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O polígrafo e o Direito do Trabalho

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26/11/2010 às 09:10
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4.O polígrafo e o assédio moral vertical descendente

É muito comum a imposição da realização do teste do polígrafo por empresas de aviação americana, como a American Airlines. Argumentam que, após o atentado terrorista de 11 de setembro nos EUA, suas aeronaves se tornaram potenciais alvos de atentado por parte do terrorismo internacional. Em razão disso, a submissão dos empregados ao exame por meio de polígrafo é uma medida preventiva de segurança em favor do bem estar da comunidade, não ensejando, desse modo, a devida compensação por dano moral.

A esse respeito, colacionamos o seguinte julgado acerca da submissão de empregados a detectores de mentiras (polígrafo) por empresa aérea americana:

DANO MORAL. TESTE DO POLÍGRAFO (DETECTOR DE MENTIRAS). DIREITO À HONRA E À INTIMIDADE DO TRABALHADOR. O trabalhador, ao ingressar em uma empresa na qualidade de empregado, não se despe dos direitos e garantias fundamentais assegurados pela Constituição da República a todos os cidadãos, dentre os quais figura com destaque a inviolabilidade de sua intimidade, de sua honra e de sua imagem (artigo 5, inciso X, do Texto Fundamental). Se é verdade que o empregador detém poderes de direção, fiscalização e disciplinamento em relação àqueles que lhe prestam serviços, não menos certo que o exercício desse direito potestativo encontra limite em tais direitos e garantias constitucionais. Quando o empregador obriga o seu empregado a se submeter ao teste do polígrafo, equipamento de eficácia duvidosa e não adotado no ordenamento jurídico pátrio, extrapola os limites de atuação do seu poder diretivo e atinge a dignidade desse trabalhador, expondo a honra e intimidade deste e submetendo-o a um constrangimento injustificado, apto a ensejar a reparação pelos danos morais causados por essa conduta. (TRT 3 R, 5ª Turma, Poc. RO-00317-2003-092-03-00-9. Rel.: Juiz José Roberto Freire Pimenta. DJ 5/6/2004).

A utilização do equipamento polígrafo pode ser considerada uma forma de abuso do direito praticado pelo empregador durante o exercício do seu poder fiscalizatório, pois como bem ensina Meireles (2005) o abuso de direito é aquele que "excede manifestamente os limites impostos na lei, pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé e pelos bons costumes, decorrente de ato comissivo ou omissivo".

[...] toda vez que um direito ou um poder qualquer, mesmo discricionário, é concedido a uma autoridade ou a uma pessoa de direito privado, esse direito ou esse poder será censurado se for exigido de uma forma desarrazoada. Esse uso inadmissível do direito será qualificado tecnicamente de formas variadas, como abuso do direito, como excesso ou desvio de poderes, como iniqüidade ou má fé, como aplicação ridícula ou inadequada de disposições legais, como contrário aos princípios gerais do direito comum a todos os povos civilizados. Pouco importam as categorias jurídicas invocadas. O que é essencial é que, num Estado de Direito, quando um poder legítimo ou um direito qualquer é submetido ao controle judiciário, ele poderá ser censurado se for exercido de forma desarrazoada, portanto, inaceitável.( MEIRELES, 2005, p22)

Em razão disso, a realização do exame polígrafo, seja na fase do pré-contrato de trabalho ou na fase propriamente dita de execução do contrato de trabalho, caracterizará a prática do assédio moral vertical descendente, pois o seu uso pelo empregador fere os direitos fundamentais de personalidade do empregado e a sua dignidade.

O assédio moral praticado por um superior hierárquico em face de um subordinado é conhecido como vertical descendente e compreende uma forma de exposição do trabalhador a situações humilhantes, vexatórias e constrangedoras. Com isso, o trabalhador se sente inferiorizado e menosprezado em relação aos demais colegas, tendo, por conseqüência, ofendida a sua honra, a sua dignidade e a sua convivência no seio social.

