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A ordem constitucional e as prerrogativas processuais da Fazenda Pública

14/12/2010 às 20:03
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1. Introdução

Tanto no Código de Processo Civil Brasileiro como, principalmente, na legislação extravagante, há uma série de peculiaridades concernentes à atuação estatal em juízo. Confere-se, pois, em normas dirigidas à Fazenda Pública, contornos específicos aos institutos tradicionais, tendo em vista a relevância dos interesses defendidos pelo Estado.

O conjunto dessas normas, cujo estudo tem atraído os olhares de grandes mestres da ciência jurídica, vem recebendo a denominação de "Direito Processual Público", o que denota a tendência de se reconhecer a existência de um sistema processual próprio da Fazenda Pública.

Ocorre que, por razões várias, muitas delas eminentemente jurídicas, outras nem tanto, juristas há que entendem que referidas regras especializadas não ultrapassam o teste da constitucionalidade. Aduzem, em apertada síntese, que referidas normas constituiriam verdadeiros privilégios e, portanto, injustificáveis à luz do princípio constitucional da isonomia.

Indubitavelmente, se analisarmos o dogma da igualdade sob seu prisma eminentemente formal, as leis especiais que conferem tratamento processual diferenciado aos entes públicos são flagrantemente inconstitucionais. No entanto, a noção de igualdade na lei, ou mesmo perante a lei, dominante sob a égide do Estado Liberal, cedeu passo, com o advento do Estado Social, à concepção de igualdade material, se* gundo a qual, na linha da antiqüíssima lição aristotélica, deve-se tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais, na medida de suas desigualdades. Olhando a questão sob esse ângulo, o "teste" de constitucionalidade não é mais tão simples.

Nessa esteira de raciocínio, é patente a existência de uma efetiva desigualdade material entre os entes estatais e os particulares, uma vez que os primeiros defendem o interesse público, ao qual, em um Estado Democrático de Direito, em nome de uma convivência harmônica, se deve conferir supremacia em face do interesse particular. Daí, outra ilustre ala doutrinária sustentar a necessidade da existência de normas e institutos processuais diferenciados em benefício da Fazenda Pública, como forma de viabilizar o desempenho do múnus público. Segundo essa corrente, que, adiantamos, é a majoritária, as regras diferenciadas constituiriam prerrogativas processuais da Fazenda Pública e, portanto, consentâneas com o princípio da isonomia, especialmente se considerado em sua acepção substancial.

Eis a problemática. Saber se aludidas normas constituem prerrogativas do Poder Público ou se não passam de privilégios estatais, dignos, portanto, do mais impiedoso reproche da ordem jurídica.

A ambição deste singelo trabalho é justamente submeter o conjunto dessas normas em que há relevantes peculiaridades concernentes ao Poder Público ao exame de sua conformidade com a Carta da República.

Não há o intento de esgotar o tema, dada sua complexidade, mas há, sim, o propósito de traçar um panorama seguro, à luz da doutrina e jurisprudência mais abalizadas, acerca da constitucionalidade das normas jurídicas que norteiam a atuação da Fazenda Pública em juízo.

Inicialmente, colocaremos a importância do estudo do processo à luz dos direitos fundamentais, para, a partir da análise do princípio maior do devido processo legal, debruçarmo-nos sobre o vetor constitucional da isonomia.

Tendo como prisma os delineamentos constitucionais e hermenêuticos pertinentes, procederemos ao teste de constitucionalidade já anunciado, de forma a podermos concluir se o conjunto de regras que constituem o chamado "Direito Processual Público" constitui um amontoado de privilégios do Poder Público ou um indispensável sistema de prerrogativas instrumentador do exercício da atividade administrativa.


2. O processo e a teoria dos direitos fundamentais

A teoria dos direitos fundamentais é considerada por muitos constitucionalistas a principal contribuição jurídica do período do pós Segunda Guerra Mundial. A processualística, desde muito cedo, apercebeu-se da importância de estudar o processo à luz da Constituição – basta ver, por exemplo, o trabalho de José Frederico Marques ainda nos idos da década de 50 do século passado.

