526, 1ª Turma, rel. Min. Sepúlveda Pertence.
4. Agravo regimental provido. (AI 375011 AgR, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 05/10/2004, DJ 28-10-2004 PP-00043 EMENT VOL-02170-02 PP-00362) (grifos nossos)
Introdução
A atual concepção do que venha a ser prequestionamento no ordenamento jurídico brasileiro é fruto de uma evolução conjunta da letra da lei, somada às posições jurisprudenciais e às construções doutrinárias. Tem sido fonte de acaloradas discussões em todos esses planos, tendo sua aplicação ainda não bem definida e suscetível a mudanças, algumas vezes imprevisíveis. Pretende-se, neste trabalho, enfocar o papel do prequestionamento nos dias de hoje, assim como sua aplicação e possível flexibilização, tudo por meio da análise da decisão supramencionada.
1. Prequestionamento: origem, conceito e natureza jurídica
A Constituição Federal de 1981 trouxe, junto ao surgimento do Recurso Extraordinário, a noção de que a parte deveria provocar, na instância inferior, o surgimento da questão federal ou constitucional debatida como um requisito de admissibilidade para a interposição deste recurso [01]– considerando que àquela época cabia à Suprema Corte decidir não só as questões tangentes a matéria constitucional, com também a matéria federal, tudo dentro do Recurso Extraordinário, que posteriormente se bipartiu por motivos de política legislativa, vindo a dar origem ao Recurso Especial. A norma foi reproduzida nas Constituições seguintes (em 1926, art. 60, §1º, "a"; em 1934, art. 76, III, "b"; em 1937, art. 101, III, "b"; e em 1946, art. 101, III, "b"), vindo esta noção a mudar somente em 1946.
O termo prequestionamento, consagrado pela jurisprudência mesmo antes de 1946, referia-se ao entendimento da Corte no sentido da não-admissão do Recurso Extraordinário quando não houvesse sido preenchida a condição de que a parte deveria ter questionado a matéria em discussão na segunda instância.
Foi com o advento da Carta de 1946 que essa situação tomou rumo diverso, pois o entendimento jurisprudencial sofreu mudanças, considerando então, que estaria prequestionado um tema quando a decisão recorrida tivesse adotado entendimento explícito sobre o mesmo. Desta forma, para que ficasse caracterizado o prequestionamento da matéria em discussão, não bastava a anterior postulação das partes em segunda instância, mas, efetivamente, que a decisão proferida por aquela instância contivesse manifestação explícita sobre o referido tema.
Tendo em vista essa mudança de entendimento, a jurisprudência passou a colecionar diversas concepções acerca do que se deve entender por prequestionamento, o que se traduziu, inevitavelmente, também, em sede doutrinária.
A doutrina, assim, inclinou-se a formar o entendimento majoritário, segundo aponta José Miguel Garcia Medina, de que "o prequestionamento é a manifestação ou provocação das partes, anterior à decisão recorrida, no sentido de tornarem controverso determinado ponto atinente ao direito federal ou constitucional" [02].
Na verdade, essa acepção decorre, de maneira genérica, de uma análise puramente semântica do vocábulo prequestionar, decorrente de questionar, que em origem advém de questão.
Questão significa um ponto que deve ser discutido ou analisado, uma controvérsia. Somado ao termo pre, do qual se infere a idéia de antecedência ou prioridade, conclui-se pelo entendimento de que pré-questionar uma matéria significa pô-la em discussão antes de, e para que, no caso, seja decidida.
Ocorre que, doutrinária e jurisprudencialmente ainda não se decidiu em que momento ocorre, de fato, o prequestionamento, se quando a discussão é trazida pelas partes, portanto anteriormente à decisão; se na decisão em si, quando ela enfrenta a matéria; ou se pela conjugação destes dois fatores.
Na posição de Medina, em obra específica sobre o tema, prequestionamento seria "a atividade postulatória das partes, decorrente do princípio dispositivo, tendente a provocar a manifestação do órgão julgador (juiz ou Tribunal) acerca da questão constitucional ou federal determinada em suas razões, em virtude da qual ficará o órgão julgador vinculado, devendo manifestar-se sobre a questão prequestionada" [03]. O autor aponta, todavia – posicionamento do qual não podemos discordar, que conquanto não seja postulada, ainda sim a questão pode restar decidida no acórdão, pois pode resultar de manifestação do próprio juiz – questões conhecíveis de ofício, e não de discussão erigida pelas partes.
