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Filiação extramatrimonial e a prevalência do direito à identidade.

O exemplo de uma lei peruana

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Propõe-se uma nova lei para estabelecer um processo mais acessível e célere para a fixação judicial de paternidade, fugindo dos expedientes procrastinatórios.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Situação no ordenamento jurídico peruano; 2. A suposta inconstitucionalidade da Lei 28457 de 8/1/2005; 2.1 O direito à identidade; 2.2 A suposta afronta aos direitos da incolumidade física, ao devido processo e à liberdade, e a importância do DNA ; 3. A concorrência de direitos fundamentais, a solução e o melhor interesse da criança; 4. Considerações Finais; 5. Anteprojeto de Lei; 6. Justificativa; Referências.


Introdução

A preocupação em descobrir a verdade biológica sempre foi de pais e filhos, mas nunca foi uma preocupação da lei. Investigar a paternidade, afinal, desatende os interesses de sociedades mais conservadoras. A certeza da maternidade e incerteza da paternidade levaram à instituição da presunção da paternidade com relação aos filhos concebidos durante o casamento.  Ao fim, nada mais do que a presunção da fidelidade da mulher. Daí a extrema valorização da virgindade feminina e a exigência de uma postura recatada, como atributos de mais valia.[1] A abstinência sexual sempre foi uma qualificadora de sua dignidade e honradez.[2] No homem sempre foi valorizado o livre exercício da sexualidade, tanto antes como fora do casamento, como elemento de afirmação de sua virilidade.[3] Na seara da filiação, o direito sempre se valeu de presunções, pela natural dificuldade em se atribuir a paternidade ou a maternidade a alguém ou então em óbices baseados em preconceitos históricos oriundos da hegemonia da família patriarcal e matrimonializada.[4]

 A concepção da família como uma instituição sacralizada, confere à mulher a condição de "rainha do lar" e lhe atribuiu a responsabilidade pelos filhos.[5] O interesse pela preservação da estrutura familiar sempre resistiu em admitir a identificação dos filhos fruto de relações extramatrimoniais.[6] Com o passar dos tempos, passou-se a admitir a possibilidade de se reconhecer os infantes nascidos fora do casamento, o direito de investigar a paternidade, mas condicionada a uma prova "robusta". Tal posicionamento possuía sustentáculo na tese de que, nas relações furtivas ou nas relações de concubinato, ainda que coincidentes com a concepção do filho, "não prevalecia uma natural presunção de paternidade, embora fosse consenso geral naqueles tempos ser sempre certa a maternidade".[7]

Mesmo em época de pleno desenvolvimento da engenharia genética, que permite identificar com certeza quase absoluta a verdade biológica, permanecem presunções na lei.[8]  E, ainda assim, as demandas envolvendo a busca de identificação do vínculo de filiação em geral dispõem do rito ordinário, com ampla dilação probatória. É extremamente difícil conceder, pro exemplo, direito a alimentos enquanto tramita a ação. A tendência é não permitir a cumulação da ação investigatória com o pleito de alimentos. Tal vedação dispõe de um resultado muito perverso pois, enquanto tramita a ação o investigante fica totalmente desassistido. E, só depois de ultimada a ação é que pode buscar alimentos, obrigação, no entanto, que só começa a vigorar a partir da citação do réu. Com isso, o filho permanece por muitos anos sem o direito de viver, caso não fosse a genitora assumir sozinha o encargo de prover a subsistência do filho.