Mais recentemente, os processualistas avançaram no estudo do tema, agora para encarar institutos processuais não só à luz da Constituição, mas, sim, pela perspectiva de um determinado tipo de norma constitucional, que compreende aquelas que prescrevem direitos fundamentais. Tornou-se recorrente falar-se, portanto, em estudo do processo à luz dos direitos fundamentais, que são, na linha do padrão inaugurado contemporaneamente pela Constituição alemã de Bonn e seguido pelo legislador constituinte dos países da Península Ibérica, o núcleo fundamental da derradeira concepção de Estado de Direito, qual seja, o Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal de 1988 alinhou-se a essa tendência e incluiu no rol dos direitos e garantias fundamentais uma série de dispositivos de natureza processual, os chamados princípios constitucionais processuais, em número sem precedente em nossa história constitucional. São tantos e tão diversos dispositivos que a doutrina moderna já se refere à chamada "Tutela Constitucional do Processo". [01]

Segundo a mais abalizada doutrina constitucionalista, os direitos fundamentais possuem uma dupla dimensão: subjetiva, pois, de um lado, são direitos subjetivos, que atribuem posições jurídicas de vantagem a seus titulares; e objetiva, já que também traduzem valores básicos consagrados na ordem jurídica, que devem presidir a interpretação de todo o ordenamento jurídico por todos os atores jurídicos.

O mestre maior, Paulo Bonavides, ao desenvolver o estudo da teoria objetiva dos direitos fundamentais, ensina-nos, com perfeição:

"Com o advento dos direitos fundamentais de 2ª geração, os publicistas alemães, a partir de Schmitt, descobriram também o aspecto objetivo, a garantia de valores e princípios com que escudar e proteger as instituições. Os direitos sociais fizeram nascer a consciência de que tão importante quanto salvaguardar o indivíduo, conforme ocorreria na concepção clássica dos direitos da liberdade, era proteger a instituição, uma realidade social muito mais rica e aberta à participação criativa e à valoração da personalidade que o quadro tradicional da solidão individualista, onde se formara o culto liberal do homem abstrato e insulado, sem a densidade dos valores existenciais, aqueles que unicamente o social proporciona em toda a plenitude. Descobria-se assim um novo conteúdo dos direitos fundamentais." [02]

Podemos, neste ponto, a partir das considerações feitas, especialmente no que tange ao aspecto objetivo dos direitos fundamentais, tirar algumas conclusões preliminares acerca dos princípios constitucionais processuais. Primeiramente, não pode haver dúvidas quanto ao fato de que devem esses direitos ser interpretados como se interpretam os direitos fundamentais, ou seja, de forma a dar-lhes o máximo de eficácia. Além disso, o aplicador do Direito poderá afastar, aplicando o princípio da proporcionalidade, qualquer regra que se coloque como obstáculo irrazoável à efetivação de todo direito fundamental.

Estudada, ainda que a vôo de pássaro, a gênese constitucional da ciência processual, pode-se passar à análise de alguns dos princípios constitucionais processuais, partindo-se da norma-mãe, o devido processo legal.


3. O devido processo legal

O devido processo legal deve ser entendido como o princípio fundamental do processo, cláusula aberta da qual emanam as demais garantias. Origina-se da expressão inglesa "due process of law", cuja primeira previsão ocorreu na Magna Carta de João Sem Terra, de 1215.

