5. Garantias legais e constitucionais para a efetividade do princípio da liberdade de aprender.
Com vistas a densificação dos princípios da liberdade de aprender e da igualdade ao acesso à educação básica, o legislador ordinário foi sábio e prescreveu diversos mecanismos de flexibilidade para os sistemas de ensino, tendo em vista o dever de adaptação destes às necessidades e aptidões dos educandos. Abaixo serão tecidos alguns comentários sobre tais mecanismos.
5.1. A flexibilidade na forma de organização temporal dos sistemas de ensino, segundo as peculiaridades locais, regionais, climáticas e econômicas.
É notória e sempre enaltecida, a característica flexível e democrática da Lei Darcy Ribeiro (Lei nº 9.394/96). Tal flexibilidade lança seus reflexos, por exemplo, na forma de organização da educação básica. Os arts. 23, §2º e 24, IV, da referida lei autorizam que a educação básica seja organizada em: (1) séries anuais, (2) períodos semestrais, (3) ciclos, (4) alternância regular de períodos de estudos, (5) grupos não-seriados, (6) com base na idade, (7) na competência e (8) em outros critérios, ou por (9) forma diversa de organização, sempre tendo em vista o interesse do processo ensino- aprendizagem.
Com base nos artigos supra referidos, conforme as peculiaridades geográficas, climáticas e econômicas predominante em cada ente federativo brasileiro, o calendário escolar da educação básica poderá ser composto por período letivo coincidente com o ano civil, também poderá ser composto por semestres letivos, por ciclos de 02 anos ou por qualquer outra forma de organização temporal se esta pretender a implementação da liberdade de aprender e a instrumentalizaçãoda garantia de igualdade de acesso e/ou de permanência dos educandos no processo educacional básico.
O § 2º do artigo 23 prescreve que o calendário escolar (e, portanto, o início do ano/período/ciclo/ou qualquer outra forma de organização temporal) deverá adequar-se: (1) às peculiaridades locais, inclusive (2) climáticas e (3) econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, desde que isso não reduza o número obrigatório de horas letivas.
Nos termos do referido parágrafo e segundo as peculiaridades locais, dado sistema de ensino poderá estabelecer, por exemplo, que o início de seu período letivo ocorra em junho, ao invés de fevereiro; também poderá estabelecer que o recesso escolar - que, na maioria das regiões do país é mais longo em dezembro - seja fixado para junho e julho, nas regiões onde esta época for muito fria e dificultar a aquisição do conhecimento, em função do desconforto ambiental.
Em cumprimento ao princípio federativo, à repartição de competências constitucionais, especialmente as referidas no art. 22, XXIV e no art. 24, IX, o legislador nacional, nos artigos 23 e 24, da Lei n. 9.394/96, condicionou Assembléias Legislativas e Conselhos Estaduais de Educação a flexilizarem e adaptarem seus sistemas de ensino à aptidão dos educandos (art. 208, V), assim como às peculiaridades locais e regionais, e, às características climáticas e econômicas.
Estes parâmetros fixados pela Lei n. 9.394/96 têm por objetivo implementar os princípios da liberdade de aprender (art. 206, II) e da igualdade no acesso e na permanência no processo educacional (art. 206, I, CF).
5.2. A flexibilidade do critério idade mínima para o ingresso e/ou a permanência no processo educacional, em função da maturidade, das competências e grau de desenvolvimento do educando.
Sem perder de vista os objetivos retro, passa-se à análise do critério etário para ingresso nas etapas da educação básica.
O ato de fixar a data de início de um período letivo traz como conseqüência a fixação de um corte etário entre os educandos existentes em dado sistema de ensino. Assim, cria-se o binômio "idade mínima – data de início de dado período letivo".
O critério "idade mínima-data de início do período letivo" é bastante operativo para os sistemas de ensino, pois cria uma presunção de aptidão do educando a determinada faixa da educação básica. Todavia, o critério em questão não pode ser o único a nortear a admissão de dado aluno em tal ou qual série/ano/ciclo/semestre, sob pena de ofensa ao princípio da igualdade de acesso e permanência na educação básica. Daí a lei de diretrizes ter prescrito (com base no art. 208, V, da CF/88) que somente a idade cronológica ou a fixação aleatória de datas são insuficientes para orientar o agrupamento de crianças no processo de ensino aprendizagem.
