O homem é um ser que decide. Diante dos obstáculos postos socialmente ao seu encontro, o homem recolhe do ambiente, através dos sentidos, as informações necessárias para compreender o que está acontecendo consigo. A partir destas informações analisadas em sua consciência, chega-se a algumas opções de solução dos problemas objetivamente postos. Entre estas alternativas, será escolhida aquela que possa ser considerada a mais adequada para responder aos problemas encontrados. A construção social dos meios para a obtenção do resultado pretendido será o passo seguinte. Contudo, para que estes mecanismos sejam sólidos, os princípios que os norteiam devem ser sólidos, caso contrário a finalidade será alterada. Ester Vaisman assim explica esta concepção:
A concepção lukacsiana de ideologia (...) tem como ponto de apoio fundamental a noção do homem como um ser prático, característica primordial do ser social posta já no ato do trabalho, na posição teleológica e no desencadeamento de causalidades que o envolvem. Ontologicamente, essa noção implica o fato de que este ser prático age a partir de decisões entre alternativas; ser que, não sendo abstratamente independente das necessidades que a história lhe coloca, reage a essas necessidades empregando produtos espirituais que são constituídos, de forma não linear, em função dessas mesmas necessidades (VAISMAN, 1986:34).
No ato do trabalho, o homem faz uso de elementos encontrados na natureza, modificando-os de acordo com as suas necessidades, criando, assim, novas formas de existência antes inexistentes na natureza, mas que têm importância no ambiente humano, ou seja, na sociedade. Diante das causalidades não-escolhidas pelos homens, teleologicamente cada indivíduo faz novas opções para o desenvolvimento social. A existência de semelhantes organizações da consciência formam-se os movimentos sociais. Nas palavras de G. Lukács:
(...) tanto no trabalho, no intercâmbio orgânico com a natureza, quanto nas outras esferas da prática social, o que identifica essas ações é o fato de que em todas elas há uma tomada de decisão entre alternativas, o que implica a existência de um momento ideal, de uma prévia-ideação como denominador comum a todas elas. Ou seja, o trabalho, que é o fato mais fundamental, mais material da economia tem o caráter de uma posição teleológica (LUKÁCS, apud VAISMAN, 1986:34).
Deste modo, quando qualquer ação humana tem em si uma posição teleologicamente orientada, com o objetido de transformar o meio social, através da influência do ser social sobre o comportamento humano através da mediação da consciência tem-se a ideologia. Como afirma Vaisman:
Na medida em que o ser social exerce uma determinação sobre todas as manifestações e expressões humanas, qualquer reação, ou seja, qualquer resposta que os homens venham a formular, em relaçao aos problemas postos pelo seu ambiente econômico-social, pode, ao orientar a prática social, ao conscientizá-la e operacionalizá-la, tornar-se ideologia (VAISMAN, 1986:39).
Para que as ideologias tenham este caráter prático bem claro em nossa argumentação, é preciso que o conceito até agora defendido seja contraposto às principais concepções defendidas contemporaneamente. Destacam-se, no pensamento filosófico do século XX, as concepções de Althusser, Mannheim e Lenine.
Para Althusser, através da submissão ideológica de parcelas da sociedade pode ser defendida a continuidade do estágio de desenvolvimento econômico vigente. O Estado assegura, para o autor, o cumprimento das suas leis através dos seus aparelhos repressivos (polícia, exército, tribunais) e ideológicos. Nas palavras de E. Vaisman, estes seriam "as instituições concretas responsáveis pela ‘reprodução das relações de produção de uma formação social capitalista’" (Idem:9), portanto, as instituições de ensino, a imprensa e a família. Para que todos os integrantes da sociedade cumpram a sua função social, é preciso que seja encoberta a exploração de classe, caso contrário não seria fácil para o Estado manter o controle sobre seus cidadãos. Logo, as ideologias seriam necessariamente a expressão de uma concepção imaginária da sociedade. Como resume Vaisman:
Para Althusser, em "Pour Marx", a ideologia é a representação imaginária da realidade, sendo esta representação a expressão de uma vontade que assegura a coesão dos membros da sociedade, fazendo com que os membros de uma determinada sociedade aceitem sem maiores resistências as tarefas que lhes são atribuídas pela divisão social do trabalho, dado que fornece as normas e as regras de conduta indispensáveis ao funcionamento das engrenagens sociais (VAISMAN, 1989:403).
