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Trabalho escravo: quem julga?

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18/11/2010 às 13:02
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INTRODUÇÃO

Este trabalho surgiu do sentimento de que era necessário organizar as informações sobre a discussão da competência para o julgamento nos casos do delito do artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CP): reduzir alguém à condição análoga a de escravo. Portanto, um dos objetivos deste artigo é introduzir o tema fazendo um resgate dos seus debates para contextualizar o problema para aqueles que iniciam este estudo.

Em investigação que vem sendo realizada pelo grupo de pesquisa de Direito na Universidade Federal do Tocantins Trabalho Escravo Contemporâneo, coordenado pela autora que subscreve este artigo, observou-se que um fundamento recorrente das decisões judiciais para absolver os réus é a referência a decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Por isto, a importância das reflexões deste artigo.

Diante disto, o objeto de estudo deste artigo é a competência para o julgamento do crime de redução à condição análoga a de escravo. A idéia central defendida é que deve ser a Justiça Federal. A pesquisa é bibliográfica e documental. Foram analisadas duas decisões na íntegra do STF sobre o assunto. A problemática subsiste há décadas. Houve momentos em que o STF decidiu pela Justiça Estadual, houve momentos pela Federal. Sua última decisão foi pela Federal. Mas ainda há um recurso em tramitação que debate a questão.

Além do que já foi posto, a importância deste debate ainda se dá pelas conseqüências que pode haver com a modificação de competência. Hoje, os processos estão sendo julgados na Justiça Federal, mas uma vez que esta competência mude, vai haver a prescrição em massa de muitas ações. A competência que se pretende discutir é constitucional e uma vez que a Justiça Federal (JF) seja decretada incompetente, todos os atos serão nulos. Isto implica dizer que o decreto que recebeu a denúncia também (este ato processual é responsável em interromper o prazo prescricional). Uma vez anulado, o prazo continua a correr da data do fato. Portanto, a discussão deste tema tem implicações práticas muito importantes.

Este artigo inicia com alguns conceitos fundamentais, depois expõe as posturas que existem, o debate no STF e a postura da autora do artigo.


I- COMPETÊNCIA E SEUS TIPOS

Para se adentrar ao debate é necessário o esclarecimento de alguns conceitos que serão utilizados. A jurisdição é, pela via etimológica, a ação de dizer o direito. É a função estatal de aplicar o direito objetivo a um caso concreto, protegendo um determinado direito subjetivo, através do devido processo legal, visando ao acertamento do caso penal (RANGEL, 2009, p.313).

Portanto, vários órgãos têm jurisdição. Isto ajudaria pouco no efetivo julgamento das demandas. Daí a necessidade de delimitar em que área estes órgãos podem atuar. Necessário delimitar a competência para que a jurisdição possa ser exercida. Competência é o espaço, legislativamente delimitado, dentro do qual o órgão estatal, investido do poder de julgar, exerce sua jurisdição. (RANGEL, 2009, p. 319). É a medida da jurisdição. (TOURINHO FILHO, 2008, P. 76). É esta medida que é conflituosa no objeto estudado. Qual dos órgãos teria a competência para julgar as condutas enquadradas no artigo 149 do CP?

O que deve guiar a resposta a esta pergunta é o princípio do Juiz natural previsto no artigo 5º, LIII da Constituição Federal (CF). É a garantia constitucional de ser julgado por uma autoridade competente. Segundo Maria Lucia Karam, ele se desdobra em três aspectos: só são órgãos jurisdicionais aqueles instituídos pela Constituição Federal; estes órgãos devem ser pré-constituídos à data do fato em julgamento; e ainda esta jurisdição só poderá ser exercida pelo juiz pré-constituído pela distribuição de competências constitucionalmente estabelecidas. (KARAM, 2002, p. 49)

Discutir este princípio é de fundamental importância para este trabalho. Pois o debate é exatamente quem é este juiz pré-constituído, quem é este juiz constitucionalmente investido da atribuição de julgar o crime previsto no artigo 149 do Código Penal. Na verdade, a discussão é quem é o juiz competente constitucionalmente. E este ponto traz conseqüências importantes em relação ao debate. Quando se está falando em competência constitucional não se pode aplicar a previsão do Código de Processo Penal (CPP) quanto ao aproveitamento de atos realizados pelo juiz incompetente. O CPP estabelece que somente os atos decisórios serão anulados. Todavia, este texto não tem sido seguido por diversos autores.

