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Breves notas acerca do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa no regime jurídico-aministrativo brasileiro

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2 PODERES DO ESTADO E O SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer, no art. 2º, que "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário", consagrou tanto o princípio da separação dos poderes quanto o sistema de freios e contrapesos. A seguir, serão tecidas breves considerações sobre o assunto.

De início é importante lembrar que, a bem da verdade, não há propriamente uma separação de poderes – o que existe é uma separação funcional do poder [16]. O poder é uno e deve residir no povo, como determina o art. 1º, parágrafo único, da Constituição Federal. Mais que um princípio, a soberania popular constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito [17].

A divisão estrutural interna do poder estatal em órgãos diferentes e independentes existe para impedir a ação de um deles sem limitação pelos outros, até porque, como alerta Ferreira Filho [18], a concentração de poderes nas mãos de um só órgão vai de encontro à segurança do indivíduo e não se presta a servir à liberdade individual, valor básico da democracia representativa – exemplo clássico disso é a Monarquia Absolutista. A conhecida "divisão de poderes" é, pois, um dos processos técnicos mais eficazes na prevenção ao arbítrio.

Em função disso, a Carta Magna atribui a cada um dos poderes do Estado determinada função típica: ao Legislativo é atribuída a função de elaboração das leis (função legislativa); ao Executivo, a função de executar a lei perante os casos concretos (função administrativa); e ao Judiciário, a função de aplicar a lei aos litigantes (função jurisdicional).

Não se trata, porém, de separação de poderes com divisão absoluta de funções, mas sim de distribuição das funções estatais precípuas entre órgãos independentes, mas harmônicos no seu funcionamento [19].

Em outros termos, não há exclusividade no exercício das funções pelos poderes, e sim preponderância na realização de uma ou de outra função. Portanto, embora os poderes tenham suas funções precípuas (funções típicas), a própria Carta Magna autoriza que também desempenhem funções que originalmente pertenceriam a outro poder (funções atípicas). São as chamadas ressalvas ao princípio da separação dos poderes.

Claramente se vê que não há compartimentos completamente isolados entre os poderes da República, os quais não podem ser concebidos de forma estanque. São independentes, mas até o limite em que a Lei Maior impõe o controle de um sobre os outros. Desta feita, o poder estatal que de fato é uno, funcionará em permanente auto-controle, fiscalização e equilíbrio. É o que se denomina de sistema de freios e contrapesos, o qual se subsume no princípio da independência e harmonia entre os poderes.

Nessa toada, José Afonso da Silva [20] ensina:

Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos.

Assim estruturado o poder estatal, ganha força a ideia de controle e vigilância recíprocos de um órgão sobre o outro relativamente ao cumprimento dos deveres constitucionais de cada um.Há, destarte, mecanismos de controle recíproco entre os poderes, sempre como garantia do Estado Democrático de Direito.

Diante de tal contexto, deve-se reconhecer que existem várias formas de controle da atividade administrativa. Aqui, porém, interessa estudar o controle judicial da Administração Pública, mais especificamente a correção judicial da discricionariedade administrativa, o que se fará doravante.


3 SISTEMAS DE CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

De maneira sucinta, o sistema administrativo consiste no regime adotado pelo Estado para controlar os atos administrativos ilegais ou ilegítimos. Nessa esteira, convém trazer à baila a lição de Hely Lopes Meirelles [21]:

Por sistema administrativo, ou sistema de controle jurisdicional da Administração, como se diz modernamente, entende-se o regime adotado pelo Estado para a correção dos atos administrativos ilegais ou ilegítimos praticados pelo Poder Público em qualquer dos seus departamentos de governo.

Vigem, presentemente, dois sistemas bem diferençados: o do contencioso administrativo, também chamado sistema francês, e o sistema judiciário ou de jurisdição única, conhecido por sistema inglês. Não admitimos o impropriamente denominado sistema misto, porque, como bem pondera Seabra Fagundes, hoje em dia "nenhum país aplica um sistema de controle puro, seja através do Poder Judiciário, seja através dos tribunais administrativos." O que caracteriza o sistema é a predominância da jurisdição comum ou da especial, e não a exclusividade de qualquer delas, para deslinde contencioso das questões afetas à Administração.

Como se vê, são dois os sistemas administrativos existentes: o francês e o inglês. [22]

O sistema francês ou sistema do contencioso administrativo é aquele em que o controle do ato praticado pela Administração Pública será realizado pela própria Administração. Há, nesse sistema, tribunais de índole administrativa, os quais formam a chamada jurisdição especial do contencioso administrativo, motivo pelo qual é comum falar-se em dualidade de jurisdição no contencioso administrativo – jurisdição administrativa (composta pelos tribunais de natureza administrativa) e jurisdição comum (formada por órgãos do Poder Judiciário) [23].

O sistema inglês ou sistema de jurisdição única ou sistema judiciário, por sua vez, é aquele em que todos os litígios – administrativos ou de interesses exclusivamente privados – são resolvidos de forma definitiva pelo Poder Judiciário. Importante esclarecer que a adoção desse sistema não implica a proibição da solução de litígios em âmbito administrativo. O que se garante é que qualquer questão, de qualquer natureza, mesmo que já tenha sido iniciada ou concluída em outra esfera, pode ser levada à apreciação do Judiciário sem restrições, eis que ele é o único Poder competente para dizer o direito de forma definitiva, com força da chamada coisa julgada [24].

A propósito, encontra-se insculpido no inciso XXXV do art. 5º da Lei Maior o princípio da inafastabilidade da jurisdição, pelo qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", de onde se conclui que o Brasil adotou o sistema administrativo de jurisdição única. Assim, o Judiciário, uma vez provocado, poderá examinar atos do Poder Público e, somente depois de esgotada a via judicial, é que a questão suscitada estará definitivamente solucionada.

A despeito dessa previsão legal de controle dos atos da Administração Pública pelo Poder Judiciário, são comuns, no cenário jurídico nacional, questionamentos acerca da plausibilidade do exame judicial do mérito administrativo. É precisamente a respeito dessa polêmica que se ocupará o próximo item.

3.1 CONTROLE JURISDICIONAL DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Levando em conta o princípio da inafastabilidade da jurisdição e o modelo de Estado plasmado pela Carta Magna, não há dúvida sobre a sujeição dos atos administrativos à análise do Poder Judiciário. A grande questão é até que ponto poderá ir esse crivo quando se tem em pauta atos discricionários.

À autoridade administrativa, justamente porque o legislador lhe concedeu uma faculdade em favor da gestão dos interesses públicos, compete encontrar uma solução, entre as legalmente possíveis, que seja baseada em critérios de oportunidade e conveniência, ou seja, critérios de mérito. Nesse ponto, cabe ressaltar que há uma cultura de excessiva deferência com a competência discricionária no Brasil. Muitas vezes o famigerado "mérito administrativo" é apresentado como uma blindagem para deter o controle jurisdicional dos atos da Administração Pública. E durante muito tempo foi esse o entendimento que prevaleceu: tornou-se lugar comum na doutrina e na jurisprudência brasileiras a afirmativa de que ao Poder Judiciário compete unicamente realizar o controle da legalidade e da legitimidade dos atos discricionários, sendo-lhe vedado exercer qualquer juízo meritório, sob pena de afronta à separação dos poderes.

