Permeiam no seio da comunidade jurídica dúvidas acerca do fundamento legal para a contratação de empresa fornecedora de energia elétrica para o Poder Público. Analisando in loco diversos procedimentos administrativos em algumas autarquias federais, percebi que ora a contratação é considerada dispensa de licitação (com fulcro no artigo 24, XXII da Lei nº 8.666/93) e ora é fundamentada na inexigibilidade de licitação (artigo 25 da mesma Lei).
Dessa feita, penso ser importante, desde logo, trazer à baila os retromencionados dispositivos para maior aclaramento da questão. Vejamos:
Art. 24. É dispensável a licitação:
(...)
XXII - na contratação de fornecimento ou suprimento de energia elétrica e gás natural com concessionário, permissionário ou autorizado, segundo as normas da legislação específica;
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;
II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
A Lei nº 8.666/93 possui supedâneo no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que estabelece a obrigatoriedade de realização de procedimento licitatório para contratações feitas pelo Poder Público. No entanto, o próprio dispositivo constitucional reconhece a existência de exceções à regra ao efetuar a ressalva dos casos especificados na legislação, quais sejam, a dispensa e a inexigibilidade de licitação.
Sendo assim, o legislador Constituinte admitiu a possibilidade de existirem casos em que a licitação poderá deixar de ser realizada, autorizando a Administração Pública a celebrar, de forma discricionária, contratações diretas sem a concretização de certame licitatório. A dispensa de licitação, assim como sua inexigibilidade, é uma dessas modalidades de contratação direta.
Antes de adentrar propriamente no debate proposto, insta tecer comentários acerca das duas modalidades acima elencadas. A dispensa de licitação é a possibilidade de celebração direta de contrato entre a Administração e o particular, nos casos estabelecidos no art. 24 da Lei 8.666/93. Observa-se que a referida lei enumerou expressamente as hipóteses de dispensa de licitação, sendo este rol taxativo. Neste sentido, as lições do renomado Jessé Torres Pereira Júnior [01]:
"As hipóteses de dispensabilidade do art. 24 constituem rol taxativo, isto é, a Administração somente poderá dispensar-se de realizar a competição se ocorrente uma das situações previstas na lei federal. Lei estadual, municipal ou distrital, bem assim regulamento interno da entidade vinculada não poderá criar hipótese de dispensabilidade".
Além disso, ressalte-se que, nestes casos relacionados pela legislação, há a discricionariedade da Administração na escolha da dispensa ou não do certame, devendo sempre se levar em conta o interesse público. Muitas vezes o administrador opta pela dispensa, posto que, como afirma o ilustre Marçal Justen Filho [02], "os custos necessários à licitação ultrapassarão benefícios que dela poderão advir".
Já a inexigibilidade de licitação ocorre quando há inviabilidade de competição, ou seja, é impossível promover-se a competição, tendo em vista que um dos contendores reúne qualidades tais que o tornam único, exclusivo, inibindo os demais pretensos participantes.
Saliente-se que o rol normativo do art. 25 do Estatuto das Licitações diferencia-se do da dispensa, uma vez que tem natureza exemplificativa, segundo posicionamento uníssono da doutrina pátria.
Desta forma, conclui-se que nos casos de dispensa, previstos em lei, o administrador tem a faculdade de licitar ou não, enquanto que na inexigibilidade, há impossibilidade de ser realizado o procedimento de competitividade para aquisição da proposta mais vantajosa para a Administração.
Entretanto, nota-se que os setores técnicos dos entes federais estão fundamentando, quase que sem exceção, todas as contratações de empresa fornecedora de energia elétrica com base no artigo 24, XXII do Estatuto das Licitações. Permissa venia, este não é o melhor entendimento.
Para alocação da contratação de empresa fornecedora de energia elétrica como uma dispensa de licitação, necessário que alguns requisitos sejam atendidos. Atente-se que, consoante já asseverado em linhas precedentes, a dispensa de licitação traduz uma hipótese excepcional prevista pelo legislador ordinário de disposição de verba pública com ausência de licitação. Para tanto, deve ser resguardada a compatibilidade com o objetivo constitucional dos princípios da igualdade e da proposta mais vantajosa ao interesse público.
Assim é que um requisito imprescindível para a instrução do procedimento de dispensa de licitação é a pesquisa de preços. Dessa feita, se há a necessidade de pesquisa de preços, é porque existe mais de uma empresa capaz de fornecer o serviço [03] desejado pela Administração, garantindo, assim, a obtenção da proposta mais vantajosa.