Sob esta ótica, logo, o prequestionamento – tido aqui como a controvérsia sobre matéria federal ou constitucional levantada pelas partes antes da decisão, não é essencial à interposição dos recursos extraordinários, bastando que a matéria seja efetivamente decidida pela instância ordinária.
Assim, divergindo da corrente que concebe o prequestionamento como fator que ocorre na decisão recorrida – o que de fato é exigido como requisito dos recursos extraordinários, posiciona-se o autor no sentido de que ele ocorre em decorrência de postulação das partes e anteriormente à decisão recorrida, ressalvando que, no caso de o próprio juiz levantar a questão na decisão, essa atitude fará as vezes do que cabia às partes, abrindo caminho para que a matéria seja discutida nas instâncias extraordinárias. Todavia esta visão não se encontra expressa na Constituição Federal, o que enseja a existência de fortes vozes doutrinárias questionando a constitucionalidade do requisito.
Os recursos Extraordinário e Especial não à toa são classificados como recursos extraordinários. Percebe-se que a lei, notadamente a Constituição Federal, lhes atribui características que os erigem a esta classe diferenciada. Não cabem contra qualquer decisão e da decisão cabível não podem ser voltados a qualquer matéria. Mais que isso: têm por finalidade a defesa do direito objetivo e a unificação da jurisprudência, preservando a integridade da ordem jurídica, de modo a proporcionar segurança jurídica e a igualdade dos cidadãos perante a lei.
Por mais que se configurem em normas substancialmente processuais, foram previstos pelo legislador constitucional, o que lhes atribui a peculiaridade inerente às outras normas constitucionais, ou seja, a rigidez constitucional, o que implica num processo muito mais complexo para a sua modificação que os demais recursos, previstos por lei federal.
Observe-se que o fato de serem tidos como recursos extraordinários não é razão para que se lhes atribua outros requisitos além dos estipulados pela Lei Maior. Encontram-se, juntamente a ela, no topo do sistema jurídico, devendo as disposições constantes do Código de Processo Civil – Lei 5.869/73, ser formal e materialmente compatíveis com previsto constitucionalmente quando regularem seu procedimento, sempre, na medida da omissão constitucional.
O legislador ordinário nada previu sobre o prequestionamento, e o que a Constituição Federal exige é que a questão constitucional ou federal esteja presente na decisão recorrida, o que não equivale ao prequestionamento realizado pelas partes antes dessa decisão. Mas nem por isso esta exigência criada pela doutrina e pela jurisprudência é inconstitucional. É, na verdade, imprescindível em certos casos, em que o Tribunal não poderá julgar a matéria, caso não haja provocação da parte, sob pena de suprimir a instância inferior, decidindo "por cima" dela. É, destarte, constitucional na medida em que não vai de encontro à Carta Magna.
Consoante o exposto acima, a nosso ver, o prequestionamento não é, como preleciona a maioria da doutrina e da jurisprudência, uma condição de admissibilidade dos recursos extraordinários (ou não deveria ser assim considerado), posto que não é exigido diretamente pela lei. Sua natureza jurídica seria a decorrência direta do efeito devolutivo dos recursos e do princípio dispositivo.
Muito embora os Tribunais se manifestem pela não admissibilidade dos Recursos Extraordinário e Especial alegando a ausência de prequestionamento, na verdade, estarão deixando de conhecer o recurso, não porque a questão não fora suscitada pelas partes antes da decisão recorrida, mas porque a questão federal ou constitucional não foi expressamente enfrentada nela.
2. Prequestionamento implícito, explícito e a divergência entre o STJ e o STF
A doutrina e a jurisprudência aludem também ao prequestionamento implícito, que ocorre quando, apesar do enfrentamento da quaestio pelo tribunal a quo, não é feita menção ao dispositivo legal que se pretende dar por ofendido. Naturalmente, em sentido contrário, ocorrerá o prequestionamento explícito quando a norma violada tiver sido mencionada pela decisão recorrida.