Ou seja, não é possível a fixação nacional arbitrária de apenas uma data para o início do ano letivo, porque o § único do art. 23 autoriza inícios diversos, segundo a pluralidade pedagógica, as peculiaridades regionais e locais, bem como as peculiaridades climáticas e econômicas do local onde se encontra o educando - observado o número mínimo de horas aulas previstos em lei - assim como o art. 208, V, da CF, garante ao educando o acesso a níveis superiores de ensino, quando apto para tanto.
É certo que, para fins operativos, cada sistema de ensino pode escolher uma data diferente para o início de seu período letivo. Todavia, se dado sistema de ensino adotar uma data de corte para o início do período letivo, não poderá alçá-lo a termos absolutos, sob pena de ofensa ao art. 23 e 24 da Lei nº 9.394/96 e, especialmente, ofender a igualdade de tratamento e/ou de permanência do educando no processo educacional segundo a sua capacidade individual (art. 206, I, II e art. 208, V, da CF/88).
Não se pretende, com estas considerações, negar a possibilidade de estabelecimento do binômio "idade mínima – data de início do período letivo" como critério para admissão de educandos em dado período letivo. Pretende-se apenas evidenciar que não é possível adotar o binômio em questão de modo absoluto, pois a lei nacional permitiu vários inícios diferentes para o período letivo, o que faria uma criança ter a idade mínima em algumas hipóteses e em outras não.
É necessário conjugar os critérios elencados no art. 23, § 2º, da Lei nº 9.394/96, para resolver os problemas causados pelo binômio: "idade mínima – data de início do período letivo". Com já dito acima, o binômio em questão é de grande operatividade, pois cria uma presunção legal de que dada criança estará apta no momento formalmente fixado e, assim, evita que o Estado precise avaliar cada criança, individualmente, por psicólogo/pedagogo, antes de autorizar o ingresso desta em dado período do processo educacional básico.
Mas, não é possível criar, por meio deste referido binômio, uma presunção absoluta de incapacidade de uma criança, sob pena de ofensa ao art. 206, I e II, e ao art. 208, V, todos da CF/88. Para situações onde houver uma disparidade entre o binômio em questão e a real aptidão e desenvolvimento da criança, estes últimos deverão prevalecer. O desenvolvimento individual de cada criança deverá ser o critério forte e prevalente sobre a presunção legal, que, em tudo, é relativa.
A criança tem o direito de a ela ser aplicado o critério: competência, maturidade e grau de desenvolvimento individual retratado em avaliação técnica, como forma de superar o não cumprimento do binômio "idade mínima/início do período letivo", para fins de cumprimento do art. 206, I e II, e do art. 208, V, da CF/88.
Foi o respeito ao desenvolvimento cognitivo, emocional e psicomotor natural e individual de cada educando que norteou o legislador ao criar o art. 23 e seu parágrafo único, tudo com fundamento no art. 208, V, da CF/88.
Estas preocupações do legislador merecem aplausos, porque pactuam e densificam os objetivos magnos previstos no art. 3º, bem como os princípios especiais previstos no art. 206, incisos I, II e, especialmente, o prescrito no art. 208, V, todos da Constituição Federal.
5.3. Do ensino fundamental de nove anos. Do corte etário constitucional para acesso a esta etapa educacional. Da compatibilidade material entre o art. 208, IV, da CF/88 e o art. 32, da Lei n. 9.394/96, com a redação dada pelas Leis Ordinárias n. 11.114/05 e 11.274/06. Da competência legislativa estadual para fixação do corte etário para ingresso no ensino fundamental de 9 anos.
Especificamente sobre o ensino fundamental de 9 anos – fase intermediária da educação básica -, destaca-se que as leis ordinárias nacionais n. 11.114/05 e n.11.274/06 alteraram os artigos 6° e 32 da Lei n. 9.394/96, para ampliar a duração desta fase e antecipar idade para a matrícula obrigatória neste nível de ensino para 6 anos.
A redação original dos artigos 6° e 32, da Lei n. 9.394/96 (LDB) dispunha:
Art. 6º. É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos sete anos de idade, no ensino fundamental.
Art. 32. O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante(...).(grifos nossos).
Em 17 de maio de 2005, foi publicada a Lei 11.114/05 para alterar a LDB nos artigos 6º e 32. Estes passaram a vigorar com as seguintes redações:
Art.6º - É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula dos menores, a partir dos seis anos de idade, no ensino fundamental.