Grinover defende que neste caso haveria inexistência de ato, pois os atos que desrespeitam a competência constitucional seriam inexistentes. Todavia, é coerente a interpretação de Karam que revela que na verdade eles são nulos. Pois considerá-los inexistentes seria dizer que nem o despacho do juiz reconhecendo incompetência teria validade. No entanto, apesar da divergência de nomenclatura, ambas as autoras defendem que também os atos instrutórios (coleta de provas) não poderão ser convalidados. E Maria Lucia Karam defende:

Quando se está diante de inadequada intervenção do órgão jurisdicional constitucionalmente incompetente, a nulidade do processo se dará por duas ordens diferentes de razões. Uma referente ao simples fato de se estar diante de hipótese de incompetência absoluta, em que a declaração de nulidade de processo implica apenas na inidoneidade de atos decisórios. E a outra, que, atingindo a garantia do juiz natural, atinge o conteúdo da fórmula fundamental do devido processo legal, implicando em maior abrangência da declaração de nulidade, de forma a provocar a inidoneidade também dos atos instrutórios, não em razão da simples incompetência[…], falta a própria legitimidade. [..] esta é um vício maior do que a incompetência. (2002, p.55)

Este debate indefinido sobre a competência traz muita insegurança haja vista que se discute competência constitucional. Que tem como papel fundamental realizar um juízo garantidor do devido processo legal. E uma vez que a indefinição se eternize, pode causar ainda mais impunidade. O número de condenações do trabalho escravo é muito pequeno. E a indefinição sobre a competência pode fazer com que este número não aumente muito. A mudança de competência da justiça federal para a estadual pode acarretar a prescrição dos processos já que todos os atos serão anulados, ou pelo menos a maioria deles. Assim, eles terão que ser refeitos, tomando ainda mais tempo. Por isto, é muito importante que haja uma definição da competência.


II- DIFERENTES POSTURAS A RESPEITO

2.1- A discussão

O debate se estabelece, principalmente, porque o artigo 109 da Constituição Federal prevê quais os casos da competência da Justiça Federal. Dentre elas a situação dos casos criminais: os crimes políticos e crimes praticados em detrimento de bens de interesse da união, das suas autarquias e empresas públicas; tratados ou convenções internacionais quando há relações internacionais, nos crimes contra a organização do trabalho e ainda de forma genérica nas causas relativas aos direitos humanos. Estes incisos são muito utilizados para justificar ou não a competência da JF nos casos do artigo 149.

Podem-se reunir 03 posicionamentos: Uma corrente defende que é competência da Justiça Estadual, uma segunda que é da Justiça Federal e uma terceira que é da Justiça do Trabalho. Analise-se o argumento de cada uma.

2.2- Competência da Justiça Estadual

Quanto a este grupo, o raciocínio utilizado é que o artigo 149 não está dentro dos crimes contra a organização do trabalho, pois estes estão previstos no Código Penal, dos artigos 197 a 207, título IV desta lei. Assim, ele é crime contra liberdade individual, não contra a organização do trabalho. Rangel complementa que neste caso somente se for em relação ao direito coletivo dos trabalhadores. O crime deve atingir a toda uma categoria profissional, senão será competência da justiça estadual. (RANGEL, 2009, P. 320).

O assunto tratado é polêmico não somente no campo doutrinário, mas há pelo menos três décadas vem sendo discutido no Supremo Tribunal Federal (STF), como nos demais órgãos colegiados. Mas como o STF tem sido veementemente citado nas decisões, e o poder de influência das decisões deste órgão é muito grande sob os demais, escolhe-se em demonstrar decisões que foram fundamentais para estabelecer a competência em debate.

O Recurso Extraordinário (RE) 90042-0/SP é de fundamental importância para ser comentado, haja vista que ele guiou por décadas a direção da competência da Justiça estadual nos casos dos crimes que violassem direitos individuais do trabalho. Foi julgado em 30/07/1979 no STF. Portanto, por um corpo de Ministros bem diferentes do atual. Dos 11 ministros que estão no STF, 08 preencheram vacâncias no governo Lula. E ainda é interessante observar que, no momento da decisão, estavam sob a Constituição de 1967.

