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Breves notas acerca do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa no regime jurídico-aministrativo brasileiro

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É possível a correção judicial dos juízos de valor por ela realizados no exercício da referida atividade discricionária? Deve o Judiciário se limitar a verificar a legalidade e a legitimidade dos atos discricionários ou poderá adentrar no mérito administrativo?

A submissão do Poder Público ao ordenamento jurídico é um traço distintivo do Estado Democrático de Direito. No Brasil, a adoção desse modelo de Estado implica a existência de um conjunto de princípios e regras aplicável à Administração Pública, de sorte que, no desempenho de suas funções, deverá ela observar o regime jurídico-administrativo que lhe é imposto tanto pelo texto constitucional quanto pelas normas infraconstitucionais. Todavia, a despeito dessa regulação prevista em lei, a complexidade das relações sociais inviabiliza a previsão legal de todas as situações que porventura venham a acontecer na sociedade. Daí porque o legislador confere ao administrador certa margem de liberdade, com o intento de que seja adotada, no caso concreto, a alternativa que mais atenda ao interesse público em causa. É o que se denomina de discricionariedade administrativa. Nesse contexto, vale ressaltar que subsiste no meio jurídico interessante polêmica a respeito dessa discrição. Até que ponto a autoridade administrativa está livre para fazer suas escolhas? É possível a correção judicial dos juízos de valor por ela realizados no exercício da referida atividade discricionária? Deve o Poder Judiciário se limitar a verificar a legalidade e a legitimidade dos atos discricionários ou poderá adentrar no mérito administrativo? O presente estudo se debruçará sobre tais questões. Espera-se, ao final, ter contribuído para a reflexão acerca da plausibilidade do controle da discricionariedade administrativa pelo Poder Judiciário.

Palavras-chave: Administração Pública. Discricionariedade Administrativa. Controle Judicial. Plausibilidade.


INTRODUÇÃO

A sujeição do Poder Público ao ordenamento jurídico é diretriz básica em um Estado Democrático de Direito. Em prol dos direitos fundamentais dos indivíduos, esse modelo de Estado há de ter, necessariamente, normas delimitadoras da organização estatal e da ação dos seus governantes, de modo a coibir excessos e desvios praticados no exercício do poder [01].

No Brasil, a consagração do Estado Democrático de Direito pelo art. 1º da Constituição Federal implica a existência de um regime jurídico-administrativo aplicável aos órgãos e entidades que compõem a Administração Pública bem como aos agentes administrativos em geral. Tal regime prevê poderes e restrições especiais para o desempenho da função administrativa, vantagens e limitações que se fundamentam, respectivamente, nos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público [02].

Além dos princípios mencionados, o texto constitucional estatui, explícita e implicitamente, outros princípios fundamentais informadores de toda a atividade administrativa. As normas infraconstitucionais, por sua vez, também trazem diretivas para a Administração Pública.

Nesse contexto, não há como negar a vinculação da atuação administrativa à lei e ao direito. Vale dizer: o Direito Administrativo é norteado pelo princípio constitucional da legalidade, segundo o qual, diferentemente dos particulares, que têm liberdade para fazer tudo aquilo que não lhes for proibido por lei, a Administração Pública só pode fazer o que lhe for expressamente permitido por disposição legal.

Contudo, a complexidade das relações sociais torna impossível a previsão legal de todas as situações que porventura possam ocorrer no tecido social. Daí porque o legislador confia ao administrador certo grau de liberdade para decidir em determinadas hipóteses: é o que se denomina de discricionariedade administrativa.

A finalidade precípua dessa margem de liberdade concedida ao agente público é dar maior efetividade à atuação da Administração. Assim, o agente governamental, quando autorizado por lei, poderá, no caso concreto, escolher dentre as alternativas oferecidas a que melhor atenda ao interesse público em questão.

Ora, quando a lei não outorga ao administrador qualquer discrição para a realização da função administrativa, estará ele inteiramente adstrito ao comando legal – a atuação será, pois, totalmente vinculada à lei. Em tais hipóteses, não resta dúvida acerca da possibilidade do exame judicial de um ato supostamente praticado com inobservância aos ditames legais.