Art.32 - O ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública a partir dos seis anos, terá por objetivo a formação básica do cidadão mediante: (...) (grifo nosso)
O art. 32, tanto em sua redação original quanto na redação dada pela Lei n. 11.114/05, não impôs uma duração de 9 anos para o ensino fundamental. Para corrigir este conflito entre a intenção do legislador e produto desta, em 06/02/206 foi publicada a Lei n. 11.274/2006 para efetivamente prescrever a duração de 09 anos para o ensino fundamental, a saber:
Art. 3º O art. 32 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
"Art. 32. O ensino fundamental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pública, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão, mediante:"(NR) (grifos nossos).
Com o novo texto do art. 32, o legislador abandonou os modais deônticos obrigatório/permitido para adotar um único modal: o obrigatório. O legislador tornou obrigatório, tanto para a escola pública quanto para a escola privada o ensino fundamental com duração de 9 anos, antecipando o seu início em um ano.
Do ponto de vista constitucional, em 06 de fevereiro de 2006 vigia a seguinte redação no art. 208, IV, CF/88:
Art. 208 (omissis).
IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade;
(...)
Pela simples leitura dos textos transcritos fica claro que, entre as normas nacionais supra referidas e o texto constitucional outrora vigente, havia firme relação de compatibilidade material.
Todavia, no dia 31 de dezembro de 2006, foi publicada a Emenda Constitucional n. 53, e esta deu nova redação ao inciso IV, do art. 208:
Art. 208 (omissis)
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade;
(...)
Pela nova redação constitucional, dada ao inciso IV, a educação infantil deixou de ser ofertada até os 6 anos e para sê-lo até os 5 anos de idade. A partir deste marco o educando deverá ingressar no ensino fundamental de 9 anos. Aqui parece existir uma incompatibilidade entre as redações dos artigos 6º e 32, da Lei n. 9.394/96 e o novo texto constitucional.
Com a nova redação dada ao inciso IV, do art. 208, passaram a existir duas interpretações possíveis para o art. 32, da Lei n. 9.394/96, com a redação da Lei n. 11.274/2006. A primeira interpretação consiste em entender a expressão "seis anos", constante do dispositivo ordinário, como sendo "seis anos completos". Este entendimento gerará uma incompatibilidade material entre o texto do art. 32 e a redação do inciso IV, do art. 208. E como conseqüência, a única conclusão possível é de que, em função da rigidez constitucional,a norma superior e posterior (art. 208, IV) revogou a norma inferior e anterior (art. 32).Quanto à segunda interpretação possível, esta consiste em compreender a expressão "seis anos", prevista no art. 32, como sendo "seis anos incompletos". Considerando-se que "6 anos incompletos" resulta já 5 anos e um dia, esta segunda solução interpretativa gera uma relação de compatibilidade material entre o texto ordinário e o texto constitucional e a conseqüente recepção do texto infraconstitucional ao novo texto do art. 208, IV, da CF.
Nos termos do princípio da interpretação conforme à Constituição, é mais adequada a segunda possibilidade interpretativa, dado que mantém no ordenamento jurídico a norma ordinária n. 11.274/2006 mesmo na presença da nova redação do art. 208, IV, da CF.
Além da relação de compatibilidade material acima apontada, impõe-se não olvidar que, mesmo na presença de uma aparente data de corte, autorizada constitucionalmente para ingresso no ensino fundamental de 9 anos, toda presunção de aptidão ou inaptidão do educando para o ingresso em tal ou qual nível educacional poderá ser afastada pela aplicação do art. 208, V, da CF/88, tal como acima já demonstrado.
A Assembléia Legislativa do Estado do Paraná, no exercício de sua competência constitucional [12], [13], regulamentou o binômio "idade mínima/início do ensino fundamental de 9 anos" de maneira a adaptar a operatividade do corte etário ao disposto no art. 208, incisos IV e V, da CF/88.
A Lei Estadual nº 16.049, de 19 de Fevereiro de 2009, publicada no Diário Oficial nº. 150 de 20 de Fevereiro de 2009 prescreveu:
Art. 1°. Terá direito à matrícula no 1º ano do Ensino Fundamental de Nove Anos, a criança que completar 6 anos até o dia 31 de dezembro do ano em curso.