Desenvolveu-se, inicialmente, uma concepção formal do direito a um processo devido, restringindo-se a um viés eminentemente processual, segundo o qual o devido processo legal seria, basicamente, o direito a ser processado e a processar de acordo com as normas previamente estabelecidas para tanto. Sob este prisma, tendo em conta o caráter complexo e geral de que se reveste o princípio, o professor Nelson Nery Jr. assevera:

"Em nosso parecer, bastaria a norma constitucional haver adotado princípio do due process of law para que daí decorressem todas as consequências processuais que garantiriam aos litigantes o direito a um processo e a uma sentença justa. É, por assim dizer, o gênero do qual todos os demais princípios constitucionais do processo são espécies." [03]

Tem-se, portanto, que a amplitude da cláusula do devido processo legal tornaria desnecessária qualquer outra dogmatização principiológica relativamente ao processo civil. Não obstante, foi positivada explicitamente uma série de princípios constitucionais processuais, até mesmo como forma de delimitar melhor o âmbito de incidência de cada uma dessas garantias. Pode-se citar, ilustrativamente, os princípios da ampla defesa, contraditório, publicidade dos atos processuais, isonomia processual, juiz natural e outros.

Insta, entretanto, ressaltar que, com o avanço da teoria dos direitos fundamentais, na linha do que fora delineado no tópico anterior, passou-se a conceber o princípio do devido processo legal sob uma ótica substancial, de alcance ainda mais amplo, consistente em uma idéia de razoabilidade e proporcionalidade, que deve ser observada em todas as formas de produção do Direito, aplicável, portanto, a todos os tipos de processo, e não apenas ao judicial.

É preciso que sejam investigadas noções básicas de hermenêutica constitucional para que se possa compreender melhor o devido processo legal substancial. Sabe-se que a constatação de tensão entre direitos fundamentais e/ou princípios constitucionais é fenômeno bastante comum na aplicação concreta do Direito. Ocorre que, enquanto a desarmonia entre normas infraconstitucionais se resolve por técnicas de interpretação mais singelas, o conflito de normas constitucionais, em razão de sua magnitude, requer do intérprete um cuidado especial, uma vez que, tendo em vista os princípios da máxima eficácia das normas constitucionais e da unidade da Constituição, não se pode aplicar um princípio fundamental em detrimento de outro, de modo a negar aplicação a uma garantia constitucional sob o argumento de que outra é mais importante. Não há hierarquia entre normas constitucionais, de forma que se deve, sempre, buscar uma harmonização entre os princípios em conflito, relativizando-se um e outro, de maneira a viabilizar a aplicação de ambos. E o instrumento dessa atividade da mais salutar importância em um Estado Democrático de Direito é justamente o princípio da proporcionalidade. Este é o fiel da balança, que, apesar de não possuir positivação explícita, é o valor fundamental que confere unidade à ordem constitucional.

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O professor Willis Santiago Guerra Filho ressalta a importância do princípio da proporcionalidade, fazendo-o, inclusive, sob uma perspectiva histórica:

"A acolhida extremamente favorável e a aplicação generalizada que tem merecido o princípio da proporcionalidade podem ser entendidas como resultado de um ambiente preparado pelas discussões jus-filosóficas de após a II Guerra na Alemanha. Os horrores do regime nacional-socialista, praticados geralmente em obediência a determinações legais, levou a que se pusesse em evidência a dimensão valorativa do Direito, bem como a que se buscasse em outras fontes que não apenas aquela legislativa, os critérios para sua correta aplicação. Por outro lado, o positivismo em suas diversas manifestações trouxe par ao pensamento jurídico uma contribuição definitiva, ao preconizar a sua formulação dentro dos padrões rigorosos e racionais da ciência." [04]

É indiscutível que, em nossa Carta Magna, apesar de não haver consagração expressa, o princípio da proporcionalidade possui normatividade, tendo em vista constituir um princípio positivo não-positivado. É o que sugere Paulo Bonavides, ao deitar atenção sobre o tema. Com a palavra o eminente mestre:

"O princípio da proporcionalidade é, por conseguinte, direito positivo em nosso ordenamento constitucional. Embora não haja sido ainda formulado como ‘norma jurídica global’, flui do espírito que anima em toda sua extensão e profundidade o d 2o do art.5o, o qual abrange a parte não-escrita ou não expressa dos direitos e garantias da Constituição, a saber, aqueles direitos e garantias cujo fundamento decorre da natureza do regime, da essência impostergável do Estado de Direito e dos princípios que este consagra e que fazem inviolável a unidade da Constituição." [05]

