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A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte

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14/01/2011 às 11:57
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2.4 Princípio da Autotutela administrativa

É mister destacar que, desta forma, não se está olvidando acerca da existência da autotulela administrativa (ou autotutela vinculada), previsto expressamente no art. 53 da Le nº 9784/99 [12]. Por este princípio é sabido, por exemplo, que a própria Administração Tributária pode efetuar a revisão de ofício de um lançamento tributário, em todas as hipóteses previstas no art. 149 do CTN [13].

A jurisprudência pátria, especificamente sobre a possibilidade de interposição de recurso hierárquico ao Ministro da Fazenda, mormente através do posicionamento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a definitividade das decisões prolatadas por órgãos julgadores administrativos, ressalvando, porém, as eivadas de vício ou ilegalidades patentes [14], e desde que respeitados o contraditório e a ampla defesa. No entanto, cabe ressaltar que não é objetivo deste artigo a análise acerca da possibilidade da interposição de recurso hierárquico para o Ministro da Fazenda, mas tão somente do controle judicial efetivo das decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Não merece guarida, ainda, o argumento de alguns no sentido de que admitir o conhecimento de ação desta natureza significaria reconhecer que a constituição do crédito tributário fosse procedida por membros do Judiciário, e que isto violaria a lógica da separação de poderes. O que estiolaria a lógica da separação de poderes, data venia, é justamente admitir que um órgão do poder executivo como o CARF possua poderes jurisdicionais e que qualquer ato administrativo possa se ver livre de um controle judicial sobre sua legalidade (normas-regra) e até mesmo sobre sua juridicidade (normas-princípio).

Assim sendo, reiteramos que merece ser rechaçada a idéia que preconiza que o lançamento tributário, a despeito de ser ato administrativo vinculado, obrigatório, exclusivo, indelegável e que visa à constituição do crédito tributário, seria efetuado pela autoridade judicial. Ocorreria, pelo contrário, tão somente uma espécie de repristinação do lançamento outrora invalidado administrativamente. O que se está a afirmar, veja-se, é que a apreciação judicial (controle judicial) deve sempre ser ressalvada, porquanto é cediço que a invalidação dos atos administrativos cabe tanto à Administração Pública quanto ao Poder Judiciário. Não é outro o sentido da súmula 473 do STF [15].

Ademais, este entendimento encontra-se alinhado com o princípio harmonização processual, de fundamental importância ao direito processual tributário. Este princípio tem como escopo evitar e, eventualmente, corrigir os desacertos tão freqüentes no confronto entre as duas etapas processuais tributárias, a administrativa e a judicial.

Diante do exposto, reitera-se o convencimento de que nenhum ato do poder público poderá ser subtraído do exame judicial, seja de que categoria for e provenha de qualquer agente, órgão ou poder.


2.5 A problemática do polo passivo da ação anulatória fazendária

A partir da premissa acima, no sentido da possibilidade de apreciação judicial das decisões administrativas finais favoráveis ao contribuinte, uma tormentosa questão que se coloca é quem assumiria a condição de réu na ação em que a Fazenda Pública pede a anulação de uma decisão administrativa definitiva.

É indiscutível o fato de que, em âmbito federal, o Conselho de Contribuintes, atual Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Lei nº 11.941/09), não possui personalidade jurídica e, portanto, não poderá ser réu de uma eventual ação do Fisco.

Tanto a administração executiva quanto a administração judicante são meros órgãos administrativos criados por descentralização de atividades em busca de uma maior eficiência. Não se está, portanto, olvidando o fato de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) e a própria Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional são órgãos da União, ambos subordinados administrativamente ao Ministério da Fazenda.

Na esteira deste raciocínio, não há como vislumbrar ainda que as pessoas físicas dos conselheiros e do próprio Ministro da Fazenda possam ser responsabilizadas e, por conseguinte, demandadas neste tipo de ação. Tampouco a União, porquanto restaria configurada uma lide em que autor e réu se confundiriam.

O contribuinte favorecido, por sua vez, poderá alegar ilegitimidade passiva sob o fundamento de que não está resistindo à pretensão fazendária, de que não há, in casu, aclássica noção de "pretensão resistida".

Entendemos, contudo, que esta ação judicial fazendária deve ser enxergada nos mesmos moldes de uma ação rescisória. A referida ação não se amolda, como sabido, na clássica noção de "pretensão resistida" de que tanto se ocupam os processualistas. Como bem ensina Humberto Theodoro Júnior "o réu da ação rescisória será a parte contrária do processo em que se proferiu a sentença impugnada, ou seus sucessores. [16]"

A partir deste ensinamento de Humberto Theodoro, podemos asseverar que a Fazenda Pública, mutatis mutandis, deve ajuizar a referida ação anulatória em face dos próprios contribuintes que se beneficiaram da decisão prolatada pelo órgão administrativo. No caso em debate, fica claro, portanto, que os contribuintes (ou responsáveis tributários) favorecidos da decisão administrativa deverão ocupar o polo passivo desta eventual demanda fazendária.

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Sobre as condições da ação, estamos que não há falar em falta de interesse de agir, uma vez que deverá haver a demonstração de uma ilegalidade ou prejuízo patente ao Fisco, e tampouco se pode agasalhar a alegação de ilegitimidade passiva, porquanto esta ação anulatória estatal deve ser concebida nos moldes da ação rescisória, que também não possui em seu cerne uma pretensão resistida.

Como bem ressalta Arruda Alvim:

"Entre nós não aceitável ou defensável a idéia de que, em certas circunstâncias seria suficiente o processo administrativo para, em função do seu resultado, aceitar-se como definitiva a decisão administrativa, de que não houve lesão. Se é assim, mesmo pendente um processo perante a Administração Pública, será possível rediscutir-se a mesma controvérsia perante o Judiciário, desde que haja a demonstração de possível lesão a direito." [17]

Esta ação anulatória, como vimos, equivaleria à ação rescisória, no sentido de que a Fazenda Pública tencionaria a simples desconstituição da decisão administrativa. Em se considerando procedente o pedido da aludida ação, ocorreria uma verdadeira "repristinação" da validade do lançamento que fora anulado em sede administrativa. Desta forma, não se está afrontando a redação do art. 142 do CTN [18], restando esvaziado o argumento de que o lançamento (ato privativo da Administração) seria praticado por membros do Poder Judiciário.

No concernente à competência do juízo, estamos que esta ação anulatória deve ser ajuizada nas varas de execução fiscal, onde os houver, assim como ocorre em relação às cautelares fiscais.


3 Conclusão

Ante o expendido, e respeitando-se os limites previstos no Parecer PGFN/CRJ nº 1.087/2004, inarredável se mostra a possibilidade do questionamento judicial por parte da Fazenda Pública em face de decisão administrativa favorável ao contribuinte, em homenagem ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, insculpido no art. 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988.

Verificou-se que o princípio do amplo acesso à jurisdição é, de fato, o mais elementar e fundamental das garantias constitucionais, porquanto de nada valeriam os demais direitos e garantias, se não se tivesse a segurança de que o Poder Judiciário estaria sempre acessível no seu mister de solucionar eventuais conflitos decorrentes de uma