No que tange à atividade administrativa discricionária, porém, subsiste no meio jurídico importante debate sobre a plausibilidade de sua correção judicial. O fundamento da controvérsia reside no fato de que a franquia da norma é atribuída à autoridade administrativa, de maneira que a apreciação pelo magistrado acerca de um juízo de valor feito em uma atividade na qual o administrador gozava de discricionariedade poderia configurar afronta à separação e à independência dos poderes consagradas no art. 2º da Constituição Federal. E é exatamente aqui que surge a matéria sobre a qual se debruçará este trabalho.

As questões que interessam ao presente estudo são: até que ponto a autoridade administrativa está livre para fazer suas escolhas quando a dicção normativa lhe permite alguma discricionariedade? É possível a correção judicial dos juízos de valor por ela realizados no exercício de atividade discricionária sem que haja ofensa ao princípio da separação de poderes? Deve o Poder Judiciário cingir-se ao exame da legalidade e da legitimidade ou é cabível um juízo sobre o mérito desses atos administrativos?

Para responder às indagações ora propostas se faz necessário, em primeiro lugar, elucidar o instituto da discricionariedade administrativa, o que se fará a partir das considerações existentes na doutrina pátria sobre o assunto. Num segundo momento, além de lições doutrinárias, serão apresentadas decisões judiciais para delinear os limites do controle jurisdicional de atos administrativos expedidos com base em norma que outorga discrição ao administrador. Espera-se, ao final, ter contribuído para o debate a respeito da plausibilidade do controle da discricionariedade administrativa pelo Poder Judiciário.


1 DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

É próprio do Estado de Direito, em quaisquer de suas feições, encontrar-se inteiramente subordinado aos parâmetros da legalidade.

No âmbito do Direito Administrativo pátrio, o princípio da legalidade, segundo a visão clássica, traduz a ideia de que a Administração Pública somente tem a possibilidade de agir quando existir lei que determine ou autorize sua atuação – no primeiro caso, a atuação é conhecida como vinculada, por obedecer estritamente ao estipulado na lei, e, no segundo, é dita discricionária, devendo observar os termos, condições e limites que a lei traz [03].

Como se sabe, o texto legal consubstancia, por meio de comandos gerais e abstratos, a vontade geral manifestada pelo Poder que possui legitimidade para tanto (o Legislativo). Em função disso, o princípio da legalidade tem o desígnio de garantir que o Poder Executivo agirá para concretizar essa vontade geral, sendo a atividade administrativa considerada sublegal ou infralegal, já que só pode ser exercida conforme a lei.

Nessa linha de raciocínio, oportuna se faz a lição dos professores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo [04]:

(...) a Administração Pública, além de não poder atuar contra a lei ou além da lei, somente pode agir segundo a lei (a atividade administrativa não pode ser contra legem nem praeter legem, mas apenas secundum legem). Os atos eventualmente praticados em desobediência a tais parâmetros são atos inválidos e podem ter sua invalidade decretada pela própria Administração que os haja editado (autotutela administrativa) ou pelo Poder Judiciário.

Não obstante isso, a multiplicidade e a diversidade dos fatos que pedem pronta solução ao Poder Público impedem o legislador de catalogar na lei todos os atos que a prática administrativa exige, o que dá azo à supracitada discricionariedade administrativa.

Em outras palavras, a atividade discricionária justifica-se pelo fato do legislador não poder prever todas as ocorrências que possam vir a acontecer no mundo dos fatos, em face da realidade polifacética das relações humanas, o que faz a discricionariedade ser indispensável para atender às infinitas e complexas necessidades coletivas. Nesse ponto, vale conferir a doutrina do professor Celso Antônio Bandeira de Mello [05]:

Deveras, a regra de Direito, como é óbvio, pretende sempre e sempre a medida capaz de atender excelentemente ao interesse público. Ora, dadas a multiplicidade e a variedade de situações fáticas passíveis de ocorrerem – as quais serão distintas entre si pelas circunstâncias que as envolvem e pela coloração que tenham –, é preciso que o agente possa, em consideração à fisionomia própria de cada qual, proceder à eleição de medida idônea para atingir de modo perfeito o objetivo da regra aplicanda.