A despeito do amplo espectro significativo do princípio em estudo, podemos tentar sintetizar as conclusões atingidas em duas vertentes. A primeira delas diz respeito ao aspecto eminentemente processual do postulado, segundo o qual os indivíduos têm direito a ver-se processado de acordo com normas rituais gerais, abstratas e predeterminadas, dando ênfase, assim, à finalidade protetiva do processo. A outra, de conformação bem mais complexa, consistente em uma noção de proporcionalidade, viabiliza a solução de eventuais conflitos entre normas constitucionais, bem como confere um importante traço axiológico ao sistema, inclusive às garantias formais adrede mencionadas.

Compreendidas essas premissas fundamentais, passar-se-á à parte final deste estudo, na qual será estudado o princípio da isonomia processual, especialmente no que tange às regras processuais diferenciadas dirigidas à Fazenda Pública, à luz do que acaba de ser delineado.


4. O princípio da isonomia processual e a Fazenda Pública

De todos os postulados que decorrem do princípio-mãe, conforme fora exposto supra, merecerá nossa atenção especial o princípio da isonomia processual, uma vez que o objeto deste trabalho é o estudo de alguns aspectos do chamado "direito processual público", ou seja, das normas processuais especiais aplicáveis quando se verifica a atuação do Poder Público em juízo, cuja compatibilidade com o princípio da isonomia é alvo de profundas discussões acadêmicas. O debate cinge-se, basicamente, a aferir se as normas diferenciadas constituem apenas prerrogativas ou verdadeiros privilégios.

Sabemos que, indubitavelmente, o império da lei em um Estado de Direito requer que se reconheça o caráter de generalidade das leis e, logo, de que todos sejam iguais perante elas, igualdade essa decorrente da própria circunstância de haver leis, isto é, normas jurídicas dignas de assim serem designadas. A idéia de lei, por conseguinte, na dicção do eminente professor Willis Santiago Guerra Filho, necessariamente incorpora a idéia de igualdade e repele a idéia de privilégios. [06] O conteúdo político-ideológico do princípio da igualdade, conforme salienta o insigne professor Celso Antônio Bandeira de Mello em clássica obra sobre referido dogma constitucional, denota que "a lei não deve ser fonte de privilégios ou perseguições, mas instrumento regulador da vida social que necessita tratar equitativamente todos os cidadãos". [07] Há, portanto, inegável incompatibilidade entre isonomia e privilégio, o que leva muitos teóricos a afirmar que as normas processuais diferenciadas estabelecidas em favor da Fazenda Pública constituem atentados ao valor supremo da igualdade, pois seriam verdadeiros privilégios do Estado em detrimento do particular. Olvida-se, muitas vezes, entretanto, que o estabelecimento de igualdade perante a lei pressupõe a supremacia do Estado, que avoca para si a superioridade que certos indivíduos ou grupos deles exerciam sobre os demais, concentrando, primeiro, para, em seguida, dissolver, os antigos privilégios, transformados em poderes públicos. Nessa linha, impõe-se, portanto, a distinção entre privilégios e uma outra categoria de discrimen, as prerrogativas, que decorrem de uma situação de superioridade necessária ao exercício de uma função pública, a qual não se exerce por interesse próprio ou exclusivamente próprio, mas por interesse público.

Partindo da concepção aristotélica de igualdade, segundo a qual deve-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, cumpre-nos investigar a proporcionalidade e razoabilidade dos critérios de diferenciação adotados pelo legislador a fim de que se possa verificar se e quando a Fazenda Pública goza de privilégios processuais, ou se, na verdade, tratam-se de prerrogativas essenciais ao desempenho do mister público.