Na perspectiva lukacsiana, a consciência da realidade pode coincidir com ideologia, desde que seja meio para direcionar a luta social. Ideologias são formas próprias de consciência, que não têm o significado de explicação social, mas de sua orientação de acordo com a práxis social. De acordo com a processualidade histórica, são organizados diferentes sistemas ideológicos que permitem aos homens dar prosseguimento ao desenvolvimento social. Segundo G. Lukács:
A ideologia, sendo precisamente uma forma de consciência, não é absolutamente, em tudo e por tudo, idêntica à consciência da realidade; ela, enquanto meio para dirimir os conflitos sociais, é algo eminentemente dirigido à práxis e portanto – naturalmente no quadro de sua especificidade – participa também do caráter peculiar de toda práxis, ou seja, o de ser orientada acerca de uma realidade a transformar (...). A sua especificidade interior da práxis global é a generalização, em definitivo, sempre socialmente orientada (...) (LUKÁCS, apud VAISMAN, 1989:53 – grifo nosso).
A partir desta forma de abordar a questão da ideologia e sua relação com a sociedade, tem-se estabelecido um vínculo estreito entre ideologia e conhecimento, onde a concepção de realidade e a ideologia social se confundem, o que define a concepção gnoseológica das ideologias. As idéias são concebidas, então, como o legítimo motor da vida real, pois através delas os indivíduos compreendem e defendem determinada visão de realidade. Esta concepção, predominante entre os ideólogos franceses do século XIX, teve prosseguimento na corrente leninista do movimento comunista, através da defesa da luta ideológica do movimento operário. Segundo Michael Löwy, a ideologia deixa de ter o sentido de uma concepção ilusória de realidade para definir "qualquer doutrina sobre a realidade social que tenha vínculo com uma posição de classe" (LÖWY, 1998:12). Para Lênin:
Uma vez que nem sequer se pode falar de uma ideologia independente elaborada pelas próprias massas operárias no decurso do seu movimento, o problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia socialista. Não há meio termo (...). Por isso, tudo o que seja rebaixar a ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela significa fortalecer a ideologia burguesa (LÊNIN, 1978:49).
Este conceito de ideologia restrito à consciência de classe, tornou-se alvo de controvérsias dentro do próprio marxismo-leninismo, pela oposição entre Rosa Luxemburg, defendendo a formação da consciência socialista em cada indivíduo e a idéia defendida por Lênin da consciência política por origem externa ao operário, "na esfera das relações de todas as classes e camadas com o Estado e o governo, na esfera das relações de todas as classes entre si" (Idem:92). Historicamente, prevaleceu a concepção leninista, mas ainda não existia a necessária precisão terminológica acerca da importância das ideologias sobre a atividade operária.
Para Mannheim, dois termos podem fazer com que as duas concepções expostas (leninista e de Althusser) tenham por resultado diferentes definições de ideologia. Quando a sistematização das idéias sobre a realidade estiver orientada para a continuidade da ordem estabelecida, Mannheim mantém o termo "ideologia"; contudo, quando a organização das idéias tiver por objetivo alterar a ordem existente, dever-se-ia utilizar a palavra "utopia", pois, de origem grega, define uma forma de sociedade inexistente.
Para evitar a confusão entre tantos termos que têm a função de definir o mesmo fenômeno gnoseológico, Michael Löwy propõe que não seja efetuada a divisão entre ideologias a favor ou contra o status quo, mas que se compreenda todas elas como "visões sociais de mundo". Nas palavras do autor: "Visões sociais de mundo seriam, portanto, todos aqueles conjuntos estruturados de valores, representações, idéias e orientações cognitivas. Conjuntos esses unificados por uma perspectiva determinada, por um ponto de vista social, de classes sociais determinadas" (Idem:13-4).
2. O Conceito Marxiano-Lukacsiano de Ideologia
Através de Karl Marx e, mais tarde, Gyorgy Lukács, a esta concepção gnoseológica se contrapõe uma concepção ontológica, na qual é reafirmado o real como existente, não sendo apenas uma configuração intelectual, mas concretamente confirmável. A partir disto, ideologias não mais se apresentam como ilusões, falsificações do real, mas como sistematização das idéias humanas para a conquista do real.
