Artigo Destaque dos editores

Sistema processual penal brasileiro atual.

Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli"

Exibindo página 4 de 5
29/10/2010 às 14:01
Leia nesta página:

6 A ATIVIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E O SISTEMA ACUSATÓRIO

A definição do Ministério Público encontra-se na Constituição Federal, no art. 127, que diz: "O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis." [82] Deste modo, o Ministério Público foi criado para contribuir com a celeridade na solução dos conflitos sociais, bem como para resguardar os interesses da sociedade.

Para proteger o Ministério Público e assegurar a liberdade da instituição no exercício de suas funções, a Lei Magna previu princípios e garantias institucionais que foram arrolados nos parágrafos do art. 127. Para os fins propostos neste estudo, são suficientes as análises do princípio institucional da independência funcional e da garantia institucional da autonomia funcional.

O princípio institucional da independência funcional é assim explicado por Lenza:

Independência funcional[grifo do autor]: trata-se de autonomia de convicção, na medida em que os membros do ministério público não se submetem a qualquer poder hierárquico no exercício de seu mister, podendo agir no processo da maneira que melhor entenderem. A hierarquia existente restringi-se às questões de caráter administrativo, materializada pelo chefe da instituição, mas nunca, como dito, de caráter funcional. Tanto é que o art. 85, II, da CF/88, considera crime de responsabilidade qualquer ato do Presidente da República que atentar contra o livre exercício do Ministério Público. [83]

De acordo com a lição de Lenza, o membro do Ministério Público, no desempenho de suas várias funções, sendo uma delas atuar no processo, goza de liberdade para a tomada das decisões, não havendo subordinação a qualquer outro agente público, ainda que seja o "chefe" da instituição que somente é assim considerado do ponto de vista administrativo.

Mais adiante, ao tratar da autonomia funcional, prossegue Lenza:

A autonomia funcional, inerente à instituição como um todo e abrangendo todos os órgãos do Ministério Público, está prevista no art. 127, § 2º da CF/88, no sentido de que, ao cumprir os seus deveres institucionais, o membro do Ministério Público não se submeterá a nenhum outro "poder" (legislativo, executivo, judiciário), órgão, autoridade pública etc. Deve observar apenas a Constituição, as leis e a sua própria consciência. [84]

A esfera de atuação do Ministério Público, em especial na defesa de direitos e interesses transindividuais, encontra-se tão ampliada que Lenza chega a tratá-lo como um quarto poder, ao afirmar que "o membro do Ministério Público não se submeterá a nenhum outro poder".

Na lista de funções institucionais do Ministério Público presente no art. 129 da Constituição Federal [85] está a promoção privativa da ação penal pública que consta de seu inciso primeiro. Sendo assim, o princípio institucional da independência funcional juntamente com a garantia institucional da autonomia funcional devem também ser observados no processo penal. Mais uma vez, a Constituição demonstra consagrar o sistema acusatório, ao prever garantias e princípios que visam a assegurar a liberdade e independência do órgão acusador.

Existem outras disposições constitucionais com vistas a dar autonomia ao órgão responsável pela acusação que também deve ser imparcial. Para isso, a Constituição assegura aos membros do Ministério Público as mesmas garantias dadas aos magistrados, a vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, em seu art. 128, inciso I [86]. Como meio de velar pela imparcialidade também na atuação do membro da instituição, a Constituição lhes impõe algumas vedações, tais como: receber honorários, percentagens e custas processuais para exercer suas funções; exercer função pública, salvo de magistratura; exercer atividade político-partidária e etc. previstas no art. 128, inciso II [87]. Seria inócua a atribuição pela Constituição das funções do processo a partes diversas se permitisse que uma das partes fosse subordinada a outra, pois assim, de fato, o poder continuaria concentrado nas mãos de um único órgão.

Não bastassem todas as disposições de natureza processual presentes no texto da Constituição a sinalizarem a adoção de um sistema de processo acusatório, aquelas relativas às funções institucionais do ministério público, seus princípios e garantias também estão a condenar qualquer interferência do órgão julgador, ou de outras pessoas, ainda que privadas, a exemplo das vedações, na atividade deste órgão que é titular da ação penal pública.

Ressalte-se que o fato de ser o Ministério Público um órgão oficial não retira o caráter acusatório do nosso sistema, visto que foi instituído para este fim especial e atua em benefício e na defesa dos direitos e interesses coletivos.

Não serve de fundamento para admissão e aplicação de disposições legais eivadas de inconstitucionalidade o argumento usado por alguns de que a interferência do órgão julgador com o intuito de evitar a negligência, indolência ou desídias passíveis de serem cometidas por um membro do Ministério Público. Em primeiro lugar, porque o cidadão não pode sofrer mitigações em seus direitos básicos amparados na Lei Maior em conseqüência da falta de estrutura ou de compromisso dos órgãos do Estado ou de seus agentes. Em segundo lugar, porque o Ministério Público possui uma estrutura organizacional e administrativa que possibilita ao próprio órgão exercer controle de suas atividades, sendo perfeitamente possível a obediência aos preceitos constitucionais e a fiscalização da atuação dos membros do órgão pelo mesmo afastando-se as interferências de outros, no caso em baila, do juiz.