1.         Situação no ordenamento jurídico peruano

Como na maioria dos países do mundo, também o Código Civil peruano ( cfr. arts. 361 e 362) prestigia a relação de paternidade por presunção legal: o pai é o marido da mãe. Pela presunção pater is est[9], prevalece a paternidade fictícia sobre a verdade biológica. Daí as normas reguladoras das relações paterno-filiais favorecerem os varões, concentrando na figura materna a responsabilidade pelos filhos havidos fora do casamento.[10]

Esta tendência sempre foi evidente no Código Civil peruano onde figura a assertiva de que o filho nascido durante o matrimônio ou dentro dos trezentos dias posteriores à dissolução do casamento é considerado filho do ex-cônjuge.[11] É considerado matrimonial o filho, ainda que a mãe declare em sentido contrário ou que a mesma seja condenada como adúltera.[12] Diferente é o posicionamento do Direito português pois, o art. 1.832 estabelece que a mulher pode fazer a declaração de nascimento com a indicação de que o filho não é do marido, cessando, assim, a presunção de paternidade.

Enquanto por um lado, relativamente aos filhos matrimoniais, existe a presunção de paternidade, os filhos nascidos fora do casamento dependiam de reconhecimento ou de sentença declaratória de paternidade.[13][14] E até se chegar a tal sentença, imensurável era o calvário, em virtude do processo de reconhecimento filiação extramatrimonial, recheado de infindáveis trâmites, desarmado da força probatória da genética ante o estado de indefesa, de impotência das crianças sem pai, desconhecedores de sua própria identidade. A diferença relativamente ao processo de conhecimento pelo qual se regia esta filiação é abismal.

Com o escopo de mitigar o vultuoso número de infantes sem pai, e a conseqüente quantidade de mães solteiras, resultante do ordenamento jurídico vigente, em boa hora foi editada a Lei 28457, de  8/1/2005,  que instituiu um meio mais acessível para a fixação judicial de paternidade, onde foram reduzidas etapas, atos processuais, prazos, etc.[15] 

Como certifica Enrique Rospigliosi este processo é um produto peruano, genuinamente novo e original em matéria processual, em defesa de um dos direitos substantivos mais humanos que existem. Trata-se de processo especial ex code, não abrangido pelo Diploma Processual Civil. Nenhum procedimento cumpria com  satisfação condigna a pretensão de paternidade. [16]

É a materialização de moderna norma legal que se socorre dos atuais métodos científicos de identificação da paternidade através dos marcadores genéticos. Por meio do exame de DNA é possível identificar o vínculo biológico da filiação com um índice de certeza quase absoluto.  Deste avanço apropriou-se o legislador para assegurar o direito à identidade, direito fundamental e primeiro de todo o cidadão. Daí a nova lei que admite somente um meio de oposição: a submissão ao exame de DNA, cuja força probatória é a única que origina convencimento pleno do magistrado. Todavia, injustificadamente a lei prevê unicamente o reconhecimento da paternidade extramatrimonial, deixando de fora a menos freqüente, mas não inexistente busca pela identidade da mãe, que deve ser buscada pelo procedimento constante no Código Civil.

O processo ofertado é célere e apresenta uma solução ajustada à questão da paternidade extramatrimonial, desviando-se dos óbices ofertados pelos extensos e dispendiosos processos de paternidade. Sobre a questão da celeridade, afirma Enrique Varsi Rospigliosi que tal processo especial de filiação acaba por restringir os atos processuais meramente dilatórios. Põe-se termo também à negativa para submeter-se à prova (sempre se encontrava alguma), intimações, argumentações, sustentações orais, também não procedendo à ab-rogação (ao iniciar o processo perante um Juiz de Paz Letrado e concluir perante o Especializado). [17]

Com o surgimento da nova lei, aquele que tenha interesse em obter a declaração de paternidade pode requerer a um Juiz de Paz Letrado que despache resolução patenteando a filiação pleiteada.[18] Se o demandado não formular a oposição ou se omitir, no prazo de dez dias, a contar da citação, ou se for julgada improcedente a oposição apresentada para não submeter-se à perícia, ocorre a conversão do mandado em declaração judicial de paternidade.[19] O custo da prova é abonado pelo demandante no momento em que forem ofertadas as amostras necessárias ou poderá ser requerido o auxílio judicial.[20]