Como se depreende do texto estadual supra transcrito, no sistema de ensino paranaense garantiu-se o ingresso, na primeira série do ensino fundamental de 9 anos, de todos os educandos a partir de 5 anos de idade (art. 208, IV), bem como o legislador estadual guardou uma margem temporal capaz de cumprir com o disposto no art. 208, V, da CF, e adaptar o sistema de ensino às condições e aptidões das crianças. Assim, há plena compatibilidade material e formal da referida lei estadual com os ditames constitucionais.
5.4. Da ilegalidade e da inconstitucionalidade da Resolução CNE/CEB n. 1/2010
Como visto acima, está prescrito no art.22, XXIV e no art. 24, IX, da CF, a competência legislativa federativa suplementar para que cada ente federativo crie o seu próprio sistema de ensino. Nesta esteira, a Lei n. 9.394/96 delegou a cada ente federativo a liberdade de organização destes sistemas educacionais [14], bem como a autorização para que corte etário para ingresso no sistema de ensino fosse feito nos moldes do art. 23 e 24 já comentados acima.
Todavia, no que se refere ao acesso à primeira série do ensino fundamental de nove anos, em 14 de janeiro de 2010, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Câmara da Educação Básica, publicou a Resolução n.1, que prescreve, in verbis:
"Resolução nº 1, de 14 de janeiro de 2010 (*)
Define Diretrizes Operacionais para a implantação do Ensino Fundamental de 9 (nove) anos.
(...)
Art. 1º Os entes federados, as escolas e as famílias devem garantir o atendimento do direito público subjetivo das crianças com 6 (seis) anos de idade, matriculando-as e mantendo-as em escolas de Ensino Fundamental, nos termos da Lei nº 11.274/2006.
Art. 2º Para o ingresso no primeiro ano do Ensino Fundamental, a criança deverá ter 6 (seis) anos de idade completos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula.
Art. 3º As crianças que completarem 6 (seis) anos de idade após a data definida no artigo 2º deverão ser matriculadas na Pré-Escola.
(...)
Art. 5º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário."
O Conselho Nacional de Educação tem função normativa e de supervisão dos sistemas de ensino, nos termos do art. 9º, §1º, da Lei n. 9.394/96. Esta sua função normativa, todavia, submete-se ao princípio da legalidade (art. 5º, II) e ao controle material de constitucionalidade.
Analisando-se a compatibilidade material da resolução supra transcrita com o texto constitucional percebe-se um conflito entre esta norma inferior e o art. 208, IV, da CF/88. Como visto alhures, este dispositivo constitucional prescreve como limite para a oferta da educação infantil os 5 (cinco) nos de idade do educando. Por óbvio, sendo a educação básica um continuum obrigatório [15], se a oferta da educação infantil, segundo a Constituição, dar-se-á apenas até os 5 anos [16], aos educandos com 5 anos e 1 dia o constituinte garantiu o ingresso na primeira série do ensino fundamental de 9 anos; salvo se esta estiver inapta para fazê-lo, nos termos do art. 208, V, da Carta Maior - o que demanda comprovação técnica e não mera conveniência política e/ou econômica - típica invocação da cláusula ‘reserva do possível’ - dos sistemas de ensino.
Note-se que o direito dos educandos com 5 anos e um dia ao acesso ao ensino fundamental tem seu fundamento na obrigatoriedade imposta ao Estado de oferta desta etapa educacional. E, a relação jurídica, entre educando e Estado, decorre do próprio texto constitucional. Qualquer norma inferior que disponha de maneira diversa está fadada a ser expulsa do ordenamento jurídico.
Ainda sob o ponto de vista material, a inconstitucionalidade da Resolução n.1/2010 reafirma-se no fato de que pretendeu padronizar nacionalmente o binômio "idade mínima/início do ensino fundamental de 9 anos", em desrespeito ao princípio federativo, traduzido na competência constitucional deferida aos entes federados pelo art. 24, IX, da CF/88 para a suplementação da legislação educacional conforme os objetivos pretendidos pelo art. 23 e 24, da LDB.
A referida Resolução também ofende aos princípios da legalidade (art. 5º, II, da CF/88) e do Estado Democrático de Direito porque desborda a competência regulamentar que possui. Só ao Poder Legislativo cabe a imposição, a proibição ou a permissão de comportamentos intersubjetivos com caráter vinculante.
À Câmara da Educação Básica, do Conselho Nacional de Educação, falece competência para inovar o ordenamento jurídico, especialmente porque em confronto com o art. 208, IV, da CF/88 e, no caso do Estado do Paraná, em confronto com o disposto na Lei n. 16.049/2009 publicada sob a chancela da vontade popular.