Como exemplo de que é possível fiscalizar a atuação dos membros do Ministério Público, assegurando a eficiência e atuação efetiva da instituição no desempenho de suas funções, sem afrontar o sistema processual vigente no ordenamento jurídico pátrio, verificam-se alguns dispositivos da Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Piauí [88], elaborada com base no art. 127, § 2º, in fine, da Constituição Federal, combinado com o art. 2º da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público [89].

O art. 18 da Lei Complementar do Estado do Piauí [90] trata do Conselho Superior do Ministério Público, um dos órgãos de execução da estrutura organizacional da instituição e que tem a incumbência de "fiscalizar e superintender a atuação dos membros do Ministério Público". O Conselho Superior do Ministério público deve também recomendar ao Corregedor Geral do Ministério Público a instauração de procedimentos administrativos disciplinares, segundo o art. 23, inciso XII da Lei Complementar [91], em decorrência de constatação de irregularidades em sua atividade fiscalizadora.

Na organização do Ministério Público do Estado do Piauí, o órgão fiscalizador por excelência é a Corregedoria Geral do Ministério Público que tem sua definição e competências dispostas no art. 25 da Lei Complementar n.º 12 do PI [92]. O caput do art. 25 dispõe ser a Corregedoria Geral do Ministério Público "órgão orientador e fiscalizador das atividades funcionais e da conduta dos membros do ministério público" e, em seus incisos, descreve outras atribuições, tais como "realizar inspeções e correições"; instaurar de ofício ou por provocação, sindicância ou processo disciplinar, aplicando as sanções cabíveis; encaminhar ao procurador geral de justiça os processos administrativos disciplinares que lhe caiba decidir, apresentar relatórios de atividades etc.

Contando a instituição com órgãos com atribuições de fiscalização, processamento, orientação de atividades e aplicação de sanções para os membros negligentes, não há razão para que se permita que o juiz venha a interferir nas atividades que a Constituição incumbe ao Ministério Público, tal como deve ocorrer se não se proceder a uma leitura constitucional dos dispositivos do Código de Processo Penal atinentes à mutatio libelli.


7 CONCLUSÃO

No decorrer da evolução do Estado, desde sua origem, a maneira mais justa pela qual o ente político pudesse desenvolver suas atividades foi o advento do processo. Utilizado para o desempenho da atividade jurisdicional, o processo é instrumento eficiente na solução de conflitos e na pacificação social, permitindo assim não somente a proteção do indivíduo como também a subsistência da própria sociedade. Entre os vários tipos de métodos ou modelos de realização do processo que acompanhou o desenvolvimento do Estado, desde o Estado autoritário até chegar à idéia de Estado Democrático de Direito ou ainda, Estado Social e Democrático de Direito, tiveram maior destaque o sistema inquisitório e o sistema acusatório.

Após detidas análises dos dois sistemas processuais, foi possível observar características opostas: o primeiro, sem partes, sem garantias, típico de governos ditadores e desatentos à noção de dignidade e direitos fundamentais da pessoa humana, vigente em tempos de negação da cidadania, como o período medieval, com domínio de um sistema inquisidor baseado no direito canônico, como ocorreu no governo de Napoleão com o Código Criminal francês de 1808 e no Brasil, à época das ditaduras militares, período atroz da história nacional, mas que deixou heranças tais como o Código de Processo Penal vigente; o segundo, um sistema de garantias, tipicamente democrático, que busca um equilíbrio e igualdade entre os litigantes, permitindo uma ampla defesa e um contraditório que possibilitam uma decisão justa e imparcial.

A Constituição como lei fundamental que resguarda os princípios e valores básicos de uma sociedade deve ser suprema, orientando o entendimento e a aplicação das demais leis. A partir das disposições referentes ao processo presentes na Constituição da República Federativa do Brasil, conclui-se que a Constituição adota um sistema processual acusatório. Apesar de esse modelo ser acusatório, a Lei de Ritos Penais, que remonta a um período de ditadura e autoritarismo, apresenta diversos resquícios do modelo inquisitório. Embora um dos mais conhecidos seja o Inquérito Policial, enquadra-se também nesses resquícios a modificação da acusação, que está prevista no art. 384 e seus parágrafos do Código de Processo Penal. A modificação da acusação admite a interferência do juiz, órgão que deveria ser imparcial, cabendo-lhe tão somente a atividade de julgar, na ação penal, cujo titular exclusivo é, na verdade, segundo a Constituição, o Ministério Público. Isto representa sério problema quando se consideram as características voltadas para o bem estar coletivo das Constituições modernas, problema esse que não foi resolvido com a lei 11.719 de 2008 que, embora tenha alterado a redação do dispositivo disciplinador da modificação da acusação, transferiu a inconstitucionalidade para seu o parágrafo primeiro.

Nesses termos, é preciso coadunar as normas infraconstitucionais com a Constituição. Isso somente será possível se forem expurgadas do ordenamento jurídico pátrio as disposições inconstitucionais presentes no Código de Processo Penal. Enquanto a medida não for tomada, deve haver uma releitura constitucional das normas.