Não obstante (e como mostram os estudos de Psicopatologia do Trabalho) no espaço das relações laborais são cada vez mais freqüentes os casos de reiteradas e profundas agressões psicológicas contra o empregado, não raras vezes levando-o ao estresse, ao desequilíbrio mental e até mesmo ao suicídio, além de causar-lhe outros males psicossomáticos. A pressão psicológica, o acosso psíquico, a violência moral, a humilhação, o burn out, o vilipêndio, o mobbing, a cobrança exagerada de produção e de resultados, a discriminação, a crítica desmedida e várias outras formas de maltrato psicológico são, nos dias de hoje, formas de violência no trabalho que exigem uma resposta do Direito, um remédio jurídico de proteção às vítimas. (SIMM, 2007, p. 11).

O atual mundo competitivo e o aumento considerável do trabalho consagraram a concorrência ilegal. O objetivo da atividade econômica é a intensa produtividade, com redução de custo a qualquer preço. Com as mudanças tecnológicas e de reestruturação produtiva, o ambiente de trabalho mostrou-se mais propício para práticas abusivas do poder de comando do empregador.

Com a expansão dos mercados, com o aumento da competitividade entre as empresas e com a busca incessante pelo lucro, o poder empregatício, conferido ao empregador passou a ser exercido de forma dissimulada e desproporcional. Tudo em decorrência das novas formas de organização e gestão estabelecidas pela empresa. (GOSDAL, 2009, p. 89).

A autora ainda assevera que

[...] em algumas situações, essas mudanças têm levado a excessos que transbordam o exercício regular do poder do empregador de gerir a atividade empresarial, até mesmo favorecendo a configuração de um ambiente propício a situações de assédio. (2009, p. 89)

Todos os fatores acima elencados criaram um ambiente laboral propenso à prática injusta do assédio moral. Faz-se, portanto necessário apontar soluções a fim de que seja erradicada essa prática danosa no âmbito das relações trabalhistas para que seja instaurado um ambiente tranqüilo, sadio, harmonioso e garantidor de valores humanos. E uma dessas soluções é afastar definitivamente a realização do exame polígrafo, pois, no ambiente de trabalho, todo constrangimento e situação vexatória por que passa o trabalhador trazem a ele conseqüências muitas vezes irreversíveis, pois além de afetar sua saúde física, afeta também sua autoestima e o seu comportamento no seio da sociedade.

[...] a empresa contemporânea deverá estar preparada para não praticar ou para coibir a prática do terrorismo psicológico, vendo o trabalhador não apenas como um mero prestador de serviços ou um dos fatores de produção, mas, além disso e acima de tudo, um ser humano dotado de direitos e garantias inerentes a essa condição, como forma de assegurar-se a sua inclusa no conceito de cidadania. (SIMM 2008, p. 19)

O Direito do Trabalho deve buscar soluções para garantir os direitos trabalhistas e proteger os trabalhadores de abusos decorrentes das novas formas de gestão, que, por vezes, apresentam características egoístas e enganosas sob o ponto de vista social, pois como bem assevera Muchail (1995) "[...] vivemos o antagonismo do que é digno do humano e o que é útil à sociedade. Entendo que vivemos uma crise de humanismo, da centralização do humano, fruto da própria banalização do homem."

Assim se manifesta o artigo 225, caput, da Constituição Federal de 1988:

Todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade e vida, impondo-se ao poder público e a coletividade o dever de defendê-Io e preservá-Io para as presentes e futuras gerações.

O empregador possui, assim, o dever legal de assegurar um meio ambiente laboral saudável e equilibrado, pois é preciso proteger o homem trabalhador, enquanto ser vivo, das formas de degradação do meio ambiente onde exerce seu labor, por ser este fundamental à sua qualidade de vida. Dessa forma, o uso do equipamento polígrafo enseja a reparação de danos morais pela Justiça do Trabalho, uma vez que, ante seu uso, ocorre não só violação à dignidade e à integridade do trabalhador, como também, muitas vezes, a rescisão indireta do contrato de trabalho, nos moldes do artigo 483 da CLT.