Se a lei todas as vezes regulasse vinculadamente a conduta do administrador, padronizaria sempre a solução, tornando-a invariável mesmo perante situações que precisariam ser distinguidas e que não se poderia antecipadamente catalogar com segurança, justamente porque a realidade do mundo empírico é polifacética e comporta inumeráveis variantes. Donde, em muitos casos, uma predefinição normativa estanque levaria a que a providência por ela imposta conduzisse a resultados indesejáveis.

Com efeito, o poder discricionário tem o escopo de tornar possível à Administração adaptar a sua atividade às exigências das circunstâncias individuais, de modo que as medidas escolhidas sejam sempre as mais eficazes e mais úteis ao público de que se trata. Cuida-se, na verdade, de um poderoso instrumento para a boa gestão da coisa pública, haja vista que a proximidade do administrador com a realidade empírica o habilita a resolver com maior eficácia as questões que lhe são postas. Assim, a Administração Pública poderá agir com inovação e dinamismo nos casos concretos.

Por tais motivos, em determinadas situações, a disciplina legal faz remanescer em proveito e a cargo do administrador certa esfera de liberdade, perante a qual lhe caberá preencher com seu juízo subjetivo, pessoal, o campo de indeterminação normativa, a fim de satisfazer, em cada caso, a finalidade da lei.

Sucintamente, entende-se que a discricionariedade administrativa consiste na margem de liberdade outorgada pelo ordenamento jurídico ao agente governamental para que ele escolha, dentre as alternativas oferecidas, aquela que melhor atenda ao interesse público em causa. Por conseguinte, terá o agente o dever de integrar, com sua vontade, o conteúdo do comando normativo.

De acordo com Celso Antônio [06], a discricionariedade pode decorrer da imprecisão com que a lei haja descrito a situação fática (motivo do ato); da finalidade da norma quando ela se reporta a um conceito vago e impreciso (plurissignificativo), o qual necessita de valoração; e pode advir também da alternatividade contida na norma com relação à conduta do agente público – seja (a) quanto a expedir ou não o ato, seja (b) por caber-lhe apreciar a oportunidade adequada para tanto, seja (c) por lhe conferir liberdade quanto à forma que revestirá o ato, seja (d) por lhe haver sido atribuída competência para resolver qual a medida mais satisfatória no caso concreto.

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É importante anotar que ele chama atenção para a falta de precisão conceitual no uso das correntes expressões "ato vinculado" e "ato discricionário". No artigo "Relatividade" da Competência Discricionária, o mencionado autor defende que vinculação ou discricionariedade são predicados atinentes não ao ato propriamente dito, mas sim à apreciação a ser feita pela autoridade quanto a algum ou alguns dos aspectos que condicionam ou compõem o ato. Destarte, a noção de discricionariedade não está relacionada ao ato em si, mas à competência que o administrador disporá, in concreto, para realizar uma avaliação concernente às condições de sua expedição ou conteúdo [07].

Para o aludido professor, a expressão "ato discricionário" é uma maneira elíptica de dizer que "o ato foi praticado no exercício de apreciação discricionária em relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou compõem" [08]. Na verdade, discricionária é a competência do agente quanto a certos aspectos do ato. A discrição não está no ato, não é uma qualidade dele. O ato será tão-somente o "produto" do exercício da competência discricionária.

