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Trabalho escravo: quem julga?

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18/11/2010 às 13:02
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III- O MAIS ADEQUADO

Há uma diferença na defesa da idéia do que seria mais adequado e do que seria possível defender dogmaticamente. É mais adequado o julgamento na Justiça do Trabalho. Isto porque seus integrantes têm mais experiência sobre o assunto. São os procuradores do trabalho que estão diretamente envolvidos no problema.

Em pesquisa que está sendo realizada pela UFT, está sendo feito um levantamento de todos os processos criminais referidos ao crime do art. 149 que finalizaram de 2003 a 2009 na JF do Tocantins. Na maioria dos processos, encontra-se o relatório do Grupo móvel. Grupo integrante ao Ministério do Trabalho que tem a responsabilidade de fazer as fiscalizações sobre trabalho escravo. E este grupo precisa emitir um relatório. Em vários destes relatórios os procuradores do trabalho fazem parte dos grupos que realizaram a fiscalização no local. Raros são as vezes que há procuradores da República. Portanto, há uma prática de lidar com o assunto diretamente. Coisa que não se percebe na Justiça Federal de forma predominante. Além do mais, o número de condenações que se tem notícia é de 36 em Marabá em 2009 [02]. Um número muito baixo se comparado com 793 autos de infração trabalhista, 28 operações de fiscalização, 68 imóveis inspecionados, 324 trabalhadores libertados, todos em função de Trabalho Escravo, em 2009, somente no Pará. Além de 5999 pessoas que foram libertadas no Brasil no mesmo ano. [03]

As condenações são poucas e os seus motivos são diversos. Vão desde o conceito que os magistrados têm sobre Trabalho Escravo como um traço cultural desde a dificuldade de elaborar provas. Isto já foi levantado inclusive pela relatora da ONU que esteve no Brasil. " ações exemplares correm o risco de serem ofuscadas se ações urgentes não forem tomadas para quebrar o ciclo de impunidade de que gozam proprietários de terra, empresas nacionais e internacionais que se beneficiam do Trabalho Escravo (REPORTER BRASIL, on line). Diante disto, talvez fosse mais adequada a Justiça do Trabalho.

Todavia, os argumentos de Prudente são pouco sustentáveis. Não há que se defender que uma norma constitucional derivada, pois o artigo 114 é resultado de uma emenda constitucional, possa revogar tacitamente uma norma advinda de um poder originário, como é o caso do artigo 109. Portanto, para que houvesse a competência da Justiça do Trabalho é necessária uma emenda constitucional. É possível sustentar talvez através de princípios constitucionais para complementar o artigo 114, como o da dignidade da pessoa humana. Além do mais, a Justiça do trabalho também é uma Justiça Federal e até por bom senso caberia a ela decidir sobre todos os conflitos trabalhistas como assim prevê o artigo 114. Mas para extinguir o debate precisa de uma emenda constitucional.

Ainda outra questão a se pensar no momento da defesa da competência é o que é mais estratégico discutir. O fato é que neste momento este não é o debate no judiciário. O debate é a justiça estadual e a federal. Portanto, talvez não seja importante nem estratégico munir forças para a Justiça do Trabalho, mas para a Federal. Já que ela atende aos acordos internacionais e à Constituição Federal.

Não há necessidade de repetir tudo que já foi dito. Os argumentos expostos na Jornada do STJ e pelo ministro Joaquim Barbosa são muito ricos. Não se pode reduzir o debate a um inciso apenas do artigo 109 da Constituição Federal. Só um ponto seria acrescentado: a questão sobre se o artigo 149 é ou não crime contra a organização do trabalho.

É importante ressaltar que o Código Penal de 1940 trouxe algumas inovações. Uma delas foi a criação de um título específico denominado crimes contra a organização do trabalho. E assim se reporta na sua exposição de motivos:

O projeto consagra um título especial aos "crimes contra a organização do trabalho", classifica entre "os crimes contra o livre gozo e exercício dos direitos individuais" ( isto é, contra a liberdade individual).[...]

A proteção jurídica já não é concedida à liberdade do trabalho, propriamente, mas à organização do trabalho, inspirada não somente na defesa e no ajustamento de interesses individuais em jogo, mas também, e principalmente, no sentido superior do bem comum de todos. (BRASIL, 2010, p. 257, 258)

Assim, muitos poderiam dizer que estaria tudo resolvido. O artigo 149 não foi incluído no título IV então ele não seria crime contra a organização do trabalho, mas contra a liberdade individual. Bitencourt faz uma análise destes crimes.

CRIME

Bem jurídico protegido

PENA

Legislação

Atentado contra liberdade de trabalho

Liberdade de escolher o trabalho e de trabalhar

Detenção 01 mês a 01 ano mais a pena da violência

Previsto no Código de 1890

Atentado contra liberdade de contrato de trabalho

Liberdade de celebrar contrato de trabalho

-Liberdade de trabalho e de comércio (Fragoso)

Detenção 01 mês a 01 ano mais a pena da violência

Inovação do Código de 1940

Atentado contra liberdade de associação

Liberdade de associação e filiação sindical

Detenção 01 mês a 01 ano e multa mais a pena da violência

Inovação do Código de 1940

Paralisia de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem

É a regularidade e moralidade das relações de trabalho

- são os bens jurídicos tingidos pela violência (Fragoso)

Detenção 01 mês a 01 ano mais a pena da violência

Manteve do código de 1890 e inovou com a presença da violência com o de 1940

Frustração de direito assegurado pro lei trabalhista

Proteção aos direitos trabalhistas

Detenção de 01 ano a 02 anos multa, mais a pena da violência

Inovação do Código de 1940

Frustração de lei sobre nacionalização do trabalho

Garantir reserva de mercados para brasileiros

Detenção 01 mês a 01 ano, multa, mais a pena da violência

 

