Capa da publicação Restituição de tributos sujeitos a lançamento por homologação. Cinco ou dez anos? A controvérsia chega ao STF
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Restituição de indébito tributário nos tributos sujeitos a lançamento por homologação.

Cinco ou dez anos? A controvérsia chega ao Supremo

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09/10/2010 às 16:05
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Começa a ser delineada uma decisão final que, ainda que decida pela inconstitucionalidade da LC 118/05, não terá a mesma extensão que deu o STJ.

1.Introdução

Após anos de controvérsia judicial acerca do prazo de que gozaria o contribuinte para restituição de tributos pagos indevidamente, foi editada a Lei Complementar 118 de 2005, que tentou colocar uma pá de cal na discussão, fixando que o prazo de cinco anos mencionado pelo art. 168 do Código Tributário Nacional (prazo para restituição do indébito) iniciar-se-ia do pagamento antecipado (art. 150, §1º, CTN), no caso dos tributos sujeitos a lançamento por homologação.

Todavia, longe de pacificar a questão, a LC 118/05 atraiu críticas severas de grande parte da doutrina pátria, vez que, à época de sua edição, já prevalecia no âmbito do Superior Tribunal de Justiça a interpretação segundo a qual o prazo de cinco anos fixados pelo art. 168 do CTN para que se pleiteasse a restituição do indébito, no caso de tributos sujeitos a lançamento por homologação (inciso I do dispositivo legal), apenas teria início após a homologação do lançamento pelo Fisco.

A tese respaldava-se na expressão utilizada pelo inciso I como marco do termo a quo do prazo de restituição: a extinção do crédito tributário. Entendendo o Superior Tribunal de Justiça que apenas a homologação tácita ou expressa do lançamento extinguia definitivamente o crédito tributário, o termo inicial do prazo de restituição seria a data da homologação.

Como, em regra, a homologação se dá de maneira tácita após o transcurso do quinquênio fixado no §4º do art. 150 do CTN, a tese prevalecente no STJ acabou por consagrar, por via indireta, o prazo de 10 anos para que o contribuinte requeresse a restituição de tributos por homologação. Era a pacificação da chamada tese dos "cinco mais cinco" – cinco anos referentes ao prazo de homologação, aos quais se somavam mais cinco anos do prazo para que se pleiteasse a restituição.

A grande polêmica trazida pela Lei Complementar 118 está em seu art. 4º, que, ao expressamente se referir ao dispositivo do CTN que trata de leis interpretativas, teve como objetivo implementar a interpretação do legislador acerca do art. 168, I, do CTN retroativamente.

É dizer, após os 120 dias de vacatio legis da Lei, a Administração Pública e o Poder Judiciário deveriam considerar como termo a quo do prazo de cinco anos para a restituição a data do pagamento antecipado realizado nos moldes do §1º do art. 150 do CTN, sendo irrelevante, para tanto, a data da homologação – tácita ou expressa.

Como efeito prático, caso levada a efeito a Lei em sua integralidade, o prazo para restituição do indébito em caso de tributos sujeitos ao lançamento por homologação seria de cinco anos do pagamento (fim da tese dos "cinco mais cinco"), aplicando-se a interpretação, inclusive, às ações judiciais em curso, desde que ainda não transitadas em julgado.

Alega a doutrina, em tese já confirmada pela Corte Especial do E. Superior Tribunal de Justiça, que o Congresso Nacional, ao editar a LC 118, teria violado o inciso XXXVI do art. 5º da CRFB ("a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"). Afirmou-se que não se trataria de lei verdadeiramente interpretativa, mas que, ao contrário, teria trazido modificação da regra de restituição de indébito, sendo vedada sua aplicação retroativa em virtude do princípio da irretroatividade das leis.

A tese defendida pela Fazenda Pública há muito – segundo a qual o prazo para a restituição sempre teve como termo a quo a data do pagamento antecipado, no caso de tributos sujeitos a lançamento por homologação, razão pela qual a LC 118/05 apenas teria assentado a interpretação mais adequada do art. 168, I, do CTN, sem alterações substanciais –, vinha sendo amplamente rejeitada, como se adiantou, por quase a totalidade da doutrina e da jurisprudência.