Uma maneira, no âmbito da inconstitucionalidade da mutatio libelli, de torná-la totalmente harmônica com o sistema acusatório é atribuindo-se todas as medidas necessárias à sua realização ao Ministério Público, órgão que, além de ser o constitucionalmente legítimo, tem em suas estruturas institucionais um conjunto de órgãos idôneos para tal mister, a exemplo do Ministério Público do Estado do Piauí, regido pela Lei Complementar nº 12 de 1993, que organiza órgãos como o Conselho Superior do Ministério Público, a Corregedoria Geral do Ministério Público e .a Procuradoria Geral de Justiça que têm atribuição fiscalizadora, orientadora e sancionadora dos membros da instituição que forem negligentes no desempenho de suas funções.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Mais ainda nos dias atuais, em que se ampliam as áreas de atuação do Estado na garantia dos direitos e interesses dos cidadãos, não se pode aceitar que o Estado atue sem controle, sem participação dos administrados, o que somente é possibilitado por um modelo de processo participativo e garantista. Não há, pois, como sustentar a admissibilidade de um sistema inquisitório, qualquer que seja a área de atuação estatal, e, mais ainda, em se tratando do direito processual penal que visa à aplicação de normas que interferem nos bens sociais e direitos individuais fundamentais, os mais importantes da sociedade, ainda que um dos titulares dessas garantias seja alvo de uma acusação penal.


REFERÊNCIAS

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes. Dos sistemas processuais penais: tipos ou formas de processos penais. Jus Navigandi. Teresina, jun. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6948>. Acesso em: 5 set. 2008.

AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria Geral do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito processual constitucional:aspectos contemporâneos. Belo Horizonte: Fórum, 2006.

BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de processo penal. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. Constituição de 1988. República Federativa do Brasil. Vade Mecum acadêmico de direito. 5. ed. São Paulo: Rideel, 2007.

______. Constituição de 1988. República Federativa do Brasil. Vade Mecum acadêmico de direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

______. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 4 nov. 2009.

______. Presidência da República. Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/Decreto-Lei/Del3689.htm>. Acesso em: 23 ago. 2008.

______. Presidência da República. Decreto-lei n.º 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 11 out. 2008.

______. Presidência da República. Lei nº 11.719, de 20 de Junho de 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/_Ato2007-2010/2008/Lei/ L11719.htm>. Acesso em: 10 ago. 2008.

______. Presidência da República. Lei n.º 8.625 de 8 de fevereiro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8625.htm>. Acesso em: 4 jun. 2009.

______. Presidência da República. Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L9099.htm>. Acesso em: 23 ago. 2008.

______. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 453. Vade Mecum acadêmico de direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda et al. Crítica à teoria geral do direito processual penal.Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. 1. 4. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

FERNANDES, Stanley Botti. Da fundamentação racional do jus puniendi. Jus Navigandi. Teresina, out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8070>. Acesso em: 19 nov. 2008.

FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Inovações referentes a procedimentos penais. Jus Navigandi . Teresina, jun. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11429>. Acesso em: 18 set. 2008.

LAGO, Cristiano Álvares Valladares. Sistemas processuais penais. Revista Eletrônica Dr. Romeu Vianna, n. 3, fev. 2006, p.22 e 23. Disponível em: <http://www.viannajr.edu.br/site/menu/publicacoes/revista_direito/artigos/edicao3/art_30005.pdf>. Acesso em: 28 nov. 2008.

LENZA, Pedro. Direitoconstitucional esquematizado.11. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Método, 2007.

MIRABETE, Julio Fabrine. Manual de direito penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

MORAES, Alexandre de. Direitoconstitucional. 5. ed. rev. ampl.atual. São Paulo: Atlas, 1999.

PESSOA, Robertônio Santos. Processualidadeadministrativa. Revista da Justiça Federal no Piauí. v. 1 Teresina, mar. 2007. Disponível em: <http://www.pi.trf1.gov br/Revista/revistajf1_cap7.htm>. Acesso em: 28/11/2009.

PIAUÍ. Assembléia Legislativa. Lei Complementar nº 12, de 18 de dezembro de 1993. Disponível em: <http://ged.al.pi.gov.br/Portal/pages/portal.html#>. Acesso em: 12 nov. 2008.

RANGEL, Paulo. Ogarantismo penal e o aditamento à denúncia. Jus Navigandi. Teresina, nov. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1057>. Acesso em: 20 out. 2009.

SOUZA, Keity Mara Ferreira de. Sistema acusatório e mutatio liblli (releitura do art. 384, caput, do CPP, face ao ordenamento constitucional). Jus Navigandi. Teresina, ago. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/1062>. Acesso em: 08/08/2008.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processopenal. 21. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 1999.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Levy Zend Ferreira da Silva

Advogado atuante nas áreas Trabalhista e sindical, família e sucessões em Teresina/PI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Levy Zend Ferreira. Sistema processual penal brasileiro atual.: Análise constitucional da "emendatio" e "mutatio libelli". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2676, 29 out. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17736. Acesso em: 23 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos