Resumo: A liberação ou destinação dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza, utilizados na prática de uma infração administrativa ambiental pelo juízo criminal, configura-se medida inconstitucional, em face da violação do princípio da separação dos poderes e independência de instâncias e não possuirá qualquer repercussão no âmbito administrativo. Só a própria Administração Pública pode proceder à devolução ou destinação dos bens apreendidos, a não ser que a legalidade da apreensão tenha sido questionada judicialmente, em obediência ao princípio da inafastabilidade de jurisdição, o que, no entanto, não pode se dar no âmbito do processo criminal e sim perante o juízo cível competente.
Palavras-Chave: Apreensão Administrativa. Liberação pelo juízo criminal. Inconstitucionalidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Violação do principio da independência de instâncias.
A infração administrativa ambiental é conceituada como toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente, nos termos do art. 70 da mencionada Lei n° 9.605/98.
No âmbito federal, a infração administrativa ambiental encontra respaldo, fundamentalmente, além da referida Lei n° 9.605/98, no Decreto n° 6.514/2008, de 22 de julho de 2008, que revogou o Decreto n° 3.179/99.
A Lei n° 9.605/98, intitulada Lei de Crimes Ambientais, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências, trazendo diversos tipos penais, que também se consubstanciam em infrações administrativas ambientais.
A Constituição Federal de 1988 em seu § 3º do art. 225, por seu turno, dispõe que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
Nesse contexto, a prática de determinada conduta que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente, pode resultar na possibilidade de uma sanção penal, administrativa e civil.
No entanto, as esferas criminal, civil e administrativa são independentes, como regra. É o princípio da incomunicabilidade/independência das instâncias, que não é absoluto, pois haverá a repercussão quando a decisão criminal absolver o réu por inexistência do fato ou negativa de autoria.
Cumpre destacar que o artigo 25 da Lei 9.605/98 prescreve que verificada a infração, serão apreendidos seus produtos e instrumentos, lavrando-se os respectivos autos.
Já o artigo 72, da referida lei, descreve as sanções impostas como punição pelas infrações administrativas, prevendo dentre elas a apreensão, senão vejamos:
"Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:
IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;
O Decreto 6.514/2008, no inciso IV do art. 3°, prevê a apreensão como sanção, em decorrência da prática de infrações administrativas e no inciso I do art. 101, como medida administrativa, a ser aplicada pelo o agente autuante, no uso do seu poder de polícia, com o objetivo prevenir a ocorrência de novas infrações, resguardar a recuperação ambiental e garantir o resultado prático do processo administrativo.
Como se vê, à Administração Pública Federal, no exercício de seu poder-dever de fiscalização, incumbe a apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração administrativa ambiental.
Cumpre destacar, como nos ensina Curt Trennepohl [01], que auto de infração representa o resultado do exercício do poder de polícia administrativa do Estado, caracterizando-se por ser uma notificação de ilícito, em que se noticia ao autuado que está sendo acusado da prática de um ilícito.
Assim, nos termos da Instrução Normativa n° 14/2009 do Instituto Brasileiro do meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, praticada uma conduta ou atividade que se enquadra como infração administrativa ambiental, possui a Administração Pública um prazo para apurar o cometimento dessa infração, proceder à lavratura do auto de infração e/ou aplicar medidas administrativas e por meio de decisão da autoridade julgadora competente, homologar as sanções e medidas administrativas imputadas.
Nesse contexto, praticada uma infração administrativa ambiental, em que tenha sido utilizado animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza, dar-se-á a apreensão destes, lavrando-se o termo de apreensão que deverá identificar, com exatidão, os bens apreendidos, devendo constar valor e características intrínsecas [02].
Outrossim, se o bem apreendido, por qualquer razão, restar armazenado no tempo ou em condições inadequadas de armazenamento, o fato deverá constar do Termo de Apreensão e a destinação dos bens, nesta condição, deverá ser realizada com prioridade [03].
O Decreto 6.514/2008 [04] prevê também que após a apreensão, a autoridade competente, levando-se em conta a natureza dos bens e animais apreendidos e considerando o risco de perecimento, procederá da seguinte forma: a) os animais da fauna silvestre serão libertados em seu hábitat ou entregues a jardins zoológicos, fundações, entidades de caráter cientifico, centros de triagem, criadouros regulares ou entidades assemelhadas, desde que fiquem sob a responsabilidade de técnicos habilitados, podendo ainda, respeitados os regulamentos vigentes, serem entregues em guarda doméstica provisória; b) os animais domésticos ou exóticos mencionados no art.103 poderão ser vendidos; c) os produtos perecíveis e as madeiras sob risco iminente de perecimento serão avaliados e doados.