No campo do direito processual, o princípio da igualdade traduz uma idéia de paridade de armas, consistente em dar a ambas as partes as mesmas oportunidades e os mesmos instrumentos processuais para que possam fazer valer os seus direitos e pretensões. Ocorre, todavia, que, concebendo-se a isonomia em sua acepção substancial, essa paridade não implica uma identidade absoluta entre os poderes reconhecidos às partes de um mesmo processo e nem, necessariamente, uma simetria perfeita de direitos e obrigações. Muito pelo contrário, pois o que importa é que as diferenças de tratamento sejam justificáveis racionalmente, à luz de critérios de proporcionalidade, e de modo a evitar, seja como for, que haja um desequilíbrio indevido em prejuízo de uma das partes. É importante que se perceba que, apenas no momento em que forem dados tratamentos diversos a sujeitos diferentes, atingir-se-á o princípio da igualdade em sua acepção substancial, uma vez que uma isonomia meramente formal não se coaduna com a ideologia do Estado Democrático de Direito.

Desta feita, é curial analisar a situação de supremacia, conforme dantes referido, em que se situa o Poder Público, de forma que se possa verificar a constitucionalidade das distinções legais.

O regime jurídico-administrativo, conforme é sabido, erige-se sobre dois pilares: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse público. O primeiro deles representa verdadeiro axioma do moderno Direito Público e proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. O segundo significa que, sendo interesses qualificados como próprios da coletividade, não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sobre eles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los, o que é, diga-se de passagem, também um dever.

Nesse contexto é que exsurgem as chamadas prerrogativas processuais da Fazenda Pública, uma vez que, caso não fossem conferidas determinadas normas especiais, nem fossem criados determinados institutos, o interesse público não receberia a proteção consentânea com os princípios típicos do Estado Democrático. Observa-se, claramente, que o uso de prerrogativas está relacionado, indissociavelmente, ao atingimento de finalidade pública, o que evidencia seu caráter eminentemente instrumental, afastando, assim, em nosso entendimento, a natureza privilegiadora apontada por muitos. É fundamental, porém, que, tanto na criação, quanto na aplicação de ditas prerrogativas, os valores constitucionais aparentemente conflitantes sejam ponderados à luz do "substantive due process", de maneira a garantir a incolumidade da ordem jurídica.

Destaca, com pena de ouro, o mestre Nelson Nery Jr., a importância dos interesses defendidos pela Fazenda Pública como critério de discrimen apto a realizar a isonomia material:

"Tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais é a substância do princípio da isonomia. A desigualdade dos beneficiários da norma do art. 188 do CPC em relação ao litigante comum estaria no interesse maior que a Fazenda Pública representa no processo. Os direitos defendidos pela Fazenda são direitos públicos, vale dizer, de toda a coletividade, sendo, portanto, metaindividuais." [08]

Ainda que não bastasse o regime de Direito Público incidente no caso, justificam as normas fazendárias especiais as peculiaridades existentes na atuação judicial do Poder Público, que impõem tratamento diferenciado a fim de que se possa ver efetivado o princípio da isonomia, considerado de forma substancial, e não meramente formal, garantindo-se, assim, a tão almejada paridade de armas.

A atuação judicial das pessoas jurídicas de Direito Público é marcada por peculiaridades que merecem ser consideradas, ora decorrentes da complexidade das lides levadas a juízo, ora advindas da importância dos interesses que defendem.

Como se não bastassem razões de índole puramente processual, outros aspectos devem ser racionalmente ponderados.

O órgão de representação judicial de um ente público atua nas mais diversas espécies de demanda, vez que realiza a defesa judicial de todos os órgãos despersonalizados da Administração Pública, o que implica a necessidade de atuação conjunta entre a procuradoria e o(s) órgão(s) ligado(s) à causa. De forma que, em razão da complexidade fática, bem como da inevitável burocracia a que se submetem esses procedimentos dentro da própria Administração, na esmagadora maioria das vezes, a prática demonstra que, transcorridos 15 dias – prazo normal para contestação – da citação da pessoa jurídica de direito público, o seu procurador judicial sequer teve acesso aos subsídios fáticos para a elaboração da resposta. É manifestamente diferente, pois, a situação do Poder Público, enquanto litigante, quando comparado ao particular, o que justifica o tratamento diferenciado.

