Tem-se, na atualidade, a perspectiva da entrada em vigor de um novo código de processo civil – de acordo com o texto do Projeto de Lei n° 166/2010, encaminhado ao Senado para aprovação. O objetivo central do Projeto é estabelecer uma nova sistemática processual, voltada para a simplificação do procedimento e, conseqüentemente, para uma menor duração da lide.
Nesse diapasão, o objetivo deste breve ensaio é o de discorrer, em linhas gerais, a respeito da trajetória legislativa de reformas parciais do Código Buzaid (CPC/1973), trazendo a nossa posição sobre a necessidade de um novo CPC.
O Código Buzaid (CPC/1973), substituindo o modelo defasado de 1939, foi enaltecido desde o seu surgimento pela cientificidade de suas disposições. A partir dele, restou contruído sistema coerente e racional, de acordo com a melhor doutrina e legislação alienígica – notadamente alemã e italiana –, embebidas nas concepções do Processualismo (corrente científica que destacava a autonomia do direito processual na Europa), vigentes no Velho Continente do final do século XIX e início do século XX.
Tanto é verdadeira a assertiva que passou a se cogitar de reformas estruturais no sistema processual pátrio somente em 1994, com o desenvolvimento das tutelas de urgência, objeto de alteração do art. 273 do CPC, a partir do seu caput – sendo que em período próximo seguiram-se alterações na seara recursal (com destaque ao regime do Agravo), nas obrigações de fazer (de não fazer e de entrega de coisa, com introdução dos arts. 461 e 461-A no CPC), seguindo para mudanças na parte de execução (especialmente a partir da implementação do art. 475-A e ss.) e aproximação das linhas de contato das cautelares com as tutelas de antecipação do mérito (com a introdução do § 7° no já aludido art. 273 do CPC).
Passaram-se, então, mais de vinte anos do Código Buzaid e a própria modificação da sociedade, repercutindo no processo, determinava a obrigatoriedade de retificações no modelo originário. É de se reparar que essas grandes alterações no CPC/1973 não se deram imediatamente após a entrada em vigor da novel carta constitucional, em 1988, o que aponta, s.m.j., para certa naturalidade do fenômeno de compatibilização da ordem infraconstitucional processual com a ordem constitucional que emergia – tudo a depor favoravelmente ao modelo vigente a partir da década de 70. E, de fato, principalmente pelo art. 5° da CF/88 foram positivados determinados valores/princípios processuais que não estavam, quem sabe, devidamente explicitados no Código Buzaid, mas que nem por isso eram solenemente ignorados em período anterior à vigência da última Carta Magna.
Não houve, portanto, qualquer ruptura dramática no CPC/1973 com a entrada em vigor da CF/88, e nem mesmo com as reformas ao código desenvolvidas posteriormente. Grosso modo, o que se presenciou foi uma adaptação do modelo Buzaid, com forte carga de defesa à segurança jurídica (rectius: certeza jurídica), às reivindicações contemporâneas de um processo efetivo, mais preocupado com o resultado do que com a forma utilizada.
Na grande e eterna tensão entre Segurança e Efetividade, ao que parece formou-se a convicção de que o CPC/1973 tinha um sistema processual bem acabado/articulado, mas demasiadamente burocrático (com as suas estanques fases de conhecimento, execução e cautelares) – e que, por isso, não atingia em boa parte dos casos os seus propósitos derradeiros, em tempo útil.
Assim, a referida onda reformista, implementada já na primeira metade da década de 90, voltava-se par a busca incessante da efetividade – o que, ao fim e ao cabo, confirmou-se com a inclusão, já em 2004, do inciso LXXVIII no art. 5° da CF/88 (a tratar do direito do cidadão brasileiro à razoável duração do processo).
Por certo, cabe neste momento o registro, a onda reformista que continua a pleno vapor, merece tópica crítica, ao passo que, ultrapassando certos limites, joga-se desenfreadamente à busca da efetividade, trazendo prejuízos sensíveis, e indevidos, à segurança jurídica – entendida com maior certeza do direito a ser reconhecido judicialmente. Na mesma linha, aliás, segue o Projeto do novo CPC, que na sua primeira grande parte principiológica (arts. 1° a 11) confere evidente maior prestígio à linha da efetividade, nos termos explícitos do art. 4°: "as partes têm direito de obter em prazo razoável a solução integral da lide, incluída a atividade satisfativa".