Sobre o tema, assim escreve [09]:

É a falta desta necessária precisão conceitual o que leva a inúmeras e desnecessárias confusões provocadas pela simplificada linguagem vertida na fórmula "ato discricionário" e "ato vinculado". Com efeito, através dela desperta-se a enganosa sugestão de que existe uma radical antítese entre atos de uma ou de outra destas supostas categorias antagônicas. Não é o que ocorre, entretanto, pois a discricionariedade não é atributo de ato algum. É apenas a possibilidade – aberta pela dicção legal - de que o agente qualificado para produzi-lo disponha de uma "certa" (ou "relativa") margem de liberdade, seja para avaliar se efetivamente ocorreram (a) os pressupostos (isto é, os motivos) que legalmente o ensejariam, seja para (b) produzi-lo ou abster-se, seja (c) para eleger seu conteúdo (conceder ou negar, expedir o ato "x" ou "y"), seja para (d) resolver sobre o momento oportuno de fazê-lo, seja (e) para revesti-lo com a forma tal ou qual. E tudo isto na medida, extensão e modalidades que resultem de norma jurídica habilitante (...)

É preciso deixar claro, ainda, que a discricionariedade é sempre e inevitavelmente relativa, conforme se demonstrará doravante.

1.1 RELATIVIDADE DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

No artigo citado, como o próprio título sugere, Celso Antônio defende que a discricionariedade da autoridade administrativa é sempre relativa. Com base nos ensinamentos constantes naquele texto, a relatividade da competência discricionária existe em diversos sentidos. Explica-se.

1.1.1 Discricionariedade supõe um comportamento intra legem

Primeiramente, tem-se que o administrador estará sempre manietado ao que tenha sido disposto em lei (não importa se mais ou menos estritamente), já que a discrição supõe comportamento intra legem e não extra legem. Em vista disso, a discricionariedade estará sempre vinculada aos ditames legais.

1.1.2 A liberdade concedida limita-se aos tópicos que a lei remeta à apreciação do administrador

Seja qual for o âmbito de liberdade conferido, ele só dirá respeito àqueles tópicos que a lei tenha remetido à avaliação do administrador, e não a outros sobre os quais a norma já haja resolvido de modo a não deixar margem de interferência.

A título exemplificativo, se a norma disser que a Administração "poderá conferir um prêmio de R$ 10.000 ao funcionário que contar com 40 anos de serviço sem haver sofrido sanção disciplinar alguma e sem faltas", a autoridade disporá de liberdade para expedir ou não o ato atributivo do prêmio, mas não poderá decidir quanto ao conteúdo dele (entrega de R$ 10.000) nem quanto aos pressupostos que dão ensejo ao ato, isto é, os motivos do ato (tempo de serviço e ausência de sanções e faltas). Se a lei estabelecer, de outro lado, que o Poder Público "deverá atribuir um prêmio de R$ 10.000 ao funcionário que no ano de 2009 tenha desenvolvido a atividade mais relevante para o serviço público", o agente poderá eleger o servidor mais qualificado a recebê-lo, porém não terá liberdade no que tange à expedição do ato atributivo do prêmio (a lei diz que o Poder Público deverá) tampouco poderá dispor acerca do montante que pagará (a dicção legal especifica o valor de R$ 10.000).

1.1.3 A discrição só pode ser exercida com o escopo de alcançar a finalidade da lei em razão da qual foi atribuída a competência

A discricionariedade é relativa, ainda, no sentido de que, por mais ampla ou restrita que seja, a liberdade atribuída só pode ser exercida com o intento de alcançar a finalidade legal em razão da qual foi dada a respectiva competência.

Por óbvio, o administrador não poderá tem em mente motivos particulares, de favorecimento ou perseguição, bem como não poderá se basear em razões de interesse público diversas daquela contemplada na regra em execução, sob pena de sua opção configurar "desvio de poder". Tanto é assim que Seabra Fagundes [10] assevera: "não importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato será inválido por divergir de orientação legal".

1.1.4 A franquia só existe na extensão, medida ou modalidades previstas na lei que a instituiu

Outro argumento a favor da relatividade da liberdade que possui o agente público consiste no fato de que essa discricionariedade só existe na extensão, medida ou modalidades que resultem da lei. Logo, se a regra determinar que se aplique a sanção "x" ou "y" àquele que praticou uma infração contra a Administração Pública, haverá liberdade apenas dentro do campo de alternativas propostas – não poderia ser cominada a sanção "z", por exemplo.