Ocorre que, recentemente, a submissão da questão ao Supremo Tribunal Federal demonstrou a complexidade da questão, sendo que a tese defendida, no caso, pela União teve quatro votos favoráveis em um julgamento parcial em que já proferidos nove votos. Não obstante a tese dos contribuintes conte com um voto a mais, começa a ser delineada uma decisão final que, ainda que decida pela inconstitucionalidade da LC 118/05 (caso mantida a maioria até agora configurada), não a pronunciará com a mesma extensão que fez o Superior Tribunal de Justiça.

O objetivo do presente artigo é justamente analisar a questão mais de perto, fugindo do lugar-comum que se limita a repetir a natureza modificativa e a inconstitucionalidade da LC 118/05, sem ponderar diversos fatos relevantes para a solução da controvérsia e sem cotejar o rigor técnico de ambas as teses.


2.Art. 3º da Lei Complementar 118: Interpretação ou mudança do dispositivo legal?

A primeira grande controvérsia acerca da disposição contida no art. 3º da LC 118 se refere à sua natureza. É que, não obstante o art. 4º se refira a ele como norma interpretativa, grande parte da doutrina lhe atribui caráter inovador e modificativo do ordenamento jurídico, o que inviabilizaria a aplicação do art. 106, I, do CTN, que assim dispõe:

Art. 106. A lei aplica-se ao ato ou fato pretérito:

I – em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;

Não obstante a força do argumento – vez que, de fato, considerando-se o entendimento do E. STJ à época da edição da Lei, o prazo aplicado pelo Judiciário passaria de dez anos a cinco –, entende-se que a LC 118 limitou-se sim a trazer apenas uma interpretação de normas do CTN.

Na verdade, a análise dos argumentos apresentados pelos críticos da Lei Complementar revela que o que se combate não é o seu caráter interpretativo, e sim a possibilidade de uma nova interpretação trazida pelo legislador (a chamada interpretação autêntica) modificar direito que os contribuintes entendiam deter em virtude de pacificação da jurisprudência no âmbito da Corte Superior de Justiça.

É que, analisando-se o dispositivo, chega-se à conclusão que ele não traz qualquer alteração ao texto do CTN. É dizer, não houve alteração dos dispositivos, mas tão-somente consolidação da leitura conjunta que se faz dos art. 168, I, e 150 §§1º e 4º do CTN.

Tornando ainda mais clara a questão, o art. 168, desde a publicação do CTN, em outubro de 1966, estabelece que o "direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de cinco anos, contados: I – nas hipóteses dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;".

O texto continua o mesmo; o que vinha ocorrendo desde a década dos noventas é que a Administração interpretava o dispositivo de uma forma, enquanto o Judiciário de outra. Assim, havia divergência de interpretações sobre qual seria o termo inicial, pois o prazo, como se frisou, sempre foi de cinco anos. Portanto, a LC 118, ao explicitar que o termo inicial seria o dia do pagamento antecipado, apenas empregou força normativa à interpretação já consolidada no âmbito administrativo e que, diga-se de passagem, prevaleceu no Judiciário até os anos noventa.

Uma crítica a posição ora defendida – natureza interpretativa da LC 118 –, que se põe ao lado do argumento de que teria havido modificação de direitos dos contribuintes, é a de que leis interpretativas não poderiam inovar o ordenamento. Segundo essa doutrina, às leis desta espécie apenas seria permitido explicitar pontos controversos e obscuros de outras leis, sem que, com isto, se introduza modificações no ordenamento. Em face dessa última característica – inaptidão para modificar o direito positivo – é que se permitiria a retroação da interpretação autêntica.

Problema decorrente desta tese é que ela se espelhava em uma visão positivista do direito, segundo a qual ao intérprete não era reservado nenhum espaço criativo. Cabendo ao aplicador da lei unicamente a atividade de declarar o direito posto aplicável à espécie, não haveria espaço para inovação na atividade de interpretação das normas.