O principal argumento para a defesa da intangibilidade de mérito dos atos administrativos diz que compete exclusivamente à Administração Pública formular juízos de conveniência e oportunidade, dentro da esfera de liberdade a ela conferida pela lei, haja vista a separação de poderes prevista na Constituição. Nesse sentido, convém trazer à baila a seguinte decisão do Superior Tribunal de Justiça:

ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. CONCESSÃO DE HORÁRIO ESPECIAL. ATO DISCRICIONÁRIO. ILEGALIDADE OU ABUSO. INEXISTÊNCIA.

- Foge ao limite do controle jurisdicional o juízo de valoração sobre a oportunidade e conveniência do ato administrativo, porque ao Judiciário cabe unicamente analisar a legalidade do ato, sendo-lhe vedado substituir o Administrador Público.

- Recurso ordinário desprovido.

(STJ, SEXTA TURMA, RMS 14967/SP, Rel. Min. VICENTE LEAL, DJ 22.04.2003 p. 272)

O julgado acima foi escolhido por retratar com nitidez o entendimento que prevaleceu durante tempos, qual seja, o de que o juiz não pode se imiscuir no espaço reservado por lei à discricionariedade do administrador. Mas como saber se não há arbitrariedade na escolha do mérito administrativo? E se, a pretexto da alegada liberdade, o agente público praticasse atos que claramente descambassem para a violação do regime jurídico-administrativo? Mesmo assim tais atos ficariam imunes a qualquer controle? A evolução do pensamento jurídico demonstra que os atos praticados por um agente governamental no exercício de uma função pública, ainda que discricionários, são passíveis de fiscalização pelo Judiciário. Explica-se.

3.1.1 Vícios no ato administrativo discricionário

O ato administrativo é dito viciado quando se encontra em descompasso com a ordem jurídica. A não ser por disposição constitucional em contrário, o Poder Judiciário pode ser provocado para declarar a invalidade de um ato administrativo cuja manutenção implique quebra do regime jurídico-administrativo [25].

Sabe-se que o poder discricionário é, antes de tudo, um dever. O administrador deve exercer suas prerrogativas discricionárias em prol do interesse da coletividade, de sorte que a utilização indevida dessas faculdades pela autoridade administrativa resultará no fenômeno da discricionariedade inválida, a qual poderá sim ser invalidada judicialmente [26].

Passa-se, agora, a apontar, resumidamente, as principais causas de invalidade da discricionariedade administrativa.

3.1.2.1 Discricionariedade inválida por desvio do poder ou desvio de finalidade

O princípio da finalidade impõe o dever do administrador alcançar o objetivo previamente estabelecido na lei. Logo, agirá com desvio de poder ou desvio de finalidade o agente administrativo que, ao exercer sua competência, não aderir ao fim prévia e abstratamente instituído por lei, deixando de observar o interesse público ou praticando o ato sem atender ao desígnio explícito ou implícito na lei.

Sobre as modalidades de desvio de poder Celso Antonio [27] esclarece:

O vício do desvio de poder, como assentam os doutos, pode apresentar-se sob dupla modalidade.

Em uma delas, o agente administrativo, servindo-se de uma competência que em abstrato possui, busca uma finalidade alheia a qualquer interesse público. Neste caso atua para alcançar um fim pessoal, que tanto pode ser perseguição a alguém como favoritismo ou mesmo para atender um interesse individual do próprio agente. Em outra modalidade, manejando também uma competência que em abstrato possui, busca atender uma finalidade pública que, entretanto, não é aquela própria, específica, da competência utilizada. Aí ter-se-á valido de uma competência inadequada, de direito, para o atingimento de uma finalidade almejada.

(...)

Em ambos os casos considera-se maculado o ato.

Reconhece-se, pois, que o desvio de poder corresponde ao manejo de uma competência em descompasso com o escopo em vista do qual ela foi instituída. Até porque a lei jamais dá ao agente governamental poder de agir sem que nele esteja subentendido "no interesse público". Desta forma, se o administrador desvia seus poderes da intenção legal em favor de interesses puramente privados ou até mesmo em prol de um fim de utilidade pública, mas diverso do que foi previsto na norma jurídica, restará caracterizado o desvio de poder e, por via de conseqüência, haverá nulidade do ato.

Por tais motivos, conclui-se que o descumprimento da finalidade legal dá ensejo à correção judicial do ato, não importando que ele seja decorrente de uma competência discricionária. Aplicação prática disso pode ser visualizada no julgamento do processo 2002.000480-0, realizado no dia 29/11/2004, pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte. A decisão deste caso aborda a relação existente entre a discricionariedade administrativa e a finalidade da lei, conforme se observa no excerto do voto do Relator, Desembargador Cristóvam Praxedes:

Este assunto reporta à idéia de controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. A este respeito, a doutrina divide os atos administrativos em vinculados e discricionários. Os vinculados seriam aqueles em que ao administrador não é dada nenhuma margem de escolha, tendo que atuar de acordo com o previsto expressamente em lei. Já os atos discricionários permitiriam, dentro de opções estabelecidas pela lei, aquela que melhor se adequaria ao caso concreto, dentro de critérios de conveniência e oportunidade. No entanto, esta discricionariedade não é absoluta, esbarrando em princípios e na própria finalidade estabelecida pela norma que a permitiu. Em relação à discricionariedade, vejamos o entendimento de Lucia Valle Figueiredo:

"A chamada competência discricionária da Administração só se justifica como garantia de concretização das finalidades assinaladas pelo ordenamento jurídico." (Lucia Valle Figueiredo. Curso de Direito Administrativo. 6ª ed. Malheiros, p.215).

(...)

Isto significa que o ordenamento jurídico só admite a discricionariedade quando esta for justificativa para a consecução dos próprios fins estatuídos pela lei. Jamais quando houver ofensa a dispositivos constitucionais e legais ou omissão por parte da administração pública no tocante a proteção de bens jurídicos determinados constitucionalmente. No presente caso, devido a ampla demonstração de que o município agravante não vem cumprindo com o seu papel determinado na Constituição e nas leis ordinárias de proteger o meio ambiente e de promover o adequado ordenamento territorial urbano, tendo, por vezes aqui demonstrado, tentado se esquivar do seu papel concorrente de protetor ambiental, omitindo-se e prejudicando a comunidade das adjacências da feira do bairro da Cidade da Esperança, não há que se falar em invasão do poder discricionário pelo juiz, ao prolatar a decisão liminar. O magistrado a quo, como garantidor último da observância da legislação protetiva do meio ambiente, apenas determinou ao recorrente que a cumprisse. Caso este se negue a observar o determinado na medida judicial e apenas nesta hipótese, que transfira a feira para uma localidade mais apropriada, satisfazendo o fim público que deve nortear toda a atividade administrativa. Não há que se falar em discricionariedade, desta forma, quando há violação a normas jurídicas. O princípio da independência e harmonia entre os poderes foi plenamente preservado.