2.         A suposta inconstitucionalidade da Lei 28457 de 8/1/2005

A constitucionalidade da lei peruana foi questionada.[21] Entretanto, a Sala de Direito Constitucional e Social Permanente da Suprema Corte (Sala de Derecho Constitucional y Social Permanente de la Corte Suprema), pronunciou-se no sentido de proteger o direito à identidade dos menores não reconhecidos pelos seus pais, relativamente àqueles que se recusam a submeter-se ao exame de DNA, não vislumbrando qualquer afronta à liberdade, incolumidade física do demandado ou ao devido processo. A normativa consagra o direito à identidade, reconhecido como direito fundamental pela Lei Maior peruana, em seu art. 2º, n.1.[22]

2.1      O direito à identidade

No plano internacional a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de 1989,[23]  em seu art. 8º, n.1, assinala que os Estados-Partes comprometem-se a respeitar o direito da criança e a preservar a sua identidade, incluindo a nacionalidade, o nome e relações familiares, nos termos da lei, sem ingerência legal.[24] Desta maneira, de acordo com o art. 7º, n. 1 da Convenção e o art. 6º do Código da Criança e do Adolescente peruano, o direito à identidade engloba o direito a possuir um nome, a adquirir uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus progenitores e ostentar seus nomes.[25]

É indubitável que é um enorme embaraço e até uma possível sensação de amargura saber que é filho de pai desconhecido ou saber quem é seu genitor mas, não compreender os motivos da  repulsa daquele que se nega a reconhecer a própria cria e, assim, se desvincular das obrigações resultantes de tal reconhecimento. Nas palavras de Rolf Madaleno:

A origem genética é direito impregnado no sangue que vincula, por parentesco, todas as subseqüentes gerações, inexistindo qualquer fundamento jurídico capaz de impedir que o homem investigue a sua procedência e que possa conhecer a sua verdadeira família e saber quem é sei pai.[26]

Indispensável também fazer menção à Declaração dos Direitos da Criança de 1959, que ostenta como 3º princípio a assertiva de que, desde o nascimento toda criança terá direito a um nome e a uma nacionalidade. Importante relembrar que a Declaração constituiu o natural reconhecimento de vetores e valores diretivos, não constituindo, entretanto, uma fonte de obrigação para os países, revelando-se como uma orientação. A Convenção de 1989 sim configurou um instrumento de caráter imperativo, gerador de uma responsabilidade formal e solidificado para os Estados.[27]

2.2       A suposta afronta aos direitos da incolumidade física, ao devido processo e à liberdade, e a importância do DNA

Não se visualiza na lei atentado ao devido processo, tendo em vista que o demandado tem a possibilidade de opor-se à demanda, submetendo-se ao exame de DNA. Tal assegura o seu direito de defesa, permitindo provar que não é o pai do menor, mediante o método probatório mais eficiente nos tempos hodiernos.[28]

Em decorrência dos avanços científicos, a possibilidade de sua identificação com índices quase absolutos de certeza não pode ser desprezada para manter uma certeza obtida por meio fictício. Até o advento do exame de DNA, a paternidade foi afirmada ou rejeitada por provas indiciárias e presuntivas. Nas ações investigatórias brasileiras, a causa de pedir é a concepção.[29]

Na ausência de tal prova, quer a procedência, quer a improcedência da ação baseavam-se exclusivamente em indícios. Comprovado o relacionamento afetivo entre os genitores, presumia-se a mantença de contatos sexuais e a ocorrência da gravidez. De outro lado, a exceptio plurium concubentium, ou seja, a alegação de que a genitora se relacionava sexualmente com outros homens, fazia surgir a dúvida de que o réu poderia não ser o genitor, o que levava à improcedência da ação.