Porém, com a consagração do modelo pós-positivista, abriram-se os olhos para o mundo jurídico como ele realmente é: o intérprete, ao aplicar o dispositivo legal ao caso concreto, participa da criação da norma jurídica. Sobre o tema, Humberto Ávila, em sua festejada obra "Teoria dos Princípios", deixa bem assentado que:

"É preciso substituir a convicção de que o dispositivo identifica-se com a norma, pela constatação de que o dispositivo é o ponto de partida da interpretação; é necessário ultrapassar a crendice de que a função do intérprete é meramente descrever significados, em favor da compreensão de que o intérprete reconstrói sentidos, que o cientista, pela construção de conexões sintáticas e semânticas, que o aplicador, que soma àquelas conexões as circunstâncias do caso a julgar; importa deixar de lado a opinião de que o Poder Judiciário só exerce a função de legislador negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento jurídico diante do caso concreto." [01]

O trecho demonstra claramente que a atividade interpretativa tem uma carga criativa na medida em que promove a integração do dispositivo legal, fazendo surgir uma norma (regra ou princípio). Portanto, não se pode negar que a interpretação pode sim trazer alterações normativas, visto que, de um mesmo dispositivo, podem surgir normas diversas.

É justamente este fenômeno que justifica as mudanças na jurisprudência. Por vezes verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo da Constituição, substitui entendimentos vetustos e consolidados de um mesmo dispositivo por releituras que modificam substancialmente as consequências jurídicas de um texto legal imodificado. Como se admitir, sem alteração de texto, as mudanças trazidas pela Corte Maior? A única resposta possível é aquela esposada no trecho transcrito: a (re)leitura dos dispositivos legais, a interpretação, auxilia na criação da norma.

Exemplo marcante é o da prisão do depositário infiel que, apesar de prevista expressamente na Constituição e ter sua aceitação pacificada durante anos na jurisprudência, a partir de uma releitura do ordenamento pátrio – abrangendo-se, no termo, os tratados internacionais incorporados – pelo STF, foi banida do Direito brasileiro.

Frise-se que não se discute, neste momento, a possibilidade de a alteração de interpretação ser aplicada a fatos pretéritos. O que se busca demonstrar é que a LC 118/05, de fato, apenas tentou consolidar uma das interpretações possíveis do art. 168, I, do CTN. Ainda que se possa questionar a abrangência da interpretação adotada pela Lei (se atingiria fatos anteriores ou não), não se pode negar que esta não trouxe qualquer alteração aos dispositivos do CTN. Da mesma forma, e por consequência lógica, se não houve alteração do dispositivo, não existiu alteração do prazo previsto no Código Tributário Nacional.

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O que houve, isto sim, foi a sedimentação da leitura acerca do termo inicial do prazo para se pleitear a restituição. Portanto, levou-se a efeito uma interpretação autêntica – porque realizada pelo legislador – acerca do termo inicial do prazo quinquenal.

Prova maior do que se defende, é que o próprio Judiciário, interpretando o mesmo dispositivo ora em comento (art. 168, I, CTN), até o final da década de noventa, sempre entendeu que o prazo de cinco anos para a restituição do indébito se iniciava da data do pagamento indevido – e não da data da homologação. Nesse sentido confira-se:

TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA INCIDENTE SOBRE A REMUNERAÇÃO PAGA A AUTÔNOMOS, AVULSOS E ADMINISTRADORES - COMPENSAÇÃO COM A CONTRIBUIÇÃO INCIDENTE SOBRE A FOLHA DE SALÁRIOS - POSSIBILIDADE, OBSERVADA A DECADÊNCIA QUINQUENAL - INAPLICABILIDADE DO DISPOSTO NO ART. 8º DA LEI 8.212/91.

1. Sendo inconstitucional a contribuição previdenciária prevista no art. 3º, inciso I, da Lei 7.787/89, correta a sentença que determinou a restituição dos valores indevidamente recolhidos, sendo cabível a utilização do instituto da compensação com outra contribuição previdenciária a cargo do contribuinte.