1.1.5 Mesmo quando a lei utiliza conceitos indeterminados a discricionariedade não é absoluta

A liberdade advinda do emprego de expressões vagas, fluidas ou imprecisas contidas na lei também não é absoluta. Nesses casos, a autoridade estará sempre vinculada às "zonas de certeza positiva e de certeza negativa" imanentes às expressões, pois não está autorizada a fazer delas uma intelecção desarrazoada, arbitrária, distante do senso comum, nem poderá atribuir-lhes sentido desligado do contexto em que se encontram. Existe, portanto, um campo significativo mínimo que essas expressões recobrem, e dele o administrador não poderá se desprender.

Infere-se daí que, mesmo quando se ampara em supostos normativos fluidos, em conceitos indeterminados, a discrição administrativa ficará adstrita a um espaço circundado de vinculação: quaisquer destas expressões têm um campo significativo induvidoso, frente aos quais não se vacilará em aplicar a palavra, e casos claros de exclusão nos quais não se duvidará em não usá-la.

1.1.6 A situação concreta pode restringir ou até esvair por completo a discricionariedade prevista em abstrato pela lei

Conquanto a lei dê certa margem de liberdade ao agente, tal alvedrio poderá esmaecer ou até esvair-se por completo na situação em que regra será aplicada. Quer-se com isso dizer que a discrição na norma é condição necessária, porém nem sempre suficiente para que permaneça nas situações concretas.

Basta pensar nas infrações a regras de trânsito. Supondo que a lei admita a aplicação de sanções como advertência, multa, suspensão e cancelamento da licença para dirigir, sem especificar qual delas deverá ser utilizada para determinado comportamento, é fácil perceber que o administrador não poderá aplicar a mais grave delas (no caso, o cancelamento da licença para dirigir) apenas porque o motorista estacionou em local proibido. E mais: se estivesse manobrando para estacionar em local não permitido, evidentemente seria suficiente lhe aplicar uma advertência. Finalmente, se o ato de estacionar em local proibido houvesse sido realizado para prestar socorro a alguém que acabara de se acidentar, nenhuma sanção poderia ser aplicada.

Tendo em vista os dois últimos exemplos, é imperioso reconhecer que nas situações descritas o administrador estaria "vinculado" - no primeiro caso, a fazer uma simples advertência, e, no segundo, a se abster de cominar qualquer ato punitivo ao motorista. Vê-se, aí, que a situação concreta afunila o campo de liberdade aberto em abstrato pela lei, podendo até mesmo eliminá-lo por completo.

Pelo exposto, deduz-se que a discricionariedade não pode ser examinada simplesmente pela leitura da lei que porventura a contemple: é imprescindível considerar o caso concreto, pois a norma permissiva é condição necessária, mas não suficiente para que exista efetivamente a discricionariedade e para dimensionar-lhe a extensão.

Salienta-se que os exemplos descritos acima foram apresentados por Celso Antonio no artigo citado com o objetivo de fazer o leitor aceitar, de imediato, que a discricionariedade não é ilimitada. É claro que essa relatividade da competência discricionária não aparece tão nitidamente e por isso mesmo não possui a mesma força aliciante na maioria das situações que surgem na sociedade. Ainda assim, deve-se considerar, sempre, que a discricionariedade é apenas uma suposição, visto que só diante do caso concreto é que se revelará a existência e a real dimensão dessa liberdade.

Por fim, anota-se que a referência tradicional às fórmulas "ato discricionário" e "ato vinculado" induz a uma errônea compreensão do fenômeno jurídico em tela. Ao escamotear aspectos capitais da discricionariedade, tais expressões levam a conclusões falaciosas – como, por exemplo, sustentar que se a lei conferiu discrição, o ato dela resultante não poder sofrer interferência do Poder Judiciário, sob pena de estar-se substituindo o administrador e suprimindo-lhe uma liberdade que a lei lhe confiou. De fato, é preciso ter uma noção teoricamente correta da discricionariedade a fim de evitar equívocos de tal monta [11].