Assim, não tem a mesma importância da outra concepção o fato de ser real ou não a informação, todavia importa que ela possa alterar a realidade ou não. K. Marx já expressava esta idéia em sua tese de doutorado, ao perguntar: "Não era, talvez, o Apolo délfico uma potência real na vida dos gregos?" (LUKÁCS, apud VAISMAN, 1986:66). Esta questão significa que, mesmo não correspondendo ao mundo real o que se apresenta na consciência humana, esta concepção corresponderá a determinada ideologia se em sua fundamentação existir, mesmo que apenas potencialmente, como alterar a totalidade social. Como afirma Lukács: "(...) a ideologia pode, de fato, tornar-se uma potência, uma força real no quadro do ser social, somente quando o seu ser-precisamente-assim converge com as exigências fundamentais do desenvolvimento da essência" (Idem:67), ou seja, a força social da ideologia é compreendida quando o seu objetivo coincide com a mudança da sociedade em seus alicerces constitutivos.
Mesmo tendo sido evidenciada por Lukács ser esta a concepção marxiana de ideologia, defensores da democracia na vertente da esquerda democrática ainda defendem que partira de Marx a tese de que toda ideologia seria essencialmente uma falsa realidade, através de trechos isolados de Ideologia Alemã. É representativa desta tendência a abordagem de M. Chauí:
A consciência, prossegue o texto de A Ideologia Alemã, estará indissoluvelmente ligada às condições materiais de produção da existência, das formas de intercâmbio e de cooperação, e as idéias nascem da atividade material. Isto não significa, porém, que os homens representem nessas idéias a realidade de suas condições materiais, mas, ao contrário, representam o modo como essa realidade lhes aparece na experiência imediata. Por esse motivo, as idéias tendem a ser uma representação invertida do processo real, colocando como origem ou como causa aquilo que é efeito ou conseqüência, e vice-versa (CHAUÍ, 1995:63-4).
A partir da manipulação da consciência a partir de concepções ilusórias da sociedade, segundo M. Chauí, as ideologias serão o pilar da revolução porque:
(...) o que torna possível a ideologia é a luta de classes, a dominação de uma classe sobre as outras. Porém, o que faz da ideologia uma força quase impossível de ser destruída é o fato de que a dominação real é justamente aquilo que a ideologia tem por finalidade ocultar. Em outras palavras, a ideologia nasce para fazer com que os homens creiam que suas vidas são o que são em decorrência da ação de certas entidades ( /.../ a Ciência, a Sociedade, o Estado) que existem em si e por si e às quais é legítimo e legal que se submetam. /.../ Seu papel é fazer com que no lugar dos dominantes apareçam idéias "verdadeiras". Seu papel também é o de fazer com que os homens creiam que tais idéias representam efetivamente a realidade (Idem:87).
Os defensores desta concepção não elucidam que em A Ideologia Alemã era o objetivo de Marx romper o seu vínculo com a filosofia hegeliana que predominava na Alemanha, onde o que havia de ideológico era sempre a coerente interligação de idéias. Para Marx, apenas através do conhecimento material da sociedade pode-se compreender como foi construída a consciência dos diferentes setores da sociedade. Assim, as ideologias não podem ser estudadas como explicações falsas ou verdadeiras do mundo real, mas como o caminho escolhido por setores da sociedade para alterar a totalidade social. Para que não seja perdido o alcance das ideologias em sua incidência sobre a direção social, Marx ressalta a distinção entre a transformação social de origem natural, quando as ciências naturais podem descrever minuciosamente, e as formas ideológicas. Esta última concepção refere-se a todas as esferas ontológicas que incidem sobre a totalidade social. Estas esferas, em seu amplo e contínuo desenvolvimento cada vez mais interligadas entre si, moldam a base da consciência do todo social a partir de suas necessidades. Por isto, pode-se compreender a força da lógica do capital sobre a consciência proletária, de acordo com Marx, nos seguintes termos:
Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do julgamento que ele faz de si mesmo, da mesma maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própria consciência; ao contrário, é preciso explicar essa consciência a partir das contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção (MARX, 1997:52).
Assim, as ideologias têm por função integrar homens de objetivo comum, não explicar a realidade para eles. Através da processualidade histórica é que a realidade pode ser compreendida, não através da análise da consciência dos homens que vivem neste processo. A concepção gnoseológica não é capaz de explicar o ser-precisamente-assim da ideologia como integrante da totalidade. Para esta concepção, a possibilidade de conhecimento do real seria responsável pela separação entre o conhecimento científico e a ideologia. Contudo, esta distinção não tem relevância quando se tem por relevo a importância na processualidade social de determinadas idéias. Segundo Sérgio Lessa: "Sem a transformação do real por meio da objetivação de posições teleológicas, não teria qualquer sentido tentar convencer outros para que exerçam uma dada ação sobre o existente" (LESSA, 1997a:51). Através do materialismo histórico, então, as ideologias são compreendidas como instrumentos para a luta social. Nas palavras de Ester Vaisman:
Finalmente, a recuperação da Ontologia na perspectiva lukacsiana é a afirmação de que o real existe, o real tem uma natureza e esta existência e esta natureza são capturáveis intelectualmente. E, na medida em que é capturável, pode ser modificada pela ação cientificamente instruída, ideológica e conscientemente conduzida pelo homem. Postular, desse modo a ontologia é resgatar a possibilidade de entendimento e transformação da realidade humana. Em suma, é colocar o fato de que o real não é, afinal de contas, uma ilusão dos sentidos e que nossa subjetividade pode se objetivar na conquista da realidade (VAISMAN, 1989:409 – grifo nosso).