A origem do recurso foi pelo fato de um juiz de Altinópolis, São Paulo, ter-se declarado incompetente no julgamento de um caso onde um menor de 18 anos estava recebendo abaixo de um salário mínimo, mas assinando contracheque de um salário mínimo. O fato estaria enquadrado no artigo 203 do Código Penal Brasileiro (CPB). Pela previsão do artigo 125, VII da Constituição da época, a Justiça Federal era competente para julgar os crimes contra a organização do trabalho e da greve. Por este delito encontrar-se no CPB sob o título dos crimes contra a organização do trabalho, o magistrado entendeu que não seria sua competência. Enviou os autos para a Justiça federal. Lá o Procurador Regional da República de São Paulo manifestou-se pela competência estadual sob o argumento de que não caberia a federal lesões a direitos individuais como era o caso. No Tribunal Regional Federal, o ministro José Neri da Silveira foi o único que votou pela Competência da Justiça Federal. No Supremo Tribunal Federal (STF) estavam na seção os ministros: Antonio Neder, presidente, Moreira Alves, relator, Djaci Falcão, Thompson Flores, Leitão de Abreu, Cordeiro Guerra, Rafael Mayer, todos votando pela competência da Justiça estadual e Xavier de Albuquerque pela Justiça Federal. (BRASIL, 1979)

O relator, Ministro Moreira Alves, teve um posicionamento seguido por vários ministros. Este se coloca basicamente sobre o que é os crimes contra a organização do trabalho e a necessidade da Justiça Federal. Revela que nem todos os delitos previstos no título IV do Código Penal (CP) de 1940 serão julgados pela Justiça Federal. Apenas aqueles que atingirem a organização geral do trabalho ou dos direitos dos trabalhadores considerados coletivamente. O que fundamenta a competência da Justiça Federal nestes casos é um interesse de ordem geral.

Em síntese, tenho para mim como certo que o artigo 125, VI, da Constituição Federal atribui competência à Justiça Federal apenas para processar e julgar ações penais relativas a crimes que ofendem o sistema de órgãos e instituições que preservam, coletivamente, os direitos e deveres dos trabalhadores (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,1979, P. 656)

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Este voto foi contrariado apenas pelo ministro Xavier Albuquerque que defendeu a competência da Justiça Federal. Assim, compreende pela previsão do título IV que inclusive foi uma inovação do código anterior. Se há um rol no código penal não há que se limitar a interpretação. Todos ali seriam competência da Justiça Federal.

Não vejo como se possa admitir a expressão "crimes contra a organização do trabalho", lhe seja atrelado significado diferente daquela que ainda lhe atribui o direito penal brasileiro constituído. [..] o Código penal […] inclui desenganadamente na categoria de crimes contra a organização do trabalho todos os previstos nos artigos 197 a 207. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL,1979, p.659-661)

2.2- Justiça Federal

Nesta corrente, tenta-se combater que os crimes contra a organização do trabalho não estão enquadrados somente no título que possui este nome, mas nas infrações que atingem os trabalhadores.

Em 2002, foi realizada no Superior Tribunal de Justiça (STJ) a I jornada de debates sobre o trabalho escravo dos dias 24 e 25 de setembro reunindo várias instituições para discutir o problema. O que fica muito marcado é o debate sobre a competência para julgar o delito de redução à condição análoga a de escravo previsto no artigo 149 do Código Penal. Lá estavam vários procuradores da república e do trabalho, polícia federal, juízes, auditores fiscais e outros profissionais do direito. A defesa era a federalização dos crimes. A federalização seria reconhecer a justiça federal como competente para processamento e julgamento dos crimes contra os direitos humanos. Serão expostos os debates que foram registrados em forma de anais conforme colocado nas referências deste artigo.

Os debates ocorriam principalmente pela dúvida na questão se o trabalho escravo seria ou não crime contra a organização do Trabalho. O art. 109 da Constituição Federal prevê que são competência dos juízes da Justiça Federal os crimes contra organização do trabalho e, nos casos determinados por lei, contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira. O crime de redução à condição análoga de escravo estaria dentro dos crimes contra a liberdade individual, portanto, não estaria na competência da justiça federal, dizem os que defendem a justiça estadual.