De agora em diante, por estar devidamente esclarecido o fenômeno jurídico da discricionariedade administrativa, serão adotadas no presente trabalho as expressões "ato vinculado" e "ato discricionário", com a ressalva de que o leitor deve ter em mente toda a significação que elas trazem consigo de acordo com a exposição feita nesse tópico.

1.2 MÉRITO ADMINISTRATIVO

Nos atos discricionários (como é previsível) nem todos os elementos de sua estrutura estão vinculados à expressa previsão legal.

Apesar da divergência que existe na doutrina no tocante à enumeração desses elementos, considera-se acertada a posição dos professores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo, segundo a qual serão estabelecidas pela lei, invariavelmente, a competência (o ato somente poderá ser validamente praticado por aquele a quem a lei confiou tal atribuição), a forma (uma vez prevista em lei, deve ser estritamente observada pelo administrador, sob pena de nulidade) e a finalidade (jamais será discricionária, pois a finalidade de qualquer ato será sempre o interesse público) [12].

Por corroborar o entendimento acima esposado, se mostra pertinente a transcrição do comentário de Victor Nunes Leal [13], que se baseia nos esclarecimentos do jurista Miguel Seabra Fagundes sobre o tema:

Entretanto, segundo esclarece o des. Seabra Fagundes, apoiado nos melhores autores, "no que concerne à competência, à finalidade e à forma, o ato discricionário está tão sujeito aos textos legais como qualquer outro". Quanto à finalidade dos atos administrativos (discricionários ou vinculados), está ela sempre expressa ou implícita na lei; por isso mesmo, o fim legal, que é necessariamente um fim de interesse público, também constitui aspecto vinculado dos atos discricionários, susceptíveis, portanto, de apreciação jurisdicional.

Apenas para ilustrar a controvérsia que cerca o assunto em apreço, destaca-se que há quem defenda caber juízo de oportunidade no fim imediato e específico do ato administrativo, desde que corrobore o fim genérico expresso na lei [14], opinião não perfilhada pelo presente trabalho.

É certo, porém, que motivo e objeto são requisitos não vinculados, havendo alguma liberdade de atuação do agente em sua prática. Esses dois requisitos (motivo e objeto), especificamente considerados quanto aos atos discricionários, formam o núcleo do que costuma ser chamado de mérito administrativo.

Em poucas palavras, o mérito administrativo consiste no poder conferido pela lei ao administrador para que ele decida sobre a oportunidade e conveniência de praticar determinado ato discricionário. É o produto de um juízo de valor realizado pela autoridade pública quanto às vantagens e às consequências atreladas à prática do ato, as quais deverão ser levadas em conta como pressuposto da atividade administrativa. Sobre o assunto, ensina Celso Antônio [15]:

Mérito é o campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha a remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada.

Nos atos vinculados esse juízo já foi previamente analisado e definido pelo legislador, não existindo espaço para avaliação subjetiva da conveniência e oportunidade da ação estatal. Ademais, é bom lembrar que se reconhece, sem maiores dificuldades, a total competência discricionária do Estado nos atos políticos ou de governo, tais como os casos de expulsão e indulto.

Feitas tais ponderações, passa-se à contextualização do controle judicial da atividade administrativa. Inicialmente, este trabalho demonstrará de modo conciso a relação entre os poderes do Estado para, em seguida, ater-se à possibilidade de apreciação pelo Judiciário do mérito administrativo.

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Sobre a autora
Ana Cristina Brasil Monteiro Costa

Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN), pós-graduada em direito Público pela Universidade de Anhanguera (UNIDERP) em parceria com a rede de ensino Luiz Flávio Gomes. Advogada em Natal/RN » Cidade de domicílio: NATAL/RN » Endereço: AV. SANDOVAL TAVARES GUERREIRO, 24, NOVA PARNAMIRIM – NATAL / RN » Telefone: 9659-8196 » E-mail:

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Ana Cristina Brasil Monteiro. Breves notas acerca do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa no regime jurídico-aministrativo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2677, 30 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17708. Acesso em: 25 abr. 2024.

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