Se, em um extremo, podemos dizer que o CPC/1973 não tinha como princípio central a efetividade; por outro lado, não é exagero afirmar que as reformas propostas ao modelo Buzaid não demonstram maiores preocupações com a segurança jurídica, impondo, como conseqüência, que a decisão judicial prolatada pelo Estado-juiz tenha maiores chances de não contribuir decisivamente para a pacificação social e para a própria garantia de legitimidade do decisum perante os jurisdicionados – entendendo-se que a segurança jurídica, no processo, determinaria uma maior investigação da matéria em debate, impondo uma maior certeza do direito a ser declarado/constituído pelo agente político do Estado.
Exemplo oportuno desse movimento de retificação, acolhido pelo Projeto do novo CPC, em que se privilegia a efetividade em detrimento da segurança, encontra-se no trato da matéria prescricional. Passou a ser matéria de ordem pública, a partir de 2006 (art. 219, § 5° do CPC), autorizando assim que o juiz pudesse declará-la a qualquer tempo, mesmo que não requerida pela parte ré em peça defensiva. O prisma da modificação é todo direcionado para a efetividade e para a conseqüente célere extinção do processo, com julgamento de mérito (art. 269, IV do CPC). Agora, pensando no princípio da segurança jurídica, não se poderia cogitar no interesse do réu em não ter reconhecida, de plano, a prescrição e sim em ter, após adequada instrução, uma sentença de mérito propriamente dita, favorável as suas pretensões (art. 269, I do CPC)? Sim, pois haveria, ao menos, um substrato ético (questão moral) que indicaria para o interesse do réu de ver analisado o mérito da causa pelo Poder Judiciário, a fim de ter publicada uma sentença de improcedência (art. 269, I, Versus art. 269, IV, CPC).
Pois bem. Com a devida ressalva feita ao movimento de retificação, entendemos que as reformas são indispensáveis e legitimam a manutenção da estrutura processual montada em 1973. Ademais, não nos parece que o Código Buzaid reformado tenha se tornado uma verdadeira "concha de retalhos", a fim de induzir a criação de um novo CPC – mesmo porque não há qualquer dado estatístico que aponte para o anacronismo do sistema processual motivado pelo texto da lei, e inclusive que um suposto anacronismo possa ser resolvido simplesmente com a implementação de novel código processual.
Eis a razão pela qual não acreditamos que houvesse a necessidade de um novo código, já que permanece viável a interpretação do sistema processual montado diante da realidade/contemporaneidade constitucional – e mesmo porque na própria exposição de motivos não aparecem dados objetivos que apontem para a necessidade de movimento de absoluta retificação. Seria mais indicado, no nosso sentir, prosseguir o estudo das reformas do CPC/1973, pautando-se o estudo pela preocupação com questões da efetividade do rito, mas sem deixar de levar em consideração a segurança jurídica – entendida em sintonia com o devido processo legal, o que trataria de garantir, em última instância, a legitimidade da decisão a ser pronunciada pelo Estado-juiz.
Por fim, não nos animamos sobremaneira com a mudança de código processual porque entendemos que os reais fatores que determinam a lentidão na prestação jurisdicional não estão na estrutura da lei (rectius: na letra do código de processo). Sem o objetivo de esgotar a matéria, há de se deixar registrado que a prática forense realmente nos revela que "os prazos mortos" são um dos grandes, senão o maior, responsável pela angustiante paralisia dos feitos, em qualquer grau de jurisdição – estando eles diretamente relacionados com a falta de verbas orçamentárias para o judiciário, bem como a má administração daquelas repassadas dentro mesmo desse poder estatal, daí resultando uma relação inversamente proporcional entre o número de juízes e serventuários admitidos e o número de demandas que inundam os foros.Vê-se, nesses contornos, que o verdadeiro problema, obstaculizador da efetividade do processo, é antes político/administrativo do que técnico/jurídico, sendo certo, a partir dessa premissa, que não se obterão melhorias significativas em termos de agilização da prestação jurisdicional com reformas processuais tópicas ou mesmo implementação de um novo texto processual.
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