A Procuradora Regional da República na época, Débora Duprat combate este argumento defendendo que esta interpretação é um equívoco. Ela levanta que a competência não se define pela qualificação jurídica, mas pelo fato apresentado na denúncia. E certamente quando há um delito desta monta repercute na organização do trabalho. É tanto que é comum junto com o artigo 149, vem necessariamente o artigo 203 ou 207 do código penal de tão entrelaçados que estão. (estes artigos estão dentro do título crimes contra a organização do trabalho). Então um ponto estaria resolvido no sentido de como há concurso material e a competência seria atraída para a justiça federal. Mas mesmo em situação onde supostamente não haveria este concurso é possível interpretação semelhante. Para haver um combate ao desrespeito do trabalho é necessário haver uma articulação dos princípios. Necessária a competência da justiça federal para combater a lesão dos princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho no país. (ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO, 2003, p. 199 a 202).

Outro ponto colocado seria a dificuldade das relações internacionais com a justiça estadual. O art. 149 é crime onde o Brasil é signatário de convenção internacional, pelo menos, das convenções 59 e 23 da OIT entre outras. O Brasil é signatário de cortes internacionais. Se o Brasil não tomar medidas poderá ter que responder perante estas cortes. (ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO, 2003, p. 215) Seria uma incongruência, crime julgado pela justiça estadual e que necessita do governo federal para ser combatido. Isto dificultaria o cumprimento de determinações à União, pois dependeria da justiça estadual. Como o Brasil é uma federação com entes independentes, a União dependeria muito da colaboração estadual.

Ainda a Constituição Federal prevê no artigo 109, IV a competência da Justiça Federal nos casos de bens e interesses da União. Ora um bem aonde a União se compromete internacionalmente a combater é interesse da União. Raquel Elias Ferreira da Dodge defende como a maioria dos debatedores a competência da Justiça Federal para o julgamento do delito. Um ponto importante levantado é que o trabalho escravo não se limita ao desrespeito às relações de trabalho é uma questão mais ampla que isto. Ele atinge a dignidade do ser humano, retira a liberdade e diretos fundamentais. Portanto, é um tema de interesse federal, pelos compromissos internacionais que o Brasil firmou e em decorrência do compromisso interno com a economia e a sociedade brasileira. Ela lembra que o Brasil já sofreu em 1999 pela corte interamericana de direitos humanos recomendações para o combate. No caso, José Pereira, o Brasil foi chamado a se explicar perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Isto mostra como é concreto que a União seja responsabilizada por este delito. Assim defende:

[...] Deve ser realmente competência Federal julgar todos os crimes previstos em normas internacionais para que não haja discrepância entre decisões de deferentes sistemas estaduais de justiça e para que a defesa do modelo de ordem social e econômica amalgando na união não fique À sorte de iniciativas locais (ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO, 2003, p.128)

Outro argumento é ainda pelo fato de que a Justiça Federal estaria mais distanciada das questões políticas locais. Defende Paulo Sérgio Domingues, presidente da Associação dos Juízes Federais.

Com o RE 398041/PA (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2000-2085) o STF teve uma postura bem diferente do que era seguido até então. Apesar das divergências, em 2006, prevalece o entendimento de que a competência seria da Justiça Federal. E ainda há um debate específico sobre o artigo 149. Este recurso se originou de acusação instaurada em 1992 perante juízo federal de Marabá. Em 1998, houve a condenação a 04 anos pelo crime do artigo 149, mas houve apelação para o TRF da 1ª região. O juízo colegiado declarou incompetência do juízo monocrático federal e anulou todo o processo a partir da decisão que recebeu a denúncia. O procurador interpôs o recurso extraordinário justificando que se tratava de crime contra a organização do trabalho e de direitos coletivos. O relator foi o ministro Joaquim Barbosa. Houve pedido de vista do ministro Gilmar Mendes, presidente, que votou com o relator, mas com um fundamento bem diferente que será analisado melhor mais a frente. O ministro Cezar Pelluso, Carlos Velloso e Marco Aurélio votaram pela competência da justiça estadual (JE). Não participaram da votação Carmem Lúcia, Ellen Gracie, e Ricardo Lewandoviski. Sepúlveda Pertence, Eros Grau, Carlos Britto votaram com o relator.