2. Por tratar-se de ação de repetição de indébito, ainda que processada mediante compensação, aplicável à espécie o disposto no art. 168 do CTN, contando-se o prazo decadencial da data do pagamento, ainda que sujeito este à condição resolutória de posterior homologação pela autoridade fiscal.

3. (...)

5. Recurso do INSS parcialmente provido. Remessa oficial não conhecida.

(AC 96.01.48983-5/MG, Rel. Juiz Osmar Tognolo, Terceira Turma,DJ p.46197 de 20/06/1997)

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FINSOCIAL. ACORDÃO OMISSO QUANTO AS PARCELAS ALCANÇADAS PELA DECADENCIA. RECONHECIMENTO.

1. O PRAZO PARA PLEITEAR A RESTITUIÇÃO, QUE E DE DECADENCIA, COMEÇA A CORRER DO PAGAMENTO INDEVIDO (ARTIGO-168, INCISO-1, CTN), NÃO PODENDO SER REPETIDOS OS VALORES, CUJO RECOLHIMENTO SE VERIFICOU EM DATA ANTERIOR A CINCO ANOS DA PROPOSITURA DA AÇÃO. 2. EMBARGOS ACOLHIDOS. (TRF4, EDAC 89.04.16825-2, Segunda Turma, Relator Rubens Raimundo Hadad Vianna, DJ 03/06/1992)

Também no âmbito do próprio STJ, prevalecia o entendimento:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DECLARATORIOS (ART. 535, CPC). EMPRESTIMO COMPULSORIO SOBRE AQUISIÇÃO DE COMBUSTIVEIS. DIREITO A RESTITUIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. CTN, ARTS. 165 E 168. DECRETO-LEI 2.288/86.

1. O PRAZO DECADENCIAL CONTA-SE A PARTIR DO PAGAMENTO INDEVIDO, EXCLUIDAS AS PARCELAS ANTERIORES AO QUINQUENIO DECORRIDO DA PROMOÇÃO JUDICIAL DA AÇÃO DE RESTITUIÇÃO.

2. EMBARGOS ACOLHIDOS.

(EDcl nos EDcl no REsp 43.562/PR, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 24/08/1994, DJ 19/09/1994 p. 24656)

A demonstrar que o entendimento encontrava-se pacificado na jurisprudência da época, no mesmo sentido, os julgados do TRF da 1ª Região (AC 94.01.20814-0/BA de 22/09/1994, EDAC 96.01.26255-5/MG de 29/11/1996), do TRF da 4ª Região (AC 90.04.22782-2 - DJ 11/11/1992 e AC 90.04.08742-7 - DJ 17/07/1991) e do STJ (REsp 44.278/RS - DJ 27/06/1994 e REsp 50.400/SP - DJ 22/05/1995).

Apenas a partir de 1995 é que ganhou força na 2ª Turma do STJ a tese que, anos mais tarde, viria a ser sedimentada pela Corte Especial do mesmo STJ, segundo a qual, o prazo para a restituição do indébito conta-se não do pagamento, mas sim da sua homologação (tácita ou expressa), vez que seria esta a data da extinção definitiva do crédito tributário.

Como se nota – ainda antes de se adentrar no mérito de ambas as teses – a LC 118 apenas fez o caminho inverso realizado anos antes pelo STJ: enquanto nos anos noventa, o STJ modificou a tese pacífica de que o termo inicial da restituição era a data do pagamento antecipado descrito no §1º do art. 150, o legislador, em 2005, visou a restaurar a interpretação que vigeu do advento do Código Tributário Nacional, em 1966, até meados da década de 1990.

Diante do exposto, conclui-se, inexoravelmente, que a LC 118/05 tem nítido caráter interpretativo. Concluir de forma diversa seria o mesmo que admitir que o STJ, ao dar abrigo à tese dos "cinco mais cinco", não teria exercido sua atividade de intérprete da legislação infraconstitucional, mas sim papel de legislador positivo – o que não se admite, ao menos nesta extensão, ao Judiciário.