Em vista disso, tem-se que o legislador pautou a atuação do agente público no sentido de concretizar o fim trazido pela norma jurídica, o que, por si só, representa uma limitação à discricionariedade administrativa e possibilita seu controle. Nessa medida, cabe registrar a posição de Celso Antônio [28] no tocante à invalidade de ato discricionário que deixa de atender ao intuito da norma que o autorizou:

(...) se é impositivo concluir que a existência da discrição, como visto, funciona exatamente como prova demonstrativa de que a lei só admite a solução ótima, tem-se, então, que chegar a uma conclusão da qual não há fugir: a conduta que não atingir de modo preciso e excelente a finalidade legal, não é aquela pretendida pela regra de Direito. Se não é aquela pretendida pela regra de Direito, quem a promoveu atuou em desconformidade com a finalidade legal e quando alguém atua em desconformidade com a finalidade legal, o ato é inválido.

Tais premissas permitem concluir que infringir a finalidade é infringir também a legalidade, o que dá ensejo à apreciação pelo Judiciário do ato praticado em discordância com o fim público tutelado pela norma jurídica.

3.1.2.2 Discricionariedade inválida por quebra da legalidade administrativa

De início, é imperioso ressaltar que vem ocorrendo uma mutação do princípio da legalidade administrativa no Direito Administrativo pátrio. O princípio em questão passou a se constituir num princípio de juridicidade, ou de constitucionalidade, à medida que o fenômeno da constitucionalização do Direito Administrativo levou a Administração a deixar de estar vinculada exclusiva e necessariamente à existência prévia de lei, passando a se pautar no direito como um todo, em especial na Constituição.

A propósito, a doutrina vanguardista de Gustavo Binenbojm [29] explica com minúcia a referida transformação:

Contudo, pelas razões já estudadas acima, atinentes à crise da lei formal, assim como em virtude da emergência do neoconstitucionalismo, não mais se pode pretender explicar as relações da Administração Pública com o ordenamento jurídico à base de uma estrita vinculação positiva à lei. Com efeito, a vinculação da atividade administrativa ao direito não obedece a um esquema único, nem se reduz a um tipo específico de norma jurídica – a lei formal. Essa vinculação, ao revés, dá-se em relação ao ordenamento jurídico como uma unidade (Constituição, leis, regulamentos gerais, regulamentos setoriais), expressando-se em diferentes graus e distintos tipos de normas, conforme a disciplina estabelecida na matriz constitucional.

A vinculação da Administração não se circunscreve, portanto, à lei formal, mas a esse bloco de legalidade (o ordenamento jurídico como um todo sistêmico), a que aludia Hauriou, que encontra melhor enunciação, para os dias de hoje, no que Merkl chamou de princípio da juridicidade administrativa.

Luís Roberto Barroso [30] também analisa esse fato:

Supera-se, aqui, a idéia restrita de vinculação positiva do administrador à lei, na leitura convencional do princípio da legalidade, pela qual sua atuação estava pautada por aquilo que o legislador determinasse ou autorizasse. O administrador pode e deve atuar tendo por fundamento direto a Constituição e independentemente, em muitos casos, de qualquer manifestação do legislador ordinário. O princípio da legalidade transmuda-se, assim, em princípio da constitucionalidade ou, talvez mais propriamente, em princípio da juridicidade, compreendendo sua subordinação à Constituição e à lei, nessa ordem.

A nova vinculação do administrador, portanto, não o sujeita tão-só à lei formal, mas a todo o Direito, que não se resume à lei, mas consiste em um conjunto de valores, princípios e regras explícitos ou implícitos na ordem jurídica como um todo, notadamente na Constituição [31].

No tocante ao parâmetro de vinculação dos órgãos administrativos, convém registrar a posição de Ingo Wolfgang Sarlet [32]:

O que importa, neste contexto, é frisar a necessidade de os órgãos públicos observarem nas suas decisões os parâmetros contidos na ordem de valores da Constituição, especialmente dos direitos fundamentais, o que assume especial relevo na esfera de aplicação e interpretação de conceitos abertos e cláusulas gerais, assim como no exercício da atividade administrativa discricionária.

Nota-se que a legalidade, embora ainda muito importante, passa a ser somente um princípio do sistema de princípios e regras constitucionais. Nessa toada, leciona Gustavo Binenbojm [33]:

A reserva vertical de lei foi substituída por uma reserva vertical de Constituição. A Constituição para passa a figurar como norma diretamente habilitadora da atuação administrativa, havendo uma verdadeira ‘osmose entre a Constituição e a lei’. Pode-se, assim, dizer, com Canotilho, que se abre caminho para ‘uma legalidade sem lei’. Com efeito, como já explicitado no Capítulo II, a Constituição se presta (i) não só como norma direta e imediatamente habilitadora de competências administrativas, como também (ii) serve de critério imediato de decisão administrativa.

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Assim, modernamente, a legalidade administrativa não é nem pode ser apenas a submissão estrita da Administração às prescrições da lei, sob pena de a atividade administrativa ficar atravancada em razão de eventual ausência de normatização pelo Legislativo. Hoje, a Constituição permite e impõe ao administrador que não fique ao aguardo de uma lei, para que então aja em defesa das previsões constitucionais.

Nessa linha de raciocínio, Vladimir França [34] sustenta:

Entretanto, a administração pública não pode ser reduzida simplesmente à execução de leis, pois estaríamos diante de um Estado Legal e não de um Estado de Direito. (...)

O princípio da legalidade administrativa constitui elemento essencial de um princípio maior, o da juridicidade administrativa, que tem alcance bem mais amplo e, portanto, não se restringindo à lei formal. A atividade administrativa não está subordinada apenas à esta, mas também a todo regime jurídico-administrativo.

Levando em conta tais ensinamentos, pode-se dizer que há uma tendência na doutrina hodierna a considerar que a vinculação dos atos administrativos não se faz mais com relação exclusivamente à lei, mas à Constituição e demais normas do ordenamento, originando assim um novo parâmetro de vinculação do administrador. Ou seja, passa-se a falar em um princípio da juridicidade administrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao direito como um todo, e não mais apenas à lei [35].

Enfatiza-se, igualmente, que a obediência à juridicidade se estende desde a mera atribuição de competência até a limitação legal ao conteúdo da atuação administrativa, de modo que será tida por inválida a ação discricionária dissonante das prescrições contidas na ordem jurídica.

Feitas tais considerações, apresenta-se interessante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, ocorrido em 16/06/2004, em que se discute a possibilidade de anulação de ato discricionário praticado sem observância às limitações legais. Seguem abaixo a ementa e o voto do relator do referido caso.

MANDADO DE SEGURANÇA N° 2003.004518-0⁄RN

IMPETRANTE: F. SOUTO – INDÚSTRIA, COMÉRCIO E NAVEGAÇÃO S⁄A

ADVOGADO: JOSÉ NAERTON SOARES NERI

IMPETRADA: SECRETÁRIA DE ESTADO DA TRIBUTAÇÃO DO RIO GRANDE DO NORTE

RELATOR: JUIZ CONVOCADO MÁDSON OTTONI DE ALMEIDA RODRIGUES

EMENTA – Direito Administrativo. Mandado de Segurança. REFIS. Número de parcelas que extrapolou a previsão legal. Discricionariedade arbitrária. Anulação do ato administrativo. Poder⁄dever da Administração Pública. Ausência de direito líquido e certo. Denegação do writ.

A discricionariedade administrativa não se confunde com o arbítrio do administrador, que jamais poderia parcelar o débito fiscal além do número máximo de parcelas previsto na lei que instituiu o REFIS.