Como se vê, quando da homologação do auto de infração, a autoridade competente, decidirá quanto à sanção ou medida administrativa de apreensão, momento em que se observará se já houve a destinação, e, caso não tenha havido, observando-se a origem e o uso lícito dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração, poderá ou não devolvê-los, mediante decisão devidamente fundamentada.
Assim, na instância administrativa, incumbe à Administração Pública, proceder à apreensão e posteriormente decidir, de acordo com o ordenamento jurídico, quanto à devolução ou não dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração.
No entanto, grande parte dos tipos administrativos previstos no Decreto 6.514/2008 encontra correspondente na Lei 9.605/98, que traz os tipos penais.
Nesse contexto, praticada uma conduta que se consubstancia em uma infração administrativa ambiental e que também constitui em tese crime, a Administração Pública procede à comunicação ao Ministério Público, encaminhando-lhe cópia do auto de infração. Ato contínuo, o Ministério Público, normalmente, apresenta sua denúncia perante o juízo competente.
Contudo, bastante comum, é a destinação feita no âmbito do processo criminal quanto aos bens apreendidos na esfera administrativa.
No entanto, tal medida revela-se inconstitucional, pois viola o princípio da independência das instâncias, bem como o princípio da separação dos poderes.
A inconstitucionalidade se revela quando, ao julgar a materialidade e autoria do delito penal, o juiz estadual ou juiz federal (quando as infrações penais forem praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesses da União e suas entidades autárquicas [05]), procede com a destinação dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza que foram apreendidos pela Administração Pública.
Não se deve confundir a situação acima com a possibilidade dos magistrados analisarem a legalidade da apreensão do bem realizada pela Administração Pública, em consonância com o princípio da inafastabilidade de jurisdição [06].
Contudo, a análise desta legalidade, não pode se dar no âmbito do processo criminal e sim perante o juízo federal [07] de 1ª instância, em sede de uma Ação Anulatória de Auto de Infração e/ou Termo de Apreensão/Depósito, quando apreensão tenha sido realizada pelo órgão ambiental federal competente.
Esclareça-se aqui que a Lei n° 7735/89 criou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, enquanto autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de exercer o poder de polícia ambiental.
Na Obra ‘Crimes e Infrações Administrativas Ambientais’, em capítulo intitulado ‘Da Apreensão do Produto e do Instrumento de Infração Administrativa ou Crime’, Flávio Dino Costa [08], ao comentar o art. 25 da Lei 9.605/98, enfrenta especificamente essa questão e assevera que concluindo a autoridade administrativa pela apreensão e perdimento dos bens, esta penalidade não pode ser desconstituída pelo Juízo Criminal, senão vejamos:
"Contudo, é inadmissível a tomada de quaisquer das providências enumeradas nos parágrafos do art. 25 sem a observância das regras procedimentais previstas no mencionado art. 71, em face do que dispõe o art. 5º, inciso LIV, da CF.
Note-se que, instaurado tal procedimento e concluindo a autoridade administrativa pela apreensão e perdimento dos bens em questão, esta penalidade não pode ser desconstituída pelo Juízo Criminal, v.g. Por intermédio de decisão proferida em sede de incidente de restituição das coisas apreendidas (art. 118 e seguintes do CPP). Esta conclusão se impõe em decorrência da mencionada autonomia, na medida em que, ao apreciar o mencionado incidente, a autoridade judicial não está se pronunciando sobre a legalidade da apreensão (e consequente perdimento) determinada como sanção ao agente de infração administrativa. E nem poderia fazê-lo, uma vez que o juiz criminal não tem competência para proceder tal exame." [destaquei]
Os nossos Tribunais Superiores também reconhecem a impossibilidade de liberação pelo juízo criminal de bens apreendidos na instância administrativa, senão vejamos:
"PROCESSO CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. LIBERAÇÃO DE VEÍCULO APREENDIDO EM AÇÃO PENAL. PENA DE PERDIMENTO DECRETADA PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA. IMPETRAÇÃO ANTERIORMENTE AJUIZADA CONTRA ATO DO DELEGADO DA RECEITA FEDERAL. NOVA IMPETRAÇÃO CONTRA ATO DO JUIZ FEDERAL. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. SEGURANÇA DENEGADA.