Todavia, se existir apenas uma empresa fornecedora de energia elétrica na região? Seria caso para dispensa de licitação com fulcro no artigo 24, XXII da Lei nº 8.666/93? Penso que a resposta seja negativa. É justamente aqui que reside o cerne do presente estudo: a fundamentação da contratação de empresa fornecedora de energia elétrica para o Poder Público vem sendo feita, indiscriminadamente, com fulcro na dispensa de licitação.
Ocorre que a obtenção da correta fundamentação legal passa intrinsecamente pelo esclarecimento da Administração se o fornecimento de energia pela concessionária é exclusivo ou se, no caso de resposta negativa, se a citada empresa é a única capaz de oferecer energia elétrica suficiente a atender a demanda do Poder Público naquele local. Em ambos os casos, não haveria competitividade, desaguando necessariamente na aplicação do artigo 25, caput da Lei nº 8.666/93. Interessante anotar o disposto na Lei nº 9.074/95, que exclui em grande parte a possibilidade de concessão do serviço de energia elétrica com exclusividade, in verbis:
Art. 15. Respeitados os contratos de fornecimento vigentes, a prorrogação das atuais e as novas concessões serão feitas sem exclusividade de fornecimento de energia elétrica a consumidores com carga igual ou maior que 10.000 kW, atendidos em tensão igual ou superior a 69 kV, que podem optar por contratar seu fornecimento, no todo ou em parte, com produtor independente de energia elétrica.
§ 1º Decorridos três anos da publicação desta Lei, os consumidores referidos neste artigo poderão estender sua opção de compra a qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do sistema interligado. (Redação dada pela Lei nº 9.648, de 1998)
§ 2º Decorridos cinco anos da publicação desta Lei, os consumidores com carga igual ou superior a 3.000 kW, atendidos em tensão igual ou superior a 69 kV, poderão optar pela compra de energia elétrica a qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica do mesmo sistema interligado.
Art. 16. É de livre escolha dos novos consumidores, cuja carga seja igual ou maior que 3.000 kW, atendidos em qualquer tensão, o fornecedor com quem contratará sua compra de energia elétrica.
Por conseguinte, se há mais de uma empresa com capacidade de fornecer o multicitado bem, o procedimento pode/deve [04] correr por dispensa de licitação com fulcro no artigo 24, XXII do Estatuto das Licitações. Contudo, é imprescindível a juntada de pesquisa de preços. Frise-se: a possibilidade de dispensa somente se configurará se houver, igualmente, possibilidade de competição entre dois ou mais interessados. Sem competição, não há dispensa.
Por fim, no que toca à natureza jurídica da energia elétrica, há entendimentos de que ela não poderia ser enquadrada como serviço. A tese se fundamenta na idéia de que a contratação se reveste numa necessidade contínua de obtenção de energia pela Administração, mas não num serviço, que pressupõe, evidentemente, uma prestação de fazer e não de dar. A concessionária não prestaria qualquer serviço, mas, antes, forneceria um bem, qual seja, energia elétrica, comparada a bem móvel para efeitos legais, concluindo-se pela obrigatoriedade de utilização do inciso I do artigo 25 no casos de inexigibilidade de licitação.
Contudo, o Tribunal de Contas da União vem reiteradamente decidindo de forma contrária, manifestando a intelecção de ser o fornecimento de energia elétrica um serviço. Destaco, entre os arestos, o Acórdão 1240/2005 – Plenário, Ministro Relator Walton Alencar Rodrigues, Ata 32/2005 – Plenário, Sessão 24/08/2005, Aprovação 31/08/2005, DOU 02/09/2005 e, mais recentemente, o Acórdão 1980/2008 – Plenário, Ministro Relator Marcos Vinicios Vilaça, Publicação, Ata 36/2008-Plenário, Sessão 10/09/2008, Aprovação 11/09/2008, DOU 12/09/2008, também reconhecendo o fornecimento de energia elétrica como sendo serviço a ser prestado de forma contínua.
Como conseqüência, para os casos de inexigibilidade e tendo em vista que a prestação de serviços não se inclui no inciso I do art. 25, destaca-se que a fundamentação correta, para as contratações fundamentadas no artigo 25, será o seu respectivo caput.
Notas
- PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres. Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
- JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Dialética, 2009.
- Serviço aqui é visto em sua acepção ampla, englobando também as compras.
- O poder/dever aqui está inserido na idéia de que a dispensa de licitação é uma faculdade do Poder Público. Portanto, se a opção não for o procedimento licitatório, há obrigação de escolha pela dispensa (e não por inexigibilidade, que seria inviável, na afirmação em tela, por existir competitividade).