É poder⁄dever da Administração Pública invalidar os atos eivados de ilegalidade, sem afronta a direito líquido e certo.

VOTO

A questão posta em julgamento, ao contrário do que possa parecer à primeira vista, não apresenta dificuldades ao seu deslinde.

Convém registrar, de início, a falsa impressão trazida pela impetrante quanto à questão fática que envolve a lide. Segundo o que foi dito na peça vestibular, "concorde se pode aferir do texto da mencionada norma (no caso a Lei n° 7.875⁄2000, que instituiu o REFIS anterior), não havia, à época da edição da mencionada norma, limitação numérica para o parcelamento efetuado, de sorte que o débito confessado seria dividido em tantas parcelas quantas julgadas convenientes pela autoridade tributante, observados critérios de equilíbrio financeiro da empresa devedora" – destaquei.

Acontece que diferentemente da afirmação lançada na petição inicial, a Lei n° 7.875, de 13 de outubro de 2000, que instituiu o REFIS naquele ano, em seu art. 4°, estabeleceu com todas as suas letras que: "Os débitos consolidados devem ser pagos, em moeda corrente ou em cheque do próprio contribuinte, de acordo com legislação específica, mediante parcelamento em até 120 (cento e vinte) meses, em prestações sucessivas" – destaquei.

Como se vê, ao contrário do que disse a impetrante, a lei anterior limitou sim, em 120 (cento e vinte) meses, o número de parcelas do Programa de Recuperação Fiscal instituído no ano de 2000. A limitação da norma legal foi efetiva, cogente e não enseja nenhuma interpretação duvidosa quanto ao seu sentido.

No afã de justificar o privilégio que obteve além dos parâmetros legais, se favorecendo com um parcelamento em 1 (um) século, quando pela Lei n° 7.875⁄2000 somente seria cabível o prazo máximo de 10 (dez) anos, a impetrante tenta se agarrar na disposição contida no art. 6° da mencionada lei, cuja redação possui o seguinte teor: "A Secretaria da Tributação efetuará análise da situação econômica e financeira do contribuinte para fixação do número de parcelas, sendo o valor de cada uma, determinado em função de percentual da média mensal das entradas, no caso de inscritos no Cadastro de Contribuintes do Estado sujeitos ao regime na fonte, ou do faturamento médio mensal, nos demais regimes de pagamento, calculadas relativamente ao exercício imediatamente anterior à concessão do benefício, não podendo ser inferior a...".

Não precisa muito esforço para concluir que a previsão lançada do art. 6° acima transcrito, que prevê a "análise da situação econômica e financeira do contribuinte para fixação do número de parcelas", não ensejava a extrapolação ao limite máximo de 120 (cento e vinte) parcelas, previsto no art. 4° do mesmo diploma legal.

Ora, se o art. 4° da mencionada lei estabelecia o parcelamento em até 120 (cento e vinte) meses, a análise de que trata o art. 6° obviamente se refere à fixação do número de parcelas dentro do limite máximo previsto no diploma legal.

Nesse caso, indubitável a observância ao princípio da legalidade a que está atrelada a administração pública. No dizer de Hely Lopes Meirelles, "A legalidade, como princípio de administração (CF, art. 37, caput), significa que o administrador público está, em toda a sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei e às exigências do bem comum, e deles não pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se a responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso".  E continua o mesmo autor: "Na administração pública não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. A lei para o particular significa pode fazer assim; para o administrador público significa deve fazer assim (in "Direito Administrativo Brasileiro", Malheiros, 29ª edição, págs. 87⁄88).

Poder-se-ia obtemperar dizendo que o princípio da legalidade não pode ser analisado de forma isolada, cabendo ao administrador o poder discricionário quanto à conveniência, oportunidade e conteúdo dos atos que pratica. Ocorre que a liberdade de ação administrativa não se confunde com o arbítrio da ação contrária ou excedente da lei. O ato discricionário pautado no limite da legalidade é válido; já o ato arbitrário, além dos limites da lei, é ilegítimo e inválido.

Seabra Fagundes, em luminoso voto proferido neste mesmo Tribunal, que se tornou paradigma no estudo sobre o poder discricionário e o controle judicial dos atos administrativos, advertiu que: (...) A competência discricionária não se exerce acima ou além da lei, senão como toda e qualquer atividade executória, com sujeição a ela" (RDA 14⁄54).

Pois bem, Srs. Desembargadores, no caso presente, depois de requerimento formulado pela empresa impetrante, nos autos do processo administrativo n° 0277⁄2001-06, visando o parcelamento do ICMS, Sua Excelência o Secretario de Estado da Tributação a época, Sr. José Jacaúna de Assunção, em despacho cuja cópia se encontra à fl. 42, datado de 20⁄02⁄2001, lançou o seguinte comando: "Autorizo em um mil e duzentas (1.200) parcelas iguais, mensais e sucessivas".

Não há dúvida que o despacho supra se houve ao arrepio da Lei n° 7.875⁄2000. A discricionaridade administrativa do Secretario de Estado da Tributação jamais poderia chegar a tanto. Como disse anteriormente, o máximo do parcelamento legal admitido era de 120 (cento e vinte) meses.

Pois bem, é justamente fundada nesse ato arbitrário do administrador público, que a impetrante tenciona manter seu privilégio ilegal, servindo-se para tanto do presente writ. Sua alegação é no sentido de ter adquirido direito ao parcelamento realizado anteriormente, logo a Lei Estadual n° 8.429⁄2003, responsável por novo Programa de Recuperação Fiscal, com limite de prestações em 180 (cento e oitenta) meses, não poderia retroagir para atacar o ato jurídico perfeito, nem prejudicar o direito adquirido da impetrante.

Aqui eu indago: onde está o ato jurídico perfeito? Existe direito adquirido frente a uma ilegalidade? No caso presente a Lei n° 7.875⁄2000 previa um prazo máximo de parcelamento e o Secretario de Estado da Tributação, por vontade própria, estendeu este prazo por mais 90 (noventa) anos.

(...)

Corroborando a premissa anterior, Celso Antônio Bandeira de Melo (in "Curso de Direito Administrativo, Malheiros", 10ª ed., p. 290), assim pontifica: "Os atos administrativos praticados em desconformidade com as prescrições jurídicas são inválidos. A noção de invalidade é anti-ética à de conformidade com o direito (validade)".

Em idêntico sentido, o Supremo Tribunal Federal assentou sua jurisprudência aditando a Súmula 473 (...)

Neste sentido, o Executivo Estadual por meio de Convênio ICMS 103⁄03, firmado com CONFAZ – Conselho Nacional de Política Fazendária, e o Legislativo Estadual, por meio da Lei Ordinária n° 8.429, de 27 de novembro de 2003, estatuiu um novo Programa de Recuperação Fiscal no âmbito do Estado do Rio Grande do Norte, desta feita autorizando o parcelamento dos débitos fiscais em 180 (cento e oitenta) meses, desde que os fatos geradores tenham ocorrido até 31 de julho de 2003.

O mesmo diploma legal lançou o seguinte comando em seu art. 16: "Caberá à autoridade administrativa competente proceder à convalidação dos atos administrativos concessivos de parcelamentos com base nas Leis Estaduais n° 7.875, de 13 de outubro de 2000 e n° 8.228, de 17 de setembro de 2002, que tenham sido editados em desconformidade com os respectivos Convênios Interestaduais, desde que guardem consonância com os limites e condições previstos nesta Lei".