Através da opção ideológica determinada pelos grupos sociais, é elaborado um projeto para a sociedade. Este projeto poderá ser a passagem das idéias para a transformação do real ou para a sua conservação, ou seja, a objetivação coletiva da subjetividade individual. A ideologia não será a própria consciência, mas uma forma de sua manifestação, cujo alcance é eminentemente prático, presente em toda prática humano-social. Sendo a ideologia uma forma de transformação ou manutenção de determinada estrutura real de existência social, não se pode conceber a ideologia como uma consciência da realidade, mas como a sua práxis interna. Como afirma Fernando Moyano:
Sem deixar de ser, como toda ciência, uma atividade social produtora de conhecimentos, o marxismo é também, como toda ideologia, um instrumento de estruturação e projeção de práticas sociais concretas, um corpo conceptual destinado a organizar uma luta social determinada, a legitimar ou tentar legitimar, apoiando no status desta teoria, a ação de movimentos políticos concretos, direções políticas, lideranças, representações e usurpações (MOYANO, 1996:65-6).
A partir das diferentes ciências da sociedade, os problemas historicamente concebidos são compreendidos. O papel das ideologias será integrar os indivíduos na luta contra estes problemas, através de uma base teórica comum em relação aos interesses dos agentes sociais. Cada visão social de mundo não explicará a realidade, mas integrará os homens entre si na sua luta contra seus problemas. Tendo-se em vista que a questão fundamental para a liberdade é a luta de classes, o papel da ideologia será fundamentar, unir e organizar não a realidade, mas a ação coletiva em defesa do socialismo. Como afirma Sérgio Lessa:
Em suma, o fenômeno da ideologia corresponde a uma necessidade social concreta: a cada momento as sociedades necessitam ordenar a práxis coletiva dentro de parâmetros compatíveis com a sua reprodução. Para tanto, é preciso uma visão de mundo que confira sentido à ação de cada indivíduo a todo momento. É pelo fato de corresponder a essa necessidade, de cumprir essa função social, que uma ideação se transforma em ideologia (LESSA, 1997a:55).
Portanto, através da solidez ideológica, os indivíduos podem-se organizar para a defesa de interesses comuns, dentro de um contexto social não-explicável ideologicamente, mas a partir das ideologias defensável ou condenável. Com a compreensão das ideologias, podemos compreender o papel das diferentes formas de integração entre indivíduos na sociedade capitalista lutando contra a lógica do capital, visando a uma sociedade plenamente emancipada. Nas palavras de G. Lukács: "(...) com a diferenciação de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica torna-se a base estruturante do que o marxismo chama de ideologia" (LUKÁCS, 1978:9).
A caracterização da ideologia, sob a concepção lukacsiana, pode-se apresentar, como afirma E. Vaisman, em sua forma restrita ou ampla. O alcance ideológico se diferencia de acordo com, respectivamente, o engajamento dos homens nas lutas de classes ou a seleção de respostas aos problemas sociais. Como afirma Vaisman:
"(...) onde quer que se manifeste o ser social há problemas a serem resolvidos e respostas que miram às soluções destes, é precisamente nesse processo que o fenômeno ideológico é gerado e tem seu campo de operações" (VAISMAN, 1986:53-4).
A convicção ideológica quanto aos princípios fundamentará de diferentes formas os partidos políticos e os movimentos sociais. Serão agora compreendidos o papel dos partidos políticos e a distinção entre o movimento operário e os demais movimentos sociais.
Logo, o papel que é atribuído ao Direito por seus juristas, de conciliador através das técnicas normativas autônomas das demais formas de conhecimento, é ontologicamente das ideologias sociais. Portanto, o Direito comporta-se socialmente como ideologia ao negar esta característica fundamental, denominando-se através dos juristas como ciência autônoma, do "dever-ser" paralela às ciências do "ser".