Nas palavras de Rodrigo da Cunha Lima Freire haverá "prequestionamento implícito quando o tribunal de origem, apesar de se pronunciar explicitamente sobre a questão federal controvertida, não menciona explicitamente o texto ou o número do dispositivo legal tido como afrontado" [04].
É o que decidiu a 2ª Turma do STJ, relatora a Ministra Eliana Calmon: "O prequestionamento implícito é admitido, desde que a tese defendida no especial tenha sido efetivamente apreciada no Tribunal recorrido à luz da legislação federal indicada" [05].
São inúmeros os julgados do STJ admitindo o prequestionamento implícito. Já o STF tem mantido posição diversa acerca do tema. Isso porque há inúmeros julgados do Pretório Excelso em sentido contrário [06].
Note-se, contudo, que a simples indicação do dispositivo legal não é suficiente para que se considere satisfeito esse requisito. Importa que o tema seja enfrentado à luz das normas que incidem no caso, tornando fácil a identificação do tema jurídico.
Rodolfo de Camargo Mancuso traz em sua obra o posicionamento do STF: "No âmbito do STF tem sido exigido o prequestionamento explícito da matéria constitucional controvertida, salientando o Min. Sepúlveda Pertence que, sendo o RE um instrumento de revisão in jure, não investe o Supremo de competência para vasculhar o acórdão recorrido, à procura de uma norma que poderia ser pertinente ao caso, mas da qual não se cogitou. Daí a necessidade de pronunciamento explícito do Tribunal a quo sobre a questão suscitada no recurso extraordinário. Sendo o prequestionamento, por definição, necessariamente explícito, o chamado ‘prequestionamento implícito’ não é mais do que uma simples e inconcebível contradição em termos (AgRg 253.566-6, DJU 03.03.2000)" [07][08].
Percebe-se que o denominado prequestionamento implícito ou explícito pela doutrina, é, na verdade a presença ou não da questão federal ou constitucional na decisão, para fins de cabimento do Recurso Extraordinário ou do Recurso Especial, o que não implica na automática falta de prequestionamento pelas partes. Pode-se haver postulado nas razões recursais sem que, todavia, se tenha obtido a discussão da matéria na decisão da qual se visa recorrer. Ocorrendo tal situação, serão cabíveis Embargos de Declaração com fins de suprir essa omissão, para que então os recursos extraordinários sejam admitidos.
A adoção diversa do reconhecimento do prequestionamento, seja pela parte, seja pela própria decisão recorrida não parece justa.
Em comentários à exigência do prequestionamento explícito pelo STF, Teresa Arruda Alvim Wambier, citada por Rodolfo Mancuso, propõe que: "um órgão aceite o entendimento de outro, e considere ter havido prequestionamento, se o que ocorreu, no caso, foi o que o outro órgão teria considerado como prequestionamento. Esta sugestão, no fundo, consiste em que haja fungibilidade de ‘entendimentos’, para que a parte não acabe por ficar sujeita a uma espécie de ‘loteria’ ou tenha que se inteirar do entendimento pessoal de cada um dos Ministros dos Tribunais Superiores" [09].
Note-se que o STJ, em admitindo o prequestionamento implícito, viabiliza de forma mais ampla o processamento do recurso especial ao passo que o STF impõe seja mencionada expressamente a norma constitucional tida como violadora ou contrariada no acórdão recorrido. Esse dissenso é de todo prejudicial à parte, e ao sistema como um todo. Afinal, seria no mínimo razoável que houvesse unicidade de pensamento das Cortes Superiores do país.
3. Análise do caso: A flexibilização do posicionamento do Supremo Tribunal Federal
3.1. Reconstrução fática
O caso sob análise trata-se de um Agravo Regimental em um Agravo de Instrumento interposto com fins de destrancar Recurso Extraordinário, ambos de relatoria da Ministra Ellen Gracie. Tendo em vista que foi negada admissibilidade do referido recurso pela falta de prequestionamento dos dispositivos constitucionais no acórdão recorrido – leia-se que por mais que as partes tenham suscitado a matéria, ela não foi enfrentada pelo acórdão, foi interposto Agravo de Instrumento, do qual, após improvido, interpôs-se Agravo Regimental.