Respalda o raciocínio até aqui exposto a lúcida lição do professor pernambucano Leonardo José Carneiro da Cunha:

"As ‘vantagens’ processuais conferidas à Fazenda Pública revestem o matiz de prerrogativas, eis que contêm fundamento razoável, atendendo, efetivamente, ao princípio da igualdade, no sentido aristotélico de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual." [09]

Pretender, portanto, que a atuação judicial do Poder Público se dê nas mesmíssimas condições em que se dá a atuação do particular representa aversão à idéia de isonomia materialmente considerada.


5. Conclusão

Percebemos, no transcorrer do estudo, a inafastável incidência de princípios e valores bem peculiares ao Direito Público, que impõem, inevitavelmente, importantes adaptações ao direito processual. É sob este ponto de vista que se deve enfocar a questão das diferenças estabelecidas em benefício da Fazenda Pública, de forma a se conseguir afastar, racional e cientificamente, as veementes críticas que são feitas às mesmas, consideradas por muitos verdadeiros privilégios processuais do Poder Público e, portanto, destoantes da noção de isonomia que norteia o Estado Democrático de Direito. Ocorre que, conforme já fora salientado, a supremacia do interesse público, como princípio básico viabilizador de uma convivência harmônica e digna, coloca o Estado em uma situação de superioridade para que possa atuar no sentido de cumprir suas finalidades, especialmente a de reduzir as desigualdades entre os administrados. Desta feita, em nosso modesto sentir, tendo em vista as peculiaridades que envolvem a atuação do Poder Público em juízo, bem como o arcabouço principiológico delineado, os diversos institutos e regras que compõem o chamado "Direito Processual Público", não apenas se harmonizam com a Carta Magna, como são indispensáveis à consecução do fim maior da atividade administrativa, qual seja, a tutela do interesse público.


6. Referências Bibliográficas

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001.

CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 2ª edição. São Paulo: Dialética, 2005.

DIDIER JR., Fredie Souza. Direito Processual Civil, vol I. 5ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2005.

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª edição. São Paulo: CELSO BASTOS EDITOR, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002.

_________. Curso de Direito Administrativo. 17ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004.

NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição. São Paulo: RT, 2004.


Notas

  1. DIDIER JR., Fredie. Direito Processual Civil, vol I. 5ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2005, p. 25.
  2. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 519.
  3. NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição. São Paulo: RT, 2004, p. 60.
  4. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª edição. São Paulo: CELSO BASTOS EDITOR, 2003, p. 74.
  5. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª edição. São Paulo: Malheiros, 2001, p.396.
  6. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3ª edição. São Paulo: CELSO BASTOS EDITOR, 2003, p. 134.
  7. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 2002, p.10.
  8. NERY JR., Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8ª edição. São Paulo: RT, 2004, p. 79.
  9. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em Juízo. 2ª edição. São Paulo: Dialética, 2005, p. 30.
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Sobre o autor
Gustavo Leonardo Maia Pereira

Procurador Federal em exercício na Coordenação de Tribunais Superiores da Procuradoria-Geral Federal. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Especialista em Direito Processual Civil. Ex-Procurador do Estado de Goiás. Ex-Coordenador de Tribunais Superiores da PGF/AGU. Ex-Assessor Legislativo da Secretaria-Geral da Presidência da República. Ex-Chefe Adjunto da Assessoria Jurídica junto à Secretaria de Aviação Civil da Presidência da República.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Gustavo Leonardo Maia. A ordem constitucional e as prerrogativas processuais da Fazenda Pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2722, 14 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18028. Acesso em: 28 mar. 2024.

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