O presente trabalho tem por escopo analisar a legalidade da Lei Complementar n° 13/1997, do estado do Tocantins, que vai além da norma federal ao determinar predatória a pesca profissional. Discute-se a aplicabilidade da referida norma estadual aos rios federais localizados em seu território.
Da aplicabilidade da Lei Complementar n° 13/1997 aos rios existentes no território do estado de Tocantins;
O art. 24 da Constituição Federal estabelece a competência legislativa concorrente ao dispor que:
"Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
II - orçamento;
III - juntas comerciais;
IV - custas dos serviços forenses;
V - produção e consumo;
VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição;
VII - proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico;
VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico;
IX - educação, cultura, ensino e desporto;
X - criação, funcionamento e processo do juizado de pequenas causas;
XI - procedimentos em matéria processual;
XII - previdência social, proteção e defesa da saúde;
XIII - assistência jurídica e Defensoria pública;
XIV - proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência;
XV - proteção à infância e à juventude;
XVI - organização, garantias, direitos e deveres das polícias civis.
§ 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§ 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
§ 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º - A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário."
Cuida-se de repartição vertical de competência legislativa, em que diferentes entes federados poderão, de forma legítima, legislar sobre as respectivas matérias, obedecidas determinadas regras de atuação constantes dos parágrafos do mesmo art. 24.
No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais (CF, art. 24, §1°), porém a atuação da União, fixando normas gerais, não exclui a competência suplementar dos Estados e do Distrito Federal (CF, art. 24, §2°).
Fixadas as normas gerais pela União, caberá aos Estados-membros complementar a legislação federal, tendo em vista as peculiaridades regionais, por meio da expedição de normas específicas estaduais e distritais. Trata-se da chamada competência suplementar.
Se é certo que as normas editadas pelos estados não poderão contrariar aquelas expedidas pela União, "na hipótese de a União estabelecer normas específicas que pretenda ver aplicadas aos estados e ao Distrito Federal, sua atuação será inconstitucional, por invasão da competência desses entes federativos. Nesse caso, prevalecerão as normas específicas editadas pelo próprio estado ou pelo Distrito Federal, restando afastadas, por inconstitucionalidade, as normas específicas federais que se pretendessem aplicáveis aos estados e ao Distrito Federal". (PAULO, Vicente & ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado, 2008, p. 317).
Portanto, a competência do governo federal é direcionada somente às normas gerais, não podendo delas extrapolar e descer a pormenores. Cabe ao estado especificar, detalhar, complementar e até restringir.
Segue aresto citado por Alexandre de Moraes [01]:
"Compete aos Estados, em relação ao controle ambiental, dentro de seus limites territoriais, estabelecer os índices de poluição toleráveis. Conama, órgão federal especializado, compete estipular os índices máximos de poluição suportáveis, fixando, em conseqüência, um mínimo a ser exigido, o que não impede aos Estados formular exigências maiores a respeito, dentro dos limites de seus territórios. Igualmente, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que multa aplicada por excessiva emissão de fumaça dos veículos, compatibiliza-se com típico poder de polícia, inserindo-se na legítima competência supletiva do Estado-membro (STJ – 1ª T. – Rec. Esp. n° 4.161-0 – RJ – Rel. Min. Milton Luiz Pereira; j. 19-4-95; v.u.; DJU, Seção I, 15 maio 1995, p. 13.365, ementa). No mesmo sentido: STF – 2ª T. – AgRgAg 147.111-5, Rel. Min. Carlos Velloso, Diário da Justiça, 13 ago. 1993). (g.n.).