O Recurso Extraordinário foi interposto pelo Município de Porto Alegre com o objetivo de reformar o acórdão da Apelação julgada pelo TJRS em que se determinou o reajuste automático bimestral dos vencimentos dos servidores municipais pela variação de índice de entidade particular (ICV-DIEESE), aplicando o art. 7º da Lei nº 7.428/94.
Ocorre que o referido artigo foi declarado inconstitucional pelo RE 251.238, interposto na ADIn nº 595.067.943, de competência originária daquele Tribunal Estadual, pois ofende o postulado da autonomia municipal. Logo, ao reafirmar a inadmissibilidade ao Recurso Extraordinário por meio do Agravo de Instrumento, a Suprema Corte estaria deixando prevalecer o acórdão da Apelação, ou seja, a aplicação de uma Lei por ele mesmo declarada inconstitucional.
Diante disso, parece que a Ministra relatora resolveu reconsiderar sua decisão, e em sede de Agravo Regimental, admitiu o Recurso Extraordinário mesmo que ausente o requisito do prequestionamento, flexibilizando esta norma e emanando uma decisão certamente paradigma para muitas que possam vir no mesmo sentido.
3.2. O Recurso Extraordinário como forma de controle abstrato de constitucionalidade
A promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 provocou grandes transformações no regime jurídico do Recurso Extraordinário, transformações essas que já são refletidas visivelmente na própria atuação do Supremo Tribunal Federal e que já transparecem em sua jurisprudência desde então.
Instituiu-se a eficácia vinculante dos preceitos sumulados da jurisprudência constitucional desta Corte (art. 103-A), assim como se conferiu também eficácia vinculante às decisões proferidas em controle concentrado de constitucionalidade (ADIn e ADC).
Conforme preleciona Fredie Didier: "um dos aspectos dessa mudança é a transformação do Recurso Extraordinário, que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem servido, também ao controle abstrato" [10].
O controle de constitucionalidade surge para impedir a subsistência de normas contrárias à Constituição Federal, pressupondo, necessariamente, a idéia de supremacia constitucional. Por isso, ato normativo contrário ao texto constitucional será considerado presumidamente constitucional até que eventualmente seja declarada sua inconstitucionalidade, pelos meios adequados previstos pelo sistema e, conseqüentemente, a retirada de sua eficácia, ou executoriedade.
O sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil é o sistema híbrido, onde o controle é efetivado tanto de maneira concentrada, como de maneira difusa, leia-se, pode ser exercido como o objeto da ação, por meio de ADIn, ADC ou ADPF ou, feito por qualquer juiz, por meio de incidente de inconstitucionalidade, respectivamente.
O processo de controle de constitucionalidade concentrado é um "processo objetivo", ou seja, a noção de lide lhe é estranha, porque sua eficácia é erga omnes, ultrapassando a noção subjetiva das partes do processo. Nessa forma de controle geralmente a inconstitucionalidade é analisada em tese, de forma abstrata, configurando-se o controle abstrato de forma concentrada.
Já no controle difuso de constitucionalidade, exercido por qualquer juiz, a questão do controle de constitucionalidade surge incidentalmente, no curso de uma demanda específica (caso concreto) que não tem por objetivo principal a aferição da constitucionalidade, gerando assim efeitos apenas entre as partes do processo, ficando bem delimitados os limites subjetivos da lide. Configura-se, destarte, o controle concreto de forma difusa.
Nada obsta, todavia, que o controle se dê de forma difusa, mas seja abstrato, ou seja, possa a constitucionalidade seja examinada por meio de qualquer juiz, mas abstratamente, em tese.
Diante do exposto, tem-se que a declaração da inconstitucionalidade opera somente intra partes e não é a pretensão principal ventilada na peça inicial. Logo, o julgador irá acolher ou rejeitar o pedido porque há ou não uma inconstitucionalidade, mas não irá formalizar uma declaração de inconstitucionalidade, que não é o pedido. A compatibilidade com a Constituição é, por conseguinte, uma questão prejudicial.