O principal argumento de Joaquim Barbosa é que a CF defende o respeito à dignidade da pessoa humana e uma sociedade pautada nos valores da pessoa humana. Portanto, a expressão organização do trabalho "deve englobar o homem, compreendido na sua mais ampla acepção, abarcando aspectos atinentes à sua liberdade, autodeterminação e dignidade". Desta forma, transcende a idéia de que esta expressão se limita as instituições de proteção coletiva dos direitos e deveres dos trabalhadores. O crime do artigo 149 desrespeita diretamente valores constitucionais. O interessante notar é que ele faz uma alerta sob a decisão de Moreira Alves, colocando que há um equívoco na análise das pessoas que utilizam seu parecer.

Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgão e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra organização do trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça Federal. ( SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2000 )

O Ministro Joaquim Barbosa enfoca que no caso analisado em 1979 não poderia ser colocado como crime contra a organização do trabalho porque se resumia a anotação na CTPS de um único trabalhador. Situação diferente do caso em análise que trata de inúmeros trabalhadores a trabalhar sob escolta e alguns acorrentados.

Segue dizendo que a CF prevê no artigo 109, VI a competência da JF para os crimes contra a organização do trabalho sem delimitar que delitos são estes. Apesar da existência do título IV do CP, este não esgota aqueles. Se o objetivo é resguardar a dignidade, isto faz bem o artigo 149.

[…] entendo que no contexto das relações de trabalho- contexto esse que, como já disse, sofre o influxo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana- a prática do crime previsto no art. 149 do Código Penal se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, atraindo, portanto, a competência da Justiça Federal, na forma do art. 109, VI . ( SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2024)

O ministro Carlos Velloso continua com o argumento do RE citado no item anterior quando levanta que o legislador ordinário fez uma opção em capitular quais os delitos contra a organização do trabalho no título IV do CP. O artigo 149 não está entre eles. Além do mais, a competência da JF é dos crimes que atentem contra o sistema e os institutos destinados a preservar coletivamente os direitos e deveres dos trabalhadores. E ainda levanta a dificuldade que haveria no julgamento na JF. Como ela não está no interior, muitas cartas precatórias seriam utilizadas. Além disto, poucos iriam à capital demandar. Assim, a escolha da JF poderia levar à impunidade.

Gilmar Mendes inicia a justificativa do seu voto criticando a postura de que a necessidade da Justiça Federal seria para se dar uma resposta ao problema do trabalho escravo. Mas ele lembra que esta não é questão. A justiça estadual também esta apta a realizar os julgamentos. Não é isto que deve ser analisado, mas qual a divisão de tarefas, de função de cada uma das justiças.

[…] está-se a partir do pressuposto, a meu ver equivocado, de que a polícia e a justiça estaduais, por razões de ordem histórica e cultural, econômica, social ou política, não se mostram dispostas ou não estão aptas a investigar, processar e julgar fatos criminosos cometidos em detrimento dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Apenas as autoridades federais- polícia, membros do ministério público e juízes- reputadas, dessa forma, mais competentes e confiáveis, poderiam ficar a cargo de tão relevante missão, a de coibir as violações de direitos humanos nas relações de trabalho.

[...]

Em suma, a idéia – a meu sentir, preconceituosa- é de que a Justiça estadual não funciona. ( SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2035)

Segundo o ministro, ambas as justiças estão aptas. A decisão do tribunal não vai proporcionar um conjunto de medidas de combate ao trabalho escravo porque estas medidas já existem. O núcleo central do debate é a respeito do bem jurídico envolvido. Toda norma penal protege um bem jurídico, nos crimes contra a organização do trabalho, a proteção é o valor trabalho. A questão é identificar qual é o bem jurídico afetado para se determinar a competência. E cita novamente o parecer do Moreira Alves. Concluindo que não é necessário modificar o entendimento que estava sendo colocado até então.

A questão está portanto, em identificar qual o bem jurídico afetado; ou seja, como o Ministro Moreira Alves deixou delimitado, se na hipótese existe ofensa ao interesse de ordem geral na manutenção dos princípios básicos sobre os quais se estrutura o trabalho em todo o país. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2037)

Segundo o ministro, nem toda a situação de trabalho escravo enseja a competência da Justiça Federal. Somente quando esta situação ofender a organização do trabalho. Isto quer dizer quando ofender os princípios do trabalho. Assim, com estes argumentos foi que seu voto foi pela justiça federal por entender que neste caso houve uma violação ao bem jurídico organização do trabalho.