Nesse universo, direitos fundamentais de personalidade e meio ambiente do trabalho se instauram sobre um caráter indissociável, uma vez que o respeito ao direito do meio ambiente do trabalho saudável e equilibrado implica prática defensiva do direito a uma saúde digna, que é o mais básico alicerce dos direitos fundamentais da pessoa humana. Inexorável se eleva o direito ao meio ambiente laboral equilibrado, como um direito fundamental, materialmente considerado e ligado ao direito à vida.

Dessa maneira, reconhece-se mundialmente o quanto é essencial a sadia qualidade de vida no aspecto que aqui se pretende enfocar, destacando-se, com relevância, a harmonia no meio ambiente do trabalho. Essa se dogmatiza subjetiva e objetivamente na proteção dos direitos à dignidade da pessoa humana, fulcrado no artigo 1°, III, da CF/88.

A Constituição Federal de 1988 estrutura a atividade econômica nos valores intrínsecos da dignidade da pessoa humana (artigo 170, VI, CF/88), já que tal é o princípio-mãe para a edificação de uma ordem econômica e social lapidada na ética e na equidade. Assim, pretende-se instaurar o sentimento universal do avanço à dignificação do trabalho, pois

O primeiro e fundamental direito do homem, consagrado em todas as declarações internacionais, é o direito à vida, suporte para existência e gozo dos demais direitos. Entretanto, não basta declarar o direito à vida sem assegurar os seus pilares básicos de sustentação: o trabalho e a saúde. (OLIVEIRA, 2009, p. 189)

O trabalhador busca na atividade laboral o acesso aos bens de consumo necessários para conservar sua vida. Por isso não se pode ignorar a ressonância direta do labor com o processo vital, pois para que ocorra o exercício do trabalho, o homem não pode perder a saúde, sem a qual o direito à vida não se sustenta.

Cogo (2006) ensina que é preciso encontrar soluções capazes de estruturar uma relação mais humana e ética entre aqueles que tem o papel social de produzir riquezas e aqueles que, na outra ponta dessa relação, buscam sua inclusão no mercado de trabalho.

O ministro do TST Maurício Godinho Delgado já se manifestou de forma contrária acerca da utilização do equipamento polígrafo por empresa americana de transporte aéreo nacional e/ou internacional. Vejamos:

RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL DECORRENTE DE SUBMISSÃO DE EMPREGADA A TESTES DE POLÍGRAFO (DETECTOR DE MENTIRAS). A submissão de empregados a testes de polígrafo viola sua intimidade e sua vida privada, causando danos à sua honra e à sua imagem, uma vez que a utilização do polígrafo (detector de mentiras) extrapola o exercício do poder diretivo do empregador, por não ser reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro o mencionado sistema. Assim, in casu, compreende-se que o uso do polígrafo não é indispensável à segurança da atividade aeroportuária, haja vista existirem outros meios, inclusive mais eficazes, de combate ao contrabando, ao terrorismo e à corrupção, não podendo o teste de polígrafo ser usado camufladamente sob o pretexto de realização de teste admissional rotineiro e adequado. Além disso, o uso do sistema de polígrafo assemelha-se aos métodos de investigação de crimes, que só poderiam ser usados pela polícia competente, uma vez que, no Brasil, o legítimo detentor do Poder de Polícia é unicamente o Estado. Recurso de Revista conhecido e parcialmente provido. (TST, 6ª Turma, Proc. RR 28140-17.2004.5.03.0092. Re.: Ministro Maurício Godinho Delgado. DJ 07/05/2010).

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O ministro relator do processo esclarece que o teste de polígrafo, utilizado pela empresa americana não pode ser adotado em relação a empregados brasileiros aqui admitidos, pois estes têm como fonte de proteção as normas trabalhistas brasileiras, devendo ser respeitados os princípios basilares traçados pela Constituição Federal de 1988, quais sejam o da dignidade da pessoa humana e o da inviolabilidade da intimidade e da honra subjetiva.