Não obstante isso, a jurisprudência do STF tem se inclinado no sentido de alargar os efeitos das decisões proferidas no controle difuso para além das partes envolvidas no processo. Tal tendência vem sendo evidenciada por recentes decisões que deram efeitos mais abrangentes aos julgados do STF, dentre as quais se enquadra o caso em análise.
Nesse sentido Amaral Jr, citado por Fredie Didier Jr. acrescenta riquíssima colocação: "A decisão plenária não se equipara plenamente às decisões tomadas no controle abstrato de constitucionalidade dado não surtir típico efeito erga omnes de, por exemplo, uma ação direta de inconstitucionalidade. Mas, por outro lado fica muito longe de restringir-se ao caso concreto que lhe deu ensejo, porquanto dele emana – em razão de normas legais e regimentais – eficácia vinculante intra muros, isto é, vincula os colegiados fracionários do tribunal que dirimiu o incidente, valendo para todos os casos concretos subsequentes que envolvam a mesma quaestio iuris constitucional" [11].
No caso de que tratamos no presente trabalho, vislumbra-se exatamente isso: a decisão privilegia o caráter objetivo, abstrato e os efeitos erga omnes da declaração de inconstitucionalidade efetuada por aquela mesma Corte no julgamento RE 251.238, interposto na ADIn nº 595.067.943, para manter a unicidade de seu entendimento. Relativiza-se a rigidez dos requisitos de admissibilidade do Recurso Extraordinário para admiti-lo, no caso, mesmo que ausente o prequestionamento, tendo em vista "o caráter objetivo que a evolução legislativa vem emprestando ao recurso extraordinário, como medida racionalizadora da efetiva prestação jurisdicional", nas palavras da própria Ministra relatora.
Como se observa, as decisões se preocupam com a repercussão em outros casos similares, abandonando a idéia de que a decisão, por ter se dado no controle difuso, teria eficácia apenas entre as partes. É a utilização do Recurso Extraordinário na defesa da ordem constitucional objetiva, passando a idéia de que o recurso levado ao Supremo pelas partes, em realidade, é um pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos [12].
Portanto, com o advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, percebe-se a boa intenção do legislador em procurar desenvolver mecanismos direcionados a uma melhor prestação jurisdicional. Mesmo havendo evidente abstrativização do controle de constitucionalidade difuso, tal mutação constitui-se em salutar aprimoramento do próprio controle de constitucionalidade, reforçando a função do Supremo Tribunal Federal como o guardião da Constituição Federal e o próprio papel normativo desta como o "topo da pirâmide" normativa.
3.3. O princípio da instrumentalidade
Como já vimos, é insuficiente, para a satisfação da exigência do prequestionamento, que a parte haja alegado a matéria antes do julgamento, seja na petição inicial, seja na de recurso, ou em contra-razões. Caso a matéria alegada não tenha sido expressamente decidida, gerando a omissão, deverá ser objeto de embargos declaratórios, para que se configure, então, o prequestionamento [13][14].
O STF admite o chamado prequestionamento ficto, bastando que a parte oponha os embargos de declaração [15]. Mesmo que os embargos sejam rejeitados pela instância inferior, considerar-se-á prequestionada a matéria constitucional, conforme se infere do enunciado nº 356 da Súmula do STF: "O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento.".
No caso em discussão, houve visível ausência de decisão pela instância a quo acerca da matéria constitucional recorrida, e sequer embargos declaratórios foram interpostos. A Ministra relatora, todavia, ainda sim admitiu o recurso, certamente tendo por base uma idéia de processo como um instrumento que se insere num sistema processual moderno baseado na efetividade e no comprometimento com o social, com a materialização da justiça.
Caso não admitisse o referido recurso, estaria não menos que abusando das formalidades para desprestigiar a efetividade que busca o processo. Efetividade aqui, considerada para além dos autos do processo em que se conserva a lide, como a própria realização do direito material, visto que o processo e suas regras não são mais que um meio para tal. Barbosa Moreira, com a pontualidade que lhe é peculiar assevera: "qualquer instrumento será bom na medida em que sirva de modo prestimoso à consecução dos fins da obra que ordena" [16].