Demonstrada natureza interpretativa do art. 3º da LC 118/05, passa-se à análise da admissibilidade da interpretação autêntica no ordenamento brasileiro, bem como dos limites a ela impostos.


3.Interpretação autêntica e Irretroatividade das Leis

Analisando-se o voto condutor do eminente Ministro Teori Zavascki constata-se que a linha de pensamento adotada concluiu que a inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/05 (que determina a aplicação da Lei a fatos pretéritos) decorre da natureza inovadora de seu art. 3º.

Destarte, segundo o STJ, a pretexto de ser interpretativa, a Lei Complementar modificou a norma vigente, vez que retirou no mundo jurídico uma das interpretações possíveis do art. 168, I, CTN, sendo esta justamente aquela consagrada pelo Superior Tribunal de Justiça.

O grande obstáculo apontado seria a tentativa de se alterar a jurisprudência por lei; tal expediente implicaria violação à separação de poderes consagrada no art. 2º da Constituição da República. Assim, concluiu a decisão:

"Em outras palavras: não pode ser considerada interpretativa a lei que tem o evidente objetivo de modificar a jurisprudência dos Tribunais. Somente a jurisprudência é que pode, legitimamente, alterar a jurisprudência." [02]

Em que pese a força da argumentação, entende-se que a própria conclusão do voto contraria a ideia central de que apenas a jurisprudência possa rever o posicionamento adotado pelos tribunais.

É que, se ao legislador fosse vedado editar norma tendente a modificar a forma de aplicação de dispositivo contido no ordenamento, é dizer, se ao Legislativo fosse vedada a atividade de interpretar as leis, deveria o julgamento do STJ concluir não apenas pela inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118, mas também de seu art. 3º.

Diz-se isso porque o art. 4º apenas explicitou o caráter interpretativo da norma, estendendo a sua aplicação a fatos pretéritos; o dispositivo que realmente introduziu mudança na leitura do art. 168, I, fixando qual deveria ser o termo a quo do prazo prescricional, foi o art. 3º da Lei Complementar 118.

Portanto, o art. 3º fez justamente aquilo que o voto condutor do Ministro Zavascki estatuiu que o ordenamento proíbe: restabeleceu o entendimento pretérito, segundo o qual o prazo para que se pleiteie a restituição do indébito é de cinco anos, contados do pagamento, e não de "cinco mais cinco" como interpretava o STJ. Ou seja, a lei modificou o entendimento jurisprudencial, resgatando a interpretação dada pelo Judiciário até os anos noventa, sem alterar um só prazo ou dispositivo estabelecido no CTN.

Quer se mostrar, com a argumentação aqui exposta, que, na verdade, a declaração de inconstitucionalidade proferida pelo E. STJ não se fundamenta na impossibilidade de o Legislativo editar texto de lei tendente a interpretar outro dispositivo legal. O que se entendeu inconstitucional foi a tentativa de o legislador alterar o entendimento jurisdicional, aplicando a nova interpretação a fatos pretéritos (no caso, pagamentos pretéritos).

Portanto, a controvérsia não gravita em torno da possibilidade da interpretação autêntica, mas sim da viabilidade de esta atingir fatos ocorridos antes da edição da norma interpretativa.

Até porque, a interpretação de um dispositivo legal por outro de mesmo patamar jamais poderia configurar uma afronta à Constituição, pois, como leciona Canotilho acerca do papel do legislador: "Neste caso, ele é seu criador, admitindo-se que, se ele pode criar e revogar uma lei, por maioria de razão a poderá interpretar" [03].