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Felizmente, esse meio de defesa vem perdendo prestígio. Aliás, trata-se de contestação de todo descabida. O juiz, ao fixar os pontos controvertidos sobre que incidirá a prova (de acordo com o art. 451 do CPC brasileiro), simplesmente não deve admitir qualquer referência à vida sexual da mãe do investigante. Inclusive, essa linha de argumentação sustentada pelo réu pode gerar responsabilidade indenizatória por dano moral.[30][31]

Conforme assevera Cristiano Chaves de Farias:

É certo e incontroverso que a ciência jurídica não pode desconhecer e descuidar dos valores da contemporaneidade. Não é possível esquecer os avanços da engenharia genética e a proteção privilegiada da pessoa humana, de modo a garantir o império dos valores tutelados em sede constitucional, impedindo, via de consequência, o perecimento do direito à identidade pessoal e à ancestralidade.[32]

Ademais, a lei não fere o direito à liberdade. Tal afronta inexiste, uma vez que a lei não obriga o demandado a submeter-se a uma coleta de sangue ou qualquer outro material genético para a análise.[33]  Apenas é  estabelecida como condição para a procedência da oposição a submissão ao teste e, somente em caso de inércia injustificada, é declarada a paternidade. Ora, se o demandado tem plena certeza de que não é o pai do filho que lhe é imputado, deve ser o primeiro a querer a realização da perícia, para se livrar da imputação que lhe é feita.[34][35]

Poder-se-ia ainda referir-se a uma afronta ao direito de incolumidade ou integridade física do investigado. Que direito se poderia violar, se o exame de DNA é inofensivo, relativamente à "santidade" do corpo humano?[36] Não se trata de uma inspectio corporis exaustiva, não são necessária agulhadas, as amostras de sangue são dispensáveis. Tecnicamente, somente necessita-se de uma irrisória quantidade de fluidos, secreções corporais, fios de cabelo, ou seja, absolutamente nada que afronte ou lesione o corpo humano.[37] Nas palavras de Enrique Varsi Raspigliosi, "la prueba, con lo expuesto, es mucho menos invasiva en el cuerpo de la persona -a diferencia de lo que sucedía con las otroras pruebas heredobiológicas- por lo que no puede calificarse de traumática".[38] Para doutrinadora portuguesa Paula Costa e Silva:

... qualquer um dos tipos de actos que são necessários à realização dos testes de ADN, incluindo a picada de um dedo para a recolha de sangue, não atinge o núcleo do direito à integridade física; e ainda que se entenda estar perante uma restrição ao mencionado direito, esta é absolutamente proporcionada e adequada, porque implica uma intervenção mínima e visa obter uma decisão judicial sobre filiação que coincida com a realidade, decisão que, em muitos casos, é exigida pelo interesse superior da criança.[39]

Destarte, é descabido admitir a alegação do direito à "intangibilidade" que o demandado sempre alega em seu favor, e a pretensa sacralidade do corpo humano em frente a uma simples picada ou qualquer outra forma de cessão de material genético que levasse a efeito o exame de DNA. Nas palavras do Ministro Francisco Rezek:

Esse direito à incolumidade do investigado era algo pífio demais se confrontado com o interesse que a ação investigatória traduzia: o de apurar-se, sobre a paternidade, a "verdade material"- essa expressão usada em direito penal, que significa a verdade objetiva, a verdade "verdadeira", não uma verdade presumida, não uma verdade resultante de elaborações mentais.[40]  

Há quem sustente a intangibilidade do corpo, afinal, nada mais íntimo e pessoal do que seu próprio corpo. Entretanto, em certos casos tal afirmação deve recuar, de forma a garantir outros direitos, como é o direito à identidade que salvaguarda, emultima ratio, não apenas interesses individuais, mas também interesses públicos e sociais. Afinal de contas, toda criança merece ter um pai.[41]

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Sobre as autoras
Maria Berenice Dias

Advogada especializada em Direito das Famílias e Sucessões. Pós-Graduada e Mestre em Processo Civil. Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Marianna ; DIAS, Maria Berenice. Filiação extramatrimonial e a prevalência do direito à identidade.: O exemplo de uma lei peruana. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2737, 29 dez. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18139. Acesso em: 24 nov. 2024.

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