No mesmo sentido, a Relatora: "requisitos processuais acabam por obstacularizar, no âmbito da própria Corte, a aplicação aos casos concretos dos precedentes que declaram a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade das normas".
Deixa claro que caso não relativizasse a exigência do prequestionamento como requisito de admissibilidade, estaria deixando subsistir uma decisão visivelmente injusta e contraditória com o que a própria Corte já havia decidido – pois deixaria valer uma lei outrora declarada inconstitucional, pelo que mostra extrema consideração pelos precedentes já emanados.
Como menciona no acórdão, ela já havia se manifestado, em julgamento unânime pelo Plenário, pela preservação do entendimento emanado pela Corte: "a adoção de decisões contraditórias compromete a segurança jurídica, porque provoca nos jurisdicionados inaceitável dúvida quanto à adequada interpretação da matéria submetida a esta Corte."
Infere-se que os precedentes no mesmo sentido vieram, igualmente, abrir exceções a casos extremamente peculiares enfrentados pela Corte. Como sabemos, o ordenamento jurídico admite a existência de entendimentos jurisprudenciais distintos acerca de um mesmo tema, muito embora toda vez que um dos Tribunais Superiores profere uma decisão se espera que esta seja um parâmetro para os aplicadores do direito, assim como para os demais Tribunais e para o mesmo que a proferiu. O que a Relatora demonstra na decisão é total ciência acerca disto, pois não por outro motivo decide tratar um caso "desigual" dos demais, na medida de sua desigualdade - para aplicar a premissa aristotélica, conforme outras decisões da mesma Casa, visando manter a unidade da jurisprudência.
José Miguel Garcia Medina pensa diferente. Para o autor a divergência jurisprudencial acerca dos requisitos de admissibilidade dos recursos extraordinários nos Tribunais Superiores gera confusão e insegurança jurídica. Ou flexibiliza-se para todos os casos, ou para nenhum, pois ao escolher quais casos seriam peculiares estaria o julgador emitindo juízo que não lhe cabe sobre a relevância do caso.
Com toda a vênia, não é esse o nosso entendimento. Acreditamos que o que se vivencia hoje em termos de flexibilização destes requisitos pelas Cortes Superiores é reflexo da ampliação dos poderes conferidos ao juiz em virtude das inúmeras reformas legislativas recentes. Elas trouxeram à tona, para não dizer reavivaram, muito da instrumentalidade das formas que somente era aplicada em seus preceitos mais básicos.
Diante desta situação, vem o STF criando uma nova corrente jurisprudencial para os casos em que pode ser aplicada a flexibilização, e de fato isso gera alguma confusão ao aplicador do direito. Mas muito maior seria a confusão se a Corte não observasse seus próprios precedentes no que respeita à flexibilização, deixando existir uma única, ou algumas poucas decisões isoladas. Vale notar que toda mudança de entendimento jurisprudencial passa por essa fase. Nasce com uma decisão isolada, que respeitada, torna-se uma tendência, até que se pacifique [17].
Nesse sentido, segue a Ministra: "esses julgados, segundo entendo, constituem um primeiro passo para a flexibilização do prequestionamento nos processos cujo tema de fundo foi definido pela composição plenária desta Suprema Corte, com o fim de impedir soluções diferentes em relação à decisão colegiada. É preciso valorizar a última palavra – em questões de direito – proferida por esta Casa."
O julgamento do caso de acordo com suas peculiaridades, tal qual se encontra no acórdão em tela, a nosso ver é uma otimização da justiça com qualidade em detrimento de uma justiça baseada em números. Não se pode admitir que o rigor processual implique na supressão de um direito, sob pena de serem emanadas decisões frontalmente injustas, que não refletem a realidade fática e o respectivo direito que lhe cabe.
Nas palavras de Dinamarco: "o juiz, seja porque ele crie, seja porque já existem normas abstratas na sociedade – outras fontes do Direito, diferentes da lei -, seja porque a lei não é mais aquela, cinqüenta anos depois de ter sido redigida, não tem mais o mesmo sentido – e é a lei que está sendo aplicada, o juiz vai apenas descobrir o sentido dela -, seja como for, tem esse dever de procurar pela justiça" [18].