No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal já externou a admissibilidade da interpretação autêntica no ordenamento pátrio:

"É plausível, em face do ordenamento jurídico constitucional brasileiro, o reconhecimento da admissibilidade das leis interpretativas, que configuram instrumento juridicamente idôneo de veiculação da denominada interpretação autêntica. As leis interpretativas – desde que reconhecida a sua existência em nosso direito positivo – não traduzem usurpação das atribuições institucionais do Judiciário e, em consequência, não ofendem o postulado fundamental da divisão funcional do poder". (STF, ADIn 605-3 DF- rel. Min. Celso de Mello)

Nada mais natural: se ao legislador confere-se a competência de alterar os dispositivos legais que integram o direito positivo, não se poderia admitir que a fixação de interpretação a ser seguida por meio lei fosse considerada, a priori, inconstitucional, mormente quando presente relevante controvérsia. Disso não decorre a violação do princípio da separação de poderes, visto que, ao Judiciário, sempre caberá a atividade de controle da norma produzida (ainda que interpretativa).

Demonstrado o cabimento de norma interpretativa, ainda que altere posição prevalente na jurisprudência, resta analisar o ponto crítico da controvérsia, qual seja, a possibilidade de a interpretação autêntica trazida no art. 3º ser estendida a todos os pagamentos indevidos, ainda que efetivados em data anterior à edição da LC 118/05.

A premissa básica estabelecida pelo acórdão do STJ é a de que ao legislador não foi atribuído o poder de legislar para o passado. Destarte, a intepretação legislativa, ao modificar o entendimento jurisprudencial consolidado no âmbito do STJ, teria violado o princípio da irretroatividade das normas, o qual estaria previsto no inciso XXXVI do art. 5º da CRFB/88 (a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada).

Nessa esteira, assentou a Corte Superior de Justiça:

"A atividade legislativa está submetida à cláusula constitucional do respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (art. 5º, XXXVI), razão pela qual as modificações do ordenamento jurídico, impostas pelo Legislativo, têm, em princípio, apenas eficácia prospectiva, não podendo ser aplicadas retroativamente" [04].

A propósito do tema – aplicação da lei no tempo – Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald elucidam as hipóteses em que se admite a retroatividade da lei:

A partir da intelecção do preceito legal [art. 6º da LICC] – agasalhado constitucionalmente – é possível afirmar, seguramente, que as leis não têm retroatividade. Assim sendo, a lei nova é aplicável aos casos pendentes e futuros. Excepcionalmente, no entanto, admitir-se-á a aplicação da lei nova aos casos passados (a retroatividade) quando: a) houver expressa previsão na lei, determinando a sua aplicação aos casos pretéritos (ou seja, no silêncio da lei, prevalece a irretroatividade) e b) desde que essa retroatividade não ofenda o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada [05].

No mesmo sentido, confira-se trecho do voto proferido pelo eminente Ministro Celso de Melo, relator na ADI 605:

"Cumpre assinalar, desde logo, que os sucessivos ordenamentos constitucionais brasileiros – com a ressalva da Carta Política do Império do Brasil e da Constituição Republicana de 1891 – jamais proclamaram, em nosso sistema jurídico, de modo absoluto e incondicional, o princípio da irretroatividade. (...)

A Constituição Federal de 1988, fiel à tradição surgida com a Constituição de 1934 – só rompida com a Carta autoritária de 1937 – institucionalizou, em seu art. 5º, XXXVI, norma de sobredireito, destinada a compor regra de solução dos conflitos de leis no tempo. Ao tornar intangíveis à ação normativa do Estado apenas as situações jurídicas definitivamente consolidadas – tais as emergentes da coisa julgada, do direito adquirido e do ato jurídico perfeito -, o legislador constituinte admitiu, por implicitude, ainda que em caráter excepcional, a projeção retroeficaz das leis".

No caso da Lei Complementar 118/05, verifica-se que o seu art. 4º preenche o primeiro dos requisitos exigidos, uma vez que ao se referir ao art. 106, I, do CTN, prevê expressamente a sua aplicação aos fatos pretéritos.

Isso posto, resta definir se o segundo requisito também estaria presente, ou seja, se haveria respeito ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e ao direito adquirido.

De início já se descarta a ofensa à coisa julgada, uma vez que todos os processos transitados em julgado, nos quais se aplicou a tese dos "cinco mais cinco", não seriam atingidos pela interpretação trazida pela LC 118/05.