Em sua decisão, não considera o polígrafo um mecanismo legalmente previsto pelo ordenamento jurídico brasileiro e, além disso, entende que o mesmo representa um instrumento de transgressão à intimidade dos submetidos ao exame, uma vez que sequer é eficaz como meio de prova contra os empregados. Esclarece também que se a medida fosse realmente indispensável, já teria sido adotada pelas companhias de aviação de outras nacionalidades. Chama a atenção o trecho de sua decisão: "[...] o uso do polígrafo não é indispensável à segurança da atividade aeroportuária, haja vista existirem outros meios, inclusive mais eficazes, de combate ao contrabando, ao terrorismo e à corrupção, não podendo o teste de polígrafoser usado camufladamente sob o pretexto de realização de teste admissional rotineiro e adequado."

Vejamos também as indagações de cunho intimidativo feitas à recorrente nos autos em análise:

__ Você já cometeu crimes ou já foi presa?

__ Vende ou já vendeu narcóticos?

__ Tem antecedentes de desonestidade?

__ Cometeu violações de trânsito?

__ Deve dinheiro para alguém? Quem? Quanto?

__Já roubou qualquer propriedade do local onde trabalha?

__ Desde seu último teste, já usou drogas ilegais?

__ Intencionalmente já permitiu que alguém viajasse com documentos falsos?

__ Permitiu que alguém violasse os procedimentos de segurança?

__ Já permitiu contrabando em alguma aeronave?

Finalmente, explana o ilustre Ministro que o uso do polígrafo acaba por expor a vida pessoal do empregado submetido ao exame, gerando inclusive uma não-contratação de caráter discriminatório. Por isso, constata em sua decisão que o uso do polígrafo não só viola a intimidade e a vida privada dos submetidos ao teste como também destina-se, direta ou indiretamente, a um fim discriminatório, o que vai de encontro aos objetivos da República Federativa do Brasil insculpidos no inciso IV do artigo 3º da Constituição Federal de 1988, cujo fundamento principal é o respeito à dignidade da pessoa humana prevista no inciso III do artigo 1º do mesmo diploma legal. Dessa maneira, comprova que o uso do detector de mentiras resulta em decisões que contrariam não só o inciso X do artigo 5º, como também o próprio caput do referido artigo, que estabelece o princípio da igualdade e veda as distinções legais de qualquer natureza . Ademais, considera que "o uso do sistema de polígrafo assemelha-se aos métodos de investigação de crimes, que só poderiam ser usados pela polícia competente, uma vez que, no Brasil, o legítimo detentor do Poder de Polícia é unicamente o Estado", não podendo, em hipótese alguma, ser usado arbitrariamente por empresas privadas.

Como ainda assevera o ministro, o uso do teste de polígrafo, como pretensa medida de segurança, viola a intimidade da pessoa humana e enseja a pretensão a prováveis danos materiais e morais, conforme a previsão disposta no artigo 5º, X, de nossa Carta Magna, que assim dispõe, in verbis: "Art. 5º (...) X são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" .


Referências

BARROS, Alice Monteiro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2009.

BRANCO, Ana Paula Tauceda. A Colisão de Princípios Constitucionais no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2007.

COGO, Sandra Negri. Gestão de pessoas e a integridade psicológica do trabalhador. São Paulo: LTr, 2006.

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2010.

GARCEZ, Maximiliano Nagl. Vida privada e a relação de emprego. Curitiba, 2001. 310 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Paraná.

GOSDAL, Thereza Cristina. Assédio moral interpessoal e organizacional. São Paulo: LTr, 2009.

MEIRELES, Edilton. Abuso do direito na relação de emprego. São Paulo: LTr, 2005.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro do. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2005.

NASCIMENTO, Nilson de Oliveira. Manual do poder diretivo. São Paulo: LTr, 2009.

PAIM, Paulo - Projeto de lei sob o número 7.253/2002, disponível em www.senadorpaim.com.br - acesso em 25 de abril de 2010.

SIMM, Zeno. Acosso psíquico no ambiente de trabalho. São Paulo: LTr, 2008.

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Sobre a autora
Rúbia Zanotelli de Alvarenga

Doutora e Mestre em Direito do Trabalho pela PUC-MG. Professora de Direito do Trabalho, Processo do Trabalho e de Direito Previdenciário. Advogada.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVARENGA, Rúbia Zanotelli. O polígrafo e o Direito do Trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2704, 26 nov. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17892. Acesso em: 19 abr. 2024.

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