Vê-se que o Executivo Estadual nada mais fez senão invalidar os longuíssimos parcelamentos autorizados ilegalmente, o que se encontra rigorosamente dentro do poder discricionário de que dispõe a Administração Pública. Como ensina Hely Lopes Meirelles (in "Direito Administrativo Brasileiro", Malheiros, 29ª edição, p. 203⁄204): "A anulação dos atos administrativos pela própria Administração constitui a forma normal de invalidação de atividade ilegítima do Poder Público. Essa faculdade assenta no poder de autotutela do Estado. É uma justiça interna, exercida pelas autoridades administrativas em defesa da instituição e da legalidade de seus atos". E continua o mesmo autor: "O ato nulo não vincula as partes, mas pode produzir efeitos válidos em relação a terceiros de boa-fé. Somente os efeitos que atingem terceiros é que devem ser respeitados pela Administração; as relações entre as partes ficam desfeitas com a anulação, retroagindo esta à data da prática do ato ilegal e, conseqüentemente, invalidando seus efeitos desde então (ex tunc)".

ISTO POSTO, ausente o requisito da liquidez e certeza do direito da impetrante, em conformidade com o parecer emitido pela Douta Procuradoria de Justiça, voto pela denegação da segurança.

A situação acima foi descrita minuciosamente por demonstrar com clareza, em um caso concreto, a plausibilidade do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa exercida em descompasso com a lei.

Do exposto, infere-se que o agente governamental deve observar sempre os lindes traçados pelo ordenamento jurídico, sob pena de praticar ato inválido, passível de anulação pelo Poder Judiciário.

3.1.2.3 Discricionariedade inválida pela inexistência ou incompatibilidade dos motivos

Inicialmente, vale ressaltar que os conceitos de motivo e motivação não se confundem.

O motivo é elemento obrigatório de todo ato administrativo – sem ele o ato é nulo. Corresponde à situação de fato e de direito que determina ou autoriza a realização do ato administrativo. Qualquer ato administrativo deve estar necessariamente assentado em motivos capazes de justificar a sua emanação, de maneira que a sua falta ou falsidade conduz à nulidade do ato.

Em vista disso, tem-se que o motivo é um dos elementos do ato administrativo e pode vir expresso na lei como condição determinante da prática do ato ou pode a lei deixar ao administrador a avaliação quanto à existência do motivo e a valoração quanto à oportunidade e conveniência da prática do ato. No caso de ato vinculado, a lei descreve completa e objetivamente a situação de fato que determina, obrigatoriamente, a prática do ato administrativo, cujo conteúdo deverá ser exatamente o especificado na lei. Já quando se trata de ato discricionário, a lei autoriza a prática do ato à vista de determinado fato. Nesta última situação, constatado o fato, a Administração pode praticar o ato ou pode escolher seu objeto de acordo com critérios de oportunidade e conveniência, nos limites da lei [36].

Por outro lado, a motivação vem a ser a exposição dos motivos que determinaram a prática do ato. Consiste na exteriorização das razões de fato e de direito que levaram o administrador a tomar determinada medida – são as "razões de decidir", o ato de circunstanciar a decisão. Embora seja a regra, não é obrigatória para todos os atos administrativos – até porque existem atos tipicamente discricionários e sem motivação declarada, como, por exemplo, a nomeação ad nutum de servidor ocupante de cargo comissionado [37].

O princípio da motivação dos atos administrativos não está expresso na Constituição Federal para toda a Administração Pública, mas tão-só para a atuação administrativa dos tribunais do Poder Judiciário, segundo seu art. 93, X. Entretanto, convém destacar que a Lei 9.784/99 enumerou expressamente no seu art. 50 os atos administrativos para os quais se exige motivação:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;

IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;

V - decidam recursos administrativos;

VI - decorram de reexame de ofício;

VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;

VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

A despeito de a regra indicar expressamente os atos que exigem motivação, juristas como Celso Antonio chegam a erigir a motivação à condição de verdadeiro princípio administrativo [38]:

Os atos administrativos praticados sem a tempestiva e suficiente motivação são ilegítimos e invalidáveis pelo Poder Judiciário toda vez que sua fundamentação tardia, apresentada apenas depois de impugnados em juízo, não possa oferecer segurança e certeza de que os motivos aduzidos efetivamente existiam ou foram aqueles que embasaram a providência contestada.

O fundamento da exigência da motivação é o princípio da transparência da Administração Pública, o qual deriva do princípio da publicidade. Aliás, a própria cidadania exige a motivação dos atos administrativos, já que essa declaração escrita dos pressupostos autorizadores da prática do ato é essencial para assegurar o efetivo controle do Poder Público, inclusive o controle popular.

Na mesma ordem de ideias, Florivaldo Dutra adverte que os atos discricionários, exatamente por decorrerem de uma margem de liberdade, devem trazer claros seus motivos, afinal, "quanto menos intensamente regrado o ato, mais a motivação faz-se necessária ao seu controle e, pois, à sua validade". [39]

Assim, pode-se afirmar que em face dos princípios constitucionais da publicidade, moralidade e de amplo acesso ao Poder Judiciário, os atos discricionários, regra geral, devem ser motivados, devendo a motivação estar sempre dentro dos limites da lei, eis que a liberdade do administrador para a prática dos atos discricionários é sempre uma liberdade legalmente restrita [40].

Frisa-se que embora a exigência seja regra geral, há casos, como a nomeação para cargo em confiança, em que o ato prescinde de motivação, não obstante se vincule a ela quando existente.

Em resumo: como regra, é exigida a exposição dos pressupostos fáticos e jurídicos que fundamentaram a edição do ato e a persecução da finalidade da norma jurídica, uma vez que deve haver uma correlação lógica entre os elementos do ato e a lei.

Por óbvio, o administrador fica vinculado à motivação que apresentou, o que permite o controle judicial do ato e evita que sejam criados argumentos ad hoc por parte do administrador com a finalidade apenas de rebater críticas, justificando a posteriori seu ato. A ausência de motivação pode levar a invalidação do ato.

Ao discorrer sobre a ampliação do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, Maria Sylvia [41] aponta a teoria dos motivos determinantes como uma das teorias que têm sido elaboradas para limitar o exercício do poder discricionário. Veja-se:

Outra é a teoria dos motivos determinantes, já mencionada: quando a Administração indica os motivos que a levaram a praticar o ato, este somente será válido se os motivos forem verdadeiros. Para apreciar esse aspecto, o Judiciário terá que examinar os motivos, ou seja, os pressupostos de fato e as provas de sua ocorrência. Por exemplo, quando a lei pune um funcionário pela prática de uma infração, o Judiciário pode examinar as provas constantes do processo administrativo, para verificar se o motivo (a infração) realmente existiu. Se não existiu ou não for verdadeiro, anulará o ato.