Também sobre o tema:
"ADMINISTRATIVO. MEIO AMBIENTE. TRAFEGO DE ONIBUS. PRODUÇÃO DE FUMAÇA ACIMA DOS NIVEIS TOLERAVEIS. INFRAÇÃO A LEGISLAÇÃO AMBIENTAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
- INEXISTENCIA DA ALEGADA NEGATIVA DE VIGENCIA AO RT. 8., INC. VI, DA LEI N. 6938/81, PORQUANTO REFERIDO DIPLOMA LEGAL, QUE FIXA AS DIRETRIZES DA POLICIA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE, NÃO EXCLUI A EDIÇÃO PELOS ESTADOS OU MUNICIPIOS DE NORMAS E PADRÕES QUE OBJETIVAM A REGULAR SITUAÇÃO REGIONAL, OU LOCAL, ESPECIFICA.
- DISSIDIO NÃO DEMONSTRADO.
(REsp 8.579/RJ, Rel. Ministro AMÉRICO LUZ, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/06/1991, DJ 18/11/1991 p. 16514)" (g.n.).
Importante que se defina o exato conceito de suplemento.
De acordo com a conceituação no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque, suplemento é o que supre; é a "parte que se ajunta a um todo para ampliá-lo ou para aperfeiçoá-lo. O que serve para suprir qualquer falta".
Conforme ensina Paulo Affonso Leme Machado, "A capacidade suplementaria está condicionada à necessidade de aperfeiçoar a legislação federal ou diante da constatação de lacunas ou de imperfeições da norma geral federal." (2009, p. 117).
Destarte, no exercício de sua competência suplementar, é possível ao estado restringir determinada situação que afete negativamente o meio ambiente, não havendo que se falar em ilegalidade.
É certo que são bens da União os rios e quaisquer correntes de água que banhem mais de um Estado (artigo 20, inciso III, da Constituição da República), porém esse fato não tem o condão de obstar a aplicação de leis estaduais em face de rios federais dentro dos limites do estado.
"Art. 20. São bens da União:
(...)
III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;"
Não se pode confundir a titularidade de um bem com a competência para legislar sobre a proteção do meio ambiente que o envolve. Tendo em vista que a Constituição Federal não conferiu à União competência para legislar privativamente sobre pesca em rios federais, não há como se cogitar a ilegalidade da aplicação de norma estadual sobre rios localizados em seu território.
Cabe ao estado-membro definir por lei o exercício da pesca dentro de sua jurisdição, pois o cumprimento de norma estadual se impõe, dentro dos limites do respectivo ente federado, sobre todos os bens, públicos ou privados, inclusive sobre os bens da União. Em outras palavras, a cogência de uma norma não fica adstrita aos bens de titularidade do ente legiferante.
Da inexistência de conflito entre a Lei Complementar n ° 123/1997 e a Lei Federal que regula as atividades pesqueiras;
Entende-se que não há conflito entre a Lei Complementar n° 13/1997, do estado do Tocantins, e a Lei Federal que regula as atividades pesqueiras, Lei n° 11.959, de 29 de junho de 2009.
O só fato de a Lei Federal 11.959/2009 regular em âmbito geral a pesca profissional não tem o condão de vedar a imposição de maiores restrições por parte dos estados. Tão-somente a expressa vedação com relação à previsão de maiores restrições por parte dos estados é que poderia tornar ilegal a lei estadual.
A lei que edita normas gerais dispõe caber aos Estados e ao Distrito Federal o ordenamento da pesca nas águas continentais de suas respectivas jurisdições, podendo o exercício da atividade ser restrita a uma determinada bacia hidrográfica. E ainda: Autoriza a proibição transitória, periódica ou permanentemente, nos termos das normas específicas, do exercício da atividade pesqueira.
"CAPÍTULO III
DA SUSTENTABILIDADE DO USO DOS RECURSOS PESQUEIROS E DA ATIVIDADE DE PESCA
Seção I
Da Sustentabilidade do Uso dos Recursos Pesqueiros
Art. 3o Compete ao poder público a regulamentação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, conciliando o equilíbrio entre o princípio da sustentabilidade dos recursos pesqueiros e a obtenção de melhores resultados econômicos e sociais, calculando, autorizando ou estabelecendo, em cada caso:
I – os regimes de acesso;
II – a captura total permissível;
III – o esforço de pesca sustentável;
IV – os períodos de defeso;
V – as temporadas de pesca;
VI – os tamanhos de captura;
VII – as áreas interditadas ou de reservas;
VIII – as artes, os aparelhos, os métodos e os sistemas de pesca e cultivo;
IX – a capacidade de suporte dos ambientes;
X – as necessárias ações de monitoramento, controle e fiscalização da atividade;
XI – a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de estoques.