Não se deve olvidar, porém, as hipóteses, muito comuns, nas quais, configurado o crime de redução à condição análoga a de escravo, não se pode sequer vislumbrar qualquer tipo de ofensa aos princípios que regem a organização do trabalho. Por exemplo, nos casos em que apenas um indivíduo, trabalhador, tem sua liberdade de locomoção restringida por qualquer meio em razão de dívida contraída com o empregador. Ou no caso de retenção momentânea de um único trabalhador no local de trabalho por cerceamento de meios de transporte. Há aqui ofensa à liberdade individual do trabalho, mas não à organização do trabalho como um todo. Não há transgressão de normas e instituições voltadas à tutela coletiva dos trabalhadores, mas apenas a direitos e interesses individualmente considerados. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2006, p. 2066)

Este julgamento foi encerrado em 2006, mas seu acórdão somente foi publicado em 2008. Parecia que a questão da competência estava definida pela Justiça Federal. Todavia, há um recurso mais recente: RE 459510/MT. O Ministro Cezar Pelluzo já se pronunciou pela Justiça Estadual. O mais recente Ministro Toffoli pela Federal. Desde fevereiro de 2010 foi pedido vistas pelo Ministro Joaquim Barbosa. Ou seja, a questão ainda não está resolvida no STF. [01]

2.3- Justiça do Trabalho

Prudente (PRUDENTE, 2002, p.2-100) defende que a justiça do trabalho precisa deixar de ser justiça de cobrar crédito. Desde a Constituição de 1988 que ela tem uma função muita mais ampla do que esta. A emenda constitucional de 2004 estabeleceu no art. 114 que a competência da Justiça do Trabalho é para julgar todos as ações oriunda da relação de trabalho, inclusive as penais.

Quando analisa a previsão do art. 109, Prudente alega que com a nova redação do artigo 114 ela passa a ser inconstitucional. A nova reação deste artigo racionalizou e colocou em posição de igualdade a justiça do trabalho, continua. Diante da incompatibilidade das normas, utiliza-se a lei de introdução ao código civil que assegura que lei posterior revoga anterior.

Na jornada no STJ, este debate também veio à tona com posicionamentos contra e a favor. Surge no debate a idéia proposta pelo juiz trabalhista Grijalbo Coutinho da justiça do trabalho ser competente. Ele defendeu uma reforma do Poder judiciário para manter e incluir todos os litígios decorrentes da relação de trabalho em geral na Justiça do Trabalho. Os magistrados estão habilitados para julgar já que todos são de carreira e ainda haveria mais rapidez na propositura da ação pelos procuradores do trabalho, pois estão mais afinados com as discussões no ambiente de trabalho. Assim haveria uma maior amplitude de sua competência:

[..]julgar indenização previdenciária decorrente de acidente de trabalho, execução de tributos federais incidentes sobre os créditos decorrentes de suas decisões, das sentenças proferidas, as ações que versem sobre as contribuições sociais oriundas dos salários e a residual previdenciária, além das infrações penais praticadas contra a organização do trabalho e contra a administração da justiça quando afeta sua jurisdição. (ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO, 2003, p. 210)

Além do mais, a divergência de competência pode levar a decisões contrárias, como a justiça do trabalho não reconhecer relação de trabalho e a federal reconhecer crime. Mas isto não foi aceito de bom grado por parte das pessoas na jornada. Duprat levanta que passar para a Justiça do Trabalho reduz a importância do delito:

Quando nós transferimos parte dessa competência para a justiça do trabalho, nós estaríamos diminuindo, na verdade, o significado do delito porque não está circunscrito à mera violação à organização do trabalho, mesmo na nova regra de competência proposta por meio de emenda constitucional (ANAIS I JORNADA DE DEBATES SOBRE TRABALHO ESCRAVO, 2003, p. 230).

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Sobre a autora
Shirley Silveira Andrade

advogada em Aracaju (SE), pós-graduanda em Direito Processual pela UFSC, membro da Comissão de Direitos Humanos na OAB/SE

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Shirley Silveira. Trabalho escravo: quem julga?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2696, 18 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17853. Acesso em: 22 dez. 2024.

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