Por tudo isso, tem-se que a motivação é parâmetro para o controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. A ausência da necessária motivação configura ilegalidade passível de controle jurisdicional. Enfatiza Lúcia Valle Figueiredo [42]:

Sem motivação não há possibilidade de aferir-se a justiça ou a injustiça de decisão, porque não saberemos se a decisão é boa ou má. Quais foram as razões dadas para tal decisão? As razões puramente subjetivas do administrador não deveriam contar muito, porque, na verdade, o administrador deve aplicar o direito no caso concreto, não à luz dos seus standards pessoais, mas à luz, sim, dos standards da comunidade, à luz do que é direito, aqui e agora, na comunidade, à luz do que é princípio, aqui e agora, na comunidade.

Desta feita, a motivação é fundamental para o desempenho da função administrativa, mormente em face da Constituição. Será, pois, de cabal importância, porquanto sem ela não se pode avaliar a razoabilidade, a congruência lógica entre o ato emanado e seu motivo (pressuposto de fato), a boa-fé da Administração, entre outros.

Nessa medida, se mostra pertinente a decisão que segue:

RECURSO ESPECIAL – MANDADO DE SEGURANÇA – TRANSFERÊNCIA DE SERVIDOR PÚBLICO – ATO DISCRICIONÁRIO NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO – RECURSO PROVIDO.

1. Independentemente da alegação que se faz acerca de que a transferência do servidor público para localidade mais afastada teve cunho de perseguição, o cerne da questão a ser apreciada nos autos diz respeito ao fato de o ato ter sido praticado sem a devida motivação.

2. Consoante a jurisprudência de vanguarda e a doutrina, praticamente, uníssona, nesse sentido, todos os atos administrativos, mormente os classificados como discricionários, dependem de motivação, como requisito indispensável de validade.

3. O Recorrente não só possui direito líquido e certo de saber o porquê da sua transferência "ex officio", para outra localidade, como a motivação, neste caso, também é matéria de ordem pública, relacionada à própria submissão a controle do ato administrativo pelo Poder Judiciário.

4. Recurso provido.

(STJ, SEXTA TURMA, RMS 15459/MG, Rel. Min. PAULO MEDINA DJ 16.05.2005 p. 417)

O Supremo Tribunal Federal também já se posicionou no sentido de considerar a motivação como critério para a aferição da legalidade dos atos administrativos. Veja-se:

ADMINISTRATIVO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. MAGISTRADO. PROMOÇÃO POR ANTIGUIDADE. RECUSA. INDISPENSABILIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 93, X, DA CF.

Nulidade irremediável do ato, por não haver sido indicada, nem mesmo na ata do julgamento, a razão pela qual o recorrente teve o seu nome preterido no concurso para promoção por antiguidade. Recurso provido.

(STF, Primeira Turma, RE 235487 / RO, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, Publicação: DJ 21-06-2002 PP-00099 EMENT VOL-02074-04 PP-00685)

No julgamento do RE acima, o Min. Sepúlveda Pertence discorre a respeito da necessidade de motivação dos atos discricionários, consoante se verifica no seguinte trecho do voto do Ministro:

Sr. Presidente, mostrou o eminente Relator que, no caso, recusou-se "o juiz mais antigo", e, se houve motivação, qual acentuou o Tribunal a quo no acórdão recorrido, ela não se materializou: o que equivale à inexistência de motivação.

Entendo que à semelhança do que decidimos a respeito do veto imotivado a candidatos à magistratura, no RE l25.55, 27/03/92, de que V.Exa. foi Relator (RTJ 141/2/99), também, e com mais razão, a recusa do juiz mais antigo há de ser motivada: já o antecipara no MD 21.269, de que relator o eminente Ministro Francisco Rezek, já recordado em votos anteriores.

Alguns dos votos que me precederam afirmaram que o ato não é discricionário. Ao contrário, penso que o ato é discricionário. Mas precisamente porque discricionário é que a recusa reclama motivação. O ato vinculado não a reclama, na normalidade dos casos, porque, ou o motivo legal necessário à sua validade existe ou não. E, de regra, não é preciso que ele seja explicitado, porque o prejudicado pode demonstrar que não existe o único motivo que validaria o ato. Já o ato discricionário, sim, deve ser motivado para submeter-se, não apenas ao controle de legalidade estrita, mas também ao do abuso de poder. De tal modo que a mim me parece evidente a necessidade da motivação.

É bom lembrar que serão considerados válidos somente os motivos que efetivamente ocorreram e que verdadeiramente justificaram a conduta do administrador, de maneira que a inexistência ou a inidoneidade dos motivos alegados é causa suficiente para o controle jurisdicional dos atos editados sob seu fundamento. Nesse sentido, lembra a professora Maria Sylvia [43]:

(...) não há invasão do mérito quando o Judiciário aprecia os motivos, ou seja, os fatos que precedem a elaboração do ato; a ausência ou falsidade do motivo caracteriza ilegalidade, suscetível de invalidação pelo Poder Judiciário.

Ora, dentro da margem de discricionariedade da Administração Pública podem ocorrer atos praticados com abuso de poder ou desvio de finalidade. Nessa perspectiva, é a análise dos motivos, em cada caso concreto, que poderá permitir a verificação da correspondência do ato atacado com os princípios que regem a atividade administrativa. Por isso se considera que o princípio da motivação dos atos administrativos constitui, hoje, uma exigência do Direito Administrativo nos países democráticos.

3.1.2.4 Discricionariedade inválida pala falta de razoabilidade e proporcionalidade

Os princípios da razoabilidade e proporcionalidade não se encontram expressos no texto constitucional. São eles, na verdade, princípios gerais de direito, aplicáveis a praticamente todos os ramos da ciência jurídica.

No âmbito do Direito Administrativo, a razoabilidade e proporcionalidade estão expressamente previstos no art. 2º da Lei 9.784/99. Além disso, a mesma lei estabelece no inciso IV do parágrafo único do mencionado artigo que nos processos administrativos serão observados, entre outros critérios, "a adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público". Em vista disso, os princípios em comento ocupam posição de destaque no controle de atos discricionários que impliquem restrições ou condicionamentos a direitos dos administrados ou imposição de sanções administrativas.

Em apertada síntese, o princípio da razoabilidade tem por escopo aferir a compatibilidade entre os meios empregados e os fins visados na prática de um ato administrativo, de modo a evitar restrições aos administrados inadequadas, desnecessárias, arbitrárias ou abusivas por parte da Administração Pública. É comum associar tal princípio às análises de adequação e de necessidade do ato ou da atuação da Administração Pública.

Não se pode conceber a função administrativa, o regime jurídico administrativo, sem se inserir o princípio da razoabilidade. É por meio da razoabilidade das decisões tomadas que se poderá contrastar atos administrativos e verificar se estão dentro da moldura legal. Pode-se dizer que a razoabilidade vai se atrelar à congruência lógica entre situações postas e as decisões administrativas, entre o fato (motivo) e a atuação concreta da Administração. Vai se atrelar às necessidades da coletividade, à legitimidade, à economicidade, isto é, à relação de custos e benefícios [44].

Maria Sylvia [45] faz menção ao princípio da razoabilidade nos seguintes termos: "(...) alguns autores apelam para o princípio da razoabilidade para daí inferir que a valoração subjetiva tem que ser feita dentro do razoável, ou seja, em consonância com aquilo que, para o senso comum, seria aceitável perante a lei".