§ 1o O ordenamento pesqueiro deve considerar as peculiaridades e as necessidades dos pescadores artesanais, de subsistência e da aquicultura familiar, visando a garantir sua permanência e sua continuidade.
§ 2o Compete aos Estados e ao Distrito Federal o ordenamento da pesca nas águas continentais de suas respectivas jurisdições, observada a legislação aplicável, podendo o exercício da atividade ser restrita a uma determinada bacia hidrográfica.
(...)
Art. 6o O exercício da atividade pesqueira poderá ser proibido transitória, periódica ou permanentemente, nos termos das normas específicas, para proteção:
I – de espécies, áreas ou ecossistemas ameaçados;
II – do processo reprodutivo das espécies e de outros processos vitais para a manutenção e a recuperação dos estoques pesqueiros;
III – da saúde pública;
IV – do trabalhador.
§ 1o Sem prejuízo do disposto no caput deste artigo, o exercício da atividade pesqueira é proibido:
I – em épocas e nos locais definidos pelo órgão competente;
II – em relação às espécies que devam ser preservadas ou espécimes com tamanhos não permitidos pelo órgão competente;
III – sem licença, permissão, concessão, autorização ou registro expedido pelo órgão competente;
IV – em quantidade superior à permitida pelo órgão competente;
V – em locais próximos às áreas de lançamento de esgoto nas águas, com distância estabelecida em norma específica;
VI – em locais que causem embaraço à navegação;
VII – mediante a utilização de:
a) explosivos;
b) processos, técnicas ou substâncias que, em contato com a água, produzam efeito semelhante ao de explosivos;
c) substâncias tóxicas ou químicas que alterem as condições naturais da água;
d) petrechos, técnicas e métodos não permitidos ou predatórios.
§ 2o São vedados o transporte, a comercialização, o processamento e a industrialização de espécimes provenientes da atividade pesqueira proibida." (g.n.).
Destaca-se que o §2° do artigo 3° acima transcrito determina que compete aos estados e ao DF o ordenamento da pesca nas águas continentais de sua respectivas jurisdições, ou seja, dentro de seus limites territoriais. O só fato de um rio se estender por mais de um estado da federação não obsta a que os Estados-membros regulamentem e até restrinjam a pesca na porção do rio inserida dentro dos seus limites territoriais.
Assim, a Lei Estadual foi editada nos estritos limites da competência suplementar do estado de Tocantins. Ao considerar ilegal a pesca profissional nos limites de jurisdição do estado, a Lei Complementar n° 13/1997 proíbe permanentemente o exercício da atividade pesqueira, em consonância com o que dispõe o caput do art. 63° da Lei 11.959/2009.
Face às razões aqui expostas, conclui-se que
:(a) No exercício de sua competência suplementar, pode o estado-membro restringir determinada situação que afete negativamente o meio ambiente;
(b) A cogência de uma norma não fica adstrita aos bens de titularidade do ente legiferante;
(c) Como a Lei de normas gerais autoriza a proibição transitória, periódica ou permanente do exercício da atividade pesqueira, pelos estados e nos termos das normas específicas, inexiste conflito entre a Lei Complementar 13/1997 e a Lei de normas gerais;
(d) As leis promulgadas do Poder Legislativo presumem-se legais até que a sua inconstitucionalidade/ilegalidade seja declarada pelo Poder Judiciário.
Nota
- MORAES, Alexandre. Direito Constitucional, 2005.