Exercício de atividade com infração de decisão administrativa

Garantia de execução de decisões administrativas

Detenção 03 meses a 02 anos ou multa

Inovação do Código de 1940

Aliciamento para o fim de emigração

Manter a mão-de-obra no território nacional

Detenção 01 a 03 anos e multa

Inovação do Código de 1940

Aliciamento de trabalhadores de um local para outro no território nacional

Evitar o êxodo de trabalhadores

Detenção 01 a 03 anos e multa

Manteve do código de 1890 e inovou com a presença de deslocar de um lugar para outro com o de 1940

Paralisia de trabalho de interesse coletivo

-É a regularidade e moralidade das relações de trabalho relacionadas a obras públicas e de interesse coletivo

- garantir a continuidade dos serviços as necessidades primarias Fragoso)

Detenção 06 meses a 23 anos e multa

 

Invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola. Sabotagem

Proteger liberdade, organização do trabalho e patrimônio

- propriedade e liberdade de trabalho (Fragoso)

Detenção 01 a 03 anos e multa

Inovação do Código de 1940

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Diante disto, Fragoso defende que apenas os delitos: Atentado contra liberdade de trabalho; Atentado contra liberdade de contrato de trabalho; Atentado contra liberdade de associação; Paralisia de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem; Paralisia de trabalho de interesse coletivo; Invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola; Sabotagem; Frustração de direito assegurado por lei trabalhista referem-se a violação de direitos coletivos. Portanto, estes seriam contra a organização do trabalho.

O Código Penal vigente traz, sob o anacrônico título " Dos crimes contra a organização do trabalho", seis preceitos que se relacionam ou pode se relacionar, direta ou indiretamente, com conflitos coletivos de trabalho, com a greve e com a liberdade sindical. São eles os arts. 197 a 203. Os demais artigos desse título (art. 204 a 207), embora também tangenciem questões trabalhistas, não se ligam a conflitos coletivos do trabalho ( possuindo raízes diversas) [...] (FRAGOSO, 2009, p. 373)

Mas aplicar este raciocínio ao crime do artigo 149 é muito simplista. A análise não deve ser se ele está neste rol apenas, mas analisar sistematicamente todos os incisos que estabelecem a competência da Justiça Federal na área criminal. A defesa da competência da Justiça Federal não se dá pelo fato de está sendo violada a dignidade da pessoa humana, pois qualquer órgão do Poder Judiciário brasileiro tem por dever proteger os direitos constitucionais, mas por causa do artigo 109 e porque somos signatários de legislação internacional como as convenções da OIT e o Estatuto de Roma. E como é crime previsto em legislação internacional que o Brasil é signatário é interesse da União. Portanto, diante do debate no Supremo a competência deve ser a Justiça Federal porque é interesse da União, porque é um crime contra organização do trabalho.


REFERÊNCIAS

ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO. Brasília: OIT, 2003.

BELLESINI, Iuri Sverzut. Redução a condição análoga a de Escravo. Competência: Breve estudo. http://jus.com.br/artigos/14758. Acesso em 15/05/2010

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte especial. São Paulo: Saraiva, 2003.

BRASIL. Código Penal, código de Processo Penal, Constituição Federal, Legislação penal e processual penal. Organizado pro Luiz Flavio Gomes. São Paulo: Revista dos tribunais, 2010. (RT minicódigos).

COSTA, Flávio Dino de Castros e . O combate ao trabalho forçado no Brasil.

http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/info/download/combate_ao_trabalho_forcado_no_brasil.pdf

FRAGOSO, Cristiano. Repressão penal da greve: uma experiência antidemocrática. São Paulo: Ibccrim, 2009.

GARCIA, Flúvio Cardinelle Oliveira . Critérios para a fixação da competência penal sob o prisma constitucionalhttp://jus.com.br/artigos/4996. Acesso em 15/04/2010.

KARAM, Maria Lucia. Competência no Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2002.

OLIVEIRA, Neide M. C. Cardoso de. A atuação do MPF em relação ao crime de trabalho escravo. http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/trabalho_forcado/brasil/documentos/mpft.pdf. Acesso em 15/05/2010.

PRUDENTE, Wilson. Crime de Escravidão.

CASTILHO, Ela Wiecko. As ações do ministério público Federal e os limites do Poder Judiciário na Erradicação do trabalho escravo. IN: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil: contribuições críticas para sua analise e denúncia. Organizado por Gelba Cavalcante de Cerqueira et ali. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008.

SOUZA, Victor Roberto Côrrea de. Competência criminal na Justiça Federal. http://jus.com.br/artigos/5232

Sentenças

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 398.041-6/PA. Ministério Público Federal, recorrente, em face de Silvio Caetano de Almeida. Rel. Joaquim Barbosa. Julgamento em 14.12.2004.

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 90042-0/SP. Ministério Público Federal, recorrente, em face de Tribunal Federal de Recursos. Rel. Moreira Alves. Julgamento em 30.08.1979.


Notas

  1. Informação obtida no I Encontro nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em Brasília de 22 a 24 de Maio de 2010.
  2. Informação obtida no I Encontro nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, em Brasília de 22 a 24 de Maio de 2010.
  3. Dados do Relatório do Grupo de fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo em 2009. Dados disponíveis no site WWW.mte.gov.br
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Sobre a autora
Shirley Silveira Andrade

advogada em Aracaju (SE), pós-graduanda em Direito Processual pela UFSC, membro da Comissão de Direitos Humanos na OAB/SE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo: quem julga?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17853. Acesso em: 22 nov. 2024.

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