A par do princípio da razoabilidade está o da proporcionalidade. Conquanto muitas vezes não seja feita uma distinção precisa entre os dois princípios, tem-se que de acordo com o princípio da proporcionalidade deve haver adequação entre os meios utilizados pelo administrador público e os fins que ele pretende alcançar. As medidas tomadas pelo Poder Público devem se adequar às necessidades administrativas. Vale dizer: somente se sacrificam interesses individuais em função de interesses coletivos, de interesses primários, na medida da estrita necessidade, não se desbordando do que seja indispensável para a implementação da necessidade pública. [46]

O postulado da proporcionalidade é importante sobretudo no controle dos atos sancionatórios. Com efeito, a intensidade e a extensão das punições devem guardar uma relação de proporcionalidade com a lesividade e a gravidade da conduta que tenciona reprimir. A noção é intuitiva: uma infração leve deve receber uma sanção branda; uma falta grave deve receber uma sanção severa.

Luís Roberto Barroso [47], ao abordar a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, refere-se aos princípios em tela nos seguintes termos:

Não apenas os princípios constitucionais gerais já mencionados, mas também os específicos, como moralidade, eficiência e, sobretudo, a razoabilidade-proporcionalidade permitem o controle da discricionariedade administrativa (observando-se, naturalmente, a contenção e a prudência, para que não se substitua a discricionariedade do administrador pela do juiz).

Como se vê, ambos os postulados são de primordial importância no exame judicial da discricionariedade administrativa, tendo sido amplamente mencionados pela doutrina e pela jurisprudência pátrias.

3.1.2.5 Discricionariedade inválida pela utilização de via jurídica incompatível com os pressupostos fáticos ou jurídicos justificadores de sua decisão

De outra parte, Celso Antonio [48] destaca que também é cabível o controle jurisdicional no tocante à causa do ato administrativo. Enquanto o motivo é pressuposto de fato e de direito que autoriza ou fundamenta a prática do ato, a causa é a correlação lógica existente entre o motivo e o conteúdo do ato, em vista da finalidade legal.

Por meio da apreciação da causa se pode examinar se os motivos em que se baseou o agente possuem nexo lógico com a decisão tomada diante da finalidade que se pretende atender. Vale dizer: o critério avaliador da pertinência é a finalidade; em face dela é que se reconhecerá se uma dada situação postulava ou não aquela conduta da Administração. Daí tem-se que, se faltar "causa idônea" – se os fatos ou as circunstâncias tomadas em conta para a prática do ato não guardarem relação de adequação lógica suficiente para justificar a conduta administrativa em vista do fim que esta se propõe a realizar, o ato será inválido [49].

Para o mencionado autor [50]:

O exame da causa apresenta especial relevo nos casos em que a lei omitiu-se na enunciação dos motivos, dos pressupostos, que ensejaram a prática do ato. Nestas situações não haveria como cotejar o motivo legal com a situação fática para aferir o ajuste ou desajuste entre eles, precisamente por faltado a indicação normativa. Ainda aqui a liberdade discricionária encontraria cerceios. Admitido que o agente pudesse escolher o motivo em função do qual haja exarado o ato, cumpre, de todo modo, que este seja logicamente correlacionado com o conteúdo do ato, em vista da finalidade que o categoriza.

Desta feita, deduz-se que deve haver uma relação de pertinência entre a situação empírica (pressuposto de fato) e o ato em si, de modo a permitir que a finalidade normativa visada pelo ato seja alcançada. Sem essa pertinência, a finalidade alcançada é inválida e ilegal e, em consequência, será inválido o ato administrativo que a concretizou. Como o desvirtuamento do fim previsto na norma é uma ilegalidade, incumbe ao Poder Judiciário revisar o ato que a praticou.

3.1.1 Controle jurisdicional como garantia do administrado

A Administração Pública mostra-se indispensável para a concretização das metas constitucionais do Estado brasileiro. Não há, porém, administração pública democrática sem controle, tanto que o professor Vladimir da Rocha França [51] afirma: "é indispensável o controle das atividades estatais pela sociedade e pelo próprio Estado, em conformidade com a lei, destinado a preservação das instituições democráticas".

A fiscalização do Poder Público representa, por conseguinte, um dos meios mais hábeis e adequados para garantir o efetivo acesso dos administrados a uma ação estatal eficiente. Visa analisar, conformar e retificar as ações questionadas em favor do interesse público. Evidentemente esse controle deve ser exercido dentro dos parâmetros legais e mediante competências previamente positivadas, tendo por consequência todo um conjunto de medidas que reconduzam o agente público ao caminho que lhe é imposto pelo direito positivo [52].

Como se viu, a discricionariedade administrativa é sempre relativa. A margem de subjetividade que o ordenamento jurídico reconhece no ato discricionário não está condicionada por completo ao livre arbítrio do administrador. Repisa-se: no Estado Democrático de Direito não há ação estatal inteiramente liberta de padrões jurídicos de conduta, de modo que a autoridade administrativa, como todo e qualquer agente estatal, só tem poder jurídico na dimensão que o ordenamento lhe conceder. Portanto, os limites à faculdade concedida ao administrador são delineados pelo próprio ordenamento jurídico – são regras, princípios ou teorias que delimitam o campo de ação do agente público.

De outra parte, deve-se levar em consideração que não há imunidade legal para quem infringe direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da Administração e por isso mesmo se sujeita a regular apreciação pelo órgão jurisdicional. Uma vez constatado que houve exercício inválido da discricionariedade administrativa, deverá o Judiciário invalidar o respectivo ato por atentar contra a ordem vigente.

Sendo assim, não merece prosperar a alegação de que a análise judicial dos atos discricionários resultará em ofensa ao princípio da separação dos poderes. Muito pelo contrário. Todo controle judicial é um controle de juridicidade, pois na posição de último guardião da estabilidade da ordem jurídica, tem o Poder Judiciário o dever de apreciar qualquer injuridicidade da atividade administrativa. Nesse ponto, convém trazer à tona a posição de Vladimir da Rocha França [53], a qual é adotada pelo presente trabalho:

A manutenção da violação à lei nos atos administrativos, sob a justificativa de que esta ou outra matéria goza de invulnerabilidade, em face do controle jurisdicional, é danosa ao próprio princípio da separação dos poderes, podendo gerar uma anacrônica tutela de injuridicidade por quem tem, por dever constitucional, que ser o último recurso para preservação da ordem jurídica.

Corroborando o entendimento esposado ao longo deste estudo, Maria Sylvia [54] anota:

Essa tendência que se observa na doutrina, de ampliar o alcance da apreciação do Poder Judiciário, não implica invasão da discricionariedade administrativa; o que se procura é colocar essa discricionariedade em seus devidos limites, para distingui-la da interpretação (apreciação que leva a uma única solução, sem interferência da vontade do intérprete) e impedir as arbitrariedades que a Administração Pública pratica sob o pretexto de agir discricionariamente.

A partir das leituras realizadas, conclui-se que o exame judicial do mérito dos atos discricionários não representa uma usurpação da função administrativa do órgão controlado. Ao revés, o controle jurisdicional é uma garantia do administrado: funciona como um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais dos indivíduos, já que tem por função precípua impedir que a Administração desobedeça aos limites legais, deixando de atender, dessa forma, o interesse público. Daí a importância do Poder Judiciário para a construção da administração pública democrática – a decisão judicial tem o condão de restaurar a conformidade da ação administrativa com o ordenamento jurídico.