(...)
8. Correto o entendimento da decisão judicial atacada, encampando a manifestação ministerial, no sentido de que a apreensão determinada pela autoridade administrativa deve ser atacada pelo interessado na via cível adequada e assim, não há qualquer ilegalidade ou abuso de poder na decisão atacada." [destaquei] (TRF 3ª Região -MS 93030748271 - PRIMEIRA SEÇÃO- DJF3 DATA:21/11/2008)
"PENAL - INCIDENTE DE RESTITUIÇÃO DE COISA APREENDIDA - DEFERIMENTO EM SEDE CRIMINAL - PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO - VINCULAÇÃO - IMPROVIMENTO DO RECURSO. 1.- Ao juiz que atua no feito criminal cumpre apenas decidir sobre a liberação dos bens quanto a apreensão processual, sendo-lhe vedada a manifestação sobre a constrição administrativa, matéria que refoge à sua competência. 2.- O ato administrativo que mantiver a apreensão em sede fiscal somente poderá ser examinado pelo judiciário se acionada a via própria. 3.- Improvimento do recurso." [grifo nosso] (TRF 3ª Região - ACR 98030792490- SEGUNDA TURMA- DJU DATA:16/08/2001 PÁGINA: 1359)
Nesse sentido, cumpre destacar que a Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA aprovou a Orientação Jurídica Normativa de n° 19/2010 referente a apreensão e perdimento de veículos/embarcações, senão vejamos:
"Frisa-se que a aplicação da sanção administrativo-ambiental independe da solução de processo criminal ou civil, em decorrência da independência dos Poderes. Como grande parte dos tipos penais previstos na LCA constitui, também, infrações administrativas ambientais, na hipótese de existir inquérito policial ou ação penal relativos ao mesmo delito, a concretização da decisão administrativa independerá de autorização judicial.
A infração ambiental, portanto, pode repercutir juridicamente em três esferas distintas e independentes, de forma que o infrator pode ser responsabilizado, por uma mesma conduta, penal, administrativa e civilmente, alternativa ou cumulativamente. Assim, as sanções que porventura forem aplicadas ao infrator deverão ser cumpridas separadamente. Trata-se do princípio geral da autonomia das instâncias, que é pacificamente sufragado pela legislação pátria¹, pela doutrina de direito administrativo² e ambiental³ e pela jurisprudência.
Conclui-se que a devolução de bem apreendido não pode ocorrer no curso de processo criminal que apenas enfrentou o aspecto penal da conduta, e do qual o IBAMA sequer participou." (destaque no original)
Cumpre registrar que as Orientações Jurídicas Normativas da Procuradoria Federal Especializada junto ao IBAMA representam o entendimento consolidado de uma determinada tese jurídica, sendo que a sua adoção é de natureza obrigatória, podendo, no entanto, o Procurador ressalvar seu entendimento pessoal.
Diante do exposto, tem-se que a liberação ou destinação dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na prática de uma infração administrativa ambiental, no âmbito penal, pelo juízo criminal, configura-se medida inconstitucional em face da violação do princípio da separação dos poderes e independência de instâncias e não possuirá qualquer repercussão no âmbito administrativo.
Assim, diante de uma apreensão pela Administração Pública em face do cometimento de infração administrava ambiental, só a própria Administração Pública pode proceder à devolução ou destinação dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração.
Destaque-se, por fim, que tal situação não se confunde com a possibilidade do Poder Judiciário analisar a legalidade da apreensão realizada pela Administração Pública, em consonância com o princípio da inafastabilidade de jurisdição. Contudo, a análise desta legalidade, não pode se dar no âmbito do processo criminal e sim perante o juízo cível competente, no âmbito de uma ação própria em que se questione tal legalidade.
Notas
- TRENEPOHL, Curt, Infrações Contra o Meio Ambiente – Multas e Outras Sanções Administrativas, Belo Horizonte: Fórum, 2006, pg.38.
- Art. 31 da IN n° 14/2009 do IBAMA.
- §2° da IN n° 14/2009 do IBAMA.
- Art. 107 e incisos do Decreto 6.514/2008.
- Art. 109, IV da Constituição Federal de 1988.
- Art. 5°,XXXV da Constituição Federal de 1988.
- Art. 109, I, Constituição Federal de 1988.
- COSTA, Flávio Dino, Crimes e Infrações Administrativas Ambientais: Comentários à Lei nº 9.605/98, Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 125.