Da mesma forma, como bem salientou a União, em Memorial apresentado ao Supremo Tribunal Federal, não há ofensa ao ato jurídico perfeito, in verbis:

"Por certo, a Lei Complementar 118/2005 não ofende o ato jurídico perfeito, posto que, in casu, não se cuida de ato jurídico perfeito e acabado, apto a gerar eventual direito adquirido. No presente caso, trata-se de eventual direito subjetivo regido diretamente por lei, e não de um negócio jurídico, como bem explicita o mestre José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª edição, Malheiros Editores, 2003:

`O ato jurídico perfeito, a que se refere o art. 153, § 3º [agora, art. 5º, XXXVI], é o negócio jurídico, ou o ato jurídico stricto sensu; portanto, assim as declarações unilaterais da vontade como os negócios jurídicos bilaterais, assim os negócios jurídicos, como as reclamações, interpretações, a fixação de prazo para aceitação de doação, as comunicações, a constituição de domicílio, as notificações, o reconhecimento para interromper a prescrição ou com sua eficácia (ato jurídico strictu sensu)´."

Por derradeiro, também não se entende existir, no caso, ofensa ao direito adquirido, vez que não se pode alegar direito adquirido à determinada interpretação jurídica. Prova disso é que nada impedia que, antes do advento da LC 118, o próprio STJ revisasse sua jurisprudência, retomando o entendimento que prevaleceu na Corte Superior até o final do século passado, ou seja, de que o prazo para restituição se inicia do pagamento antecipado.

Nessa situação hipotética, tornar-se-ia a aplicar o prazo de cinco anos, em substituição à tese dos "cinco mais cinco", a todos os processos em curso, sem que se cogitasse eventual ofensa ao direito adquirido dos litigantes à interpretação jurisprudencial anterior.

Da mesma forma, ainda que tivesse havido efetiva alteração do prazo previsto no art. 168, I, do CTN (e não mera interpretação acerca de seu termo a quo), não se poderia falar em violação a direito adquirido. É que não existe direito adquirido em relação a um prazo prescricional em curso, vez que este configura mera expectativa de direito.

A própria Ministra Ellen Graice, na relatoria do RE 566621/RS (julgamento parcial), que discute a constitucionalidade da LC 118/2005, não obstante conclua pela aplicação do art 3º tão somente às ações ajuizadas posteriormente à vacatio legis da referida Lei Complementar, esclarece que não, in casu, violação a direito adquirido:

Info 585 - Prazo para Repetição ou Compensação de Indébito Tributário e Art. 4º da LC 118/2005 – 2 (...) Afirmou que a alteração de prazos não ofenderia direito adquirido, por inexistir direito adquirido a regime jurídico, conforme reiterada jurisprudência da Corte. Em razão disso, não haveria como se advogar suposto direito de quem pagou indevidamente um tributo a poder buscar ressarcimento no prazo estabelecido pelo CTN por ocasião do indébito. (...)RE 566621/RS, rel. Min. Ellen Gracie, 5.5.2010. (RE-566621)

Destarte, havendo expressa previsão na Lei Complementar 118 acerca de sua retroatividade e não havendo ofensa ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido ou à coisa julgada, entende-se que a sedimentação da interpretação do art. 168, I, do CTN, por ela trazida não ofende direito subjetivo dos contribuintes protegido constitucionalmente, razão pela qual, data venia, os fundamentos adotados pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça não se mostram suficientes para a declaração de inconstitucionalidade do art. 4º da LC 118/2005.

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Sobre o autor
João Paulo Giordano Fontes

Procurador da Fazenda Nacional.Especialista em Direito Processual pela UNISUL - Universidade do Sul de Santa Catarina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FONTES, João Paulo Giordano. Restituição de indébito tributário nos tributos sujeitos a lançamento por homologação.: Cinco ou dez anos? A controvérsia chega ao Supremo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2656, 9 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17580. Acesso em: 26 abr. 2024.

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