Esclareça-se que o Poder Judiciário não está restrito à apreciação da legalidade exterior do ato administrativo: poderá investigar os aspectos não vinculados do ato com o intuito de assegurar, tão-somente, que o administrador se ateve ao espaço que lhe cabia na formação e concretização da medida [55].

Não há, pois, que se falar em usurpação de atribuições quando o Poder Judiciário analisa o mérito administrativo, especialmente porque os critérios de conveniência e oportunidade devem se sujeitar à legalidade (em sentido amplo), competindo ao Judiciário, detentor do monopólio da jurisdição, verificar in concreto essa correlação. Daí a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello [56]:

Nada há de surpreendente, então, em que o controle jurisdicional dos atos administrativos, ainda que praticados em nome de alguma discrição, se estenda necessária e insuperavelmente à investigação dos motivos, da finalidade e da causa do ato. Nenhum empeço existe a tal proceder, pois é meio – e, de resto, fundamental – pelo qual se pode garantir o atendimento da lei, a afirmação do direito.

Acompanhando a tendência da doutrina moderna, o STJ, em alguns julgados, tem redesenhado o entendimento da matéria, consoante se observa na decisão que segue:

ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.

1. Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.

2. Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.

3. O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.

4. Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la.

5. Recurso especial provido.

(STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219)

O caso acima referido demonstra o rompimento de paradigmas ocorrido nos últimos anos, razão pela qual vale transcrever excerto do voto da relatora do recurso, Min. Eliana Calmon:

Ao longo de vários anos, a jurisprudência havia firmado o entendimento de que os atos discricionários eram insusceptíveis de apreciação e controle pelo Poder Judiciário.

Tratava-se de aceitar a intangibilidade do mérito do ato administrativo, em que se afirmava, pelo fato de ser a discricionariedade competência tipicamente administrativa, que o controle jurisdicional implicaria ofensa ao princípio da Separação dos Poderes.

Não obstante, a necessidade de motivação e controle de todos os atos administrativos, de forma indiscriminada, principalmente, os em que a Administração dispõe da faculdade de avaliação de critérios de conveniência e oportunidade para praticá-los, isto é, os atos classificados como discricionários, é matéria que se encontra, atualmente, pacificada pela imensa maioria da doutrina e, fortuitamente, aos poucos acolhida na jurisprudência de maior vanguarda.

O controle dos atos administrativos, mormente os discricionários, onde a Administração dispõe de certa margem de liberdade para praticá-los, é obrigação cujo cumprimento não pode se abster o Judiciário, sob a alegação de respeito ao princípio da Separação dos Poderes, sob pena de denegação da prestação jurisdicional devida ao jurisdicionado.

Como cediço, a separação das funções estatais, prevista, inicialmente, por Rousseau e aprimorada por Montesquieu, desde que se concebeu o sistema de freios e contrapesos, no Estado Democrático de Direito, tem se entendido como uma operação dinâmica e concertada.

Explico: As funções estatais, Executivo, Legislativo e Judiciário não podem ser concebidas de forma estanque. São independentes, sim, mas, até o limite em que a Constituição Federal impõe o controle de uma sobre as outras, de modo que o poder estatal, que, de fato, é uno, funcione em permanente auto-controle, fiscalização e equilíbrio.

Assim, quando o Judiciário exerce o controle "a posteriori" de determinado ato administrativo não se pode olvidar que é o Estado controlando o próprio Estado. Não se pode, ao menos, alegar que a competência jurisdicional de controle dos atos administrativos incide, tão somente, sobre a legalidade, ou melhor, sobre a conformidade destes com a lei, pois, como se sabe, discricionariedade não é liberdade plena, mas, sim, liberdade de ação para a Administração Pública, dentro dos limites previstos em lei, pelo legislador. E é a própria lei que impõe ao administrador público o dever de motivação.

Há que se registrar, por fim, o posicionamento do Ministro Eros Grau na relatoria de processo que versa sobre o exercício de poder disciplinar pela autoridade administrativa e os limites do controle jurisdicional:

A doutrina moderna tem convergido no entendimento de que é necessária e salutar a ampliação da área de atuação do Judiciário, tanto para coibir arbitrariedades – em regra praticadas sob o escudo da assim chamada discricionariedade –, quanto para conferir-se plena aplicação ao preceito constitucional segundo o qual "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" (art. 5, XXXV, CB/88).

(...)

Como a atividade administrativa é infralegal – administrar é aplicar a lei de ofício, dizia Seabra Fagundes –, a autoridade administrativa está vinculada pelo dever de motivar os seus atos. Assim, a análise e ponderação da motivação do ato administrativo informam o controle, pelo Poder Judiciário, da sua correção.

O Poder Judiciário verifica, então, se o ato é correto. Não, note-se bem – e desejo deixar isso bem vincado –, qual o ato correto.

E isso porque, repito-o, sempre, em cada caso, na interpretação, sobretudo de textos normativos que veiculem "conceitos indeterminados" (vale dizer, noções), inexiste uma interpretação verdadeira (única correta); a única interpretação correta – que haveria, então, de ser exata – é objetivamente incognoscível (e, in concreto, incognoscível). Ademais, é óbvio, o Poder Judiciário não pode substituir-se à Administração, enquanto personificada no Poder Executivo. Logo, o Poder Judiciário verifica se o ato é correto; apenas isso.

Nesse sentido, o Poder Judiciário vai à análise do mérito do ato administrativo, inclusive fazendo atuar as pautas da proporcionalidade e da razoabilidade, que não são princípios, mas sim critérios de aplicação do direito, ponderados no momento das normas de decisão.

(RMS 24699, Relator(a):  Min. EROS GRAU, Primeira Turma, julgado em 30/11/2004, DJ 01-07-2005 PP-00056 EMENT VOL-02198-02 PP-00222 RDDP n. 31, 2005, p. 237-238 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p. 167-183 RTJ VOL-00195-01 PP-00064)

Portanto, na revisão dos atos praticados no exercício de prerrogativas discricionárias cabe ao Judiciário o exercício de um controle "negativo" da discricionariedade. Vale dizer: não compete ao Judiciário dizer se a solução praticada pelo administrador foi a melhor possível, já que se trata de um juízo valorativo, axiológico, subjetivo do agente público, mas sim, no caso concreto, dizer se a escolha levada a efeito pela Administração se manteve nos padrões do razoável, não transbordando os limites a que está sujeita pelo ordenamento jurídico positivo. Ora, se a própria norma jurídica estabelece limites ao poder discricionário, não há porque negar seu controle externo.

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Sobre a autora
Ana Cristina Brasil Monteiro Costa

Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte(UFRN), pós-graduada em direito Público pela Universidade de Anhanguera (UNIDERP) em parceria com a rede de ensino Luiz Flávio Gomes. Advogada em Natal/RN » Cidade de domicílio: NATAL/RN » Endereço: AV. SANDOVAL TAVARES GUERREIRO, 24, NOVA PARNAMIRIM – NATAL / RN » Telefone: 9659-8196 » E-mail:

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Ana Cristina Brasil Monteiro. Breves notas acerca do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa no regime jurídico-aministrativo brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2677, 30 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17708. Acesso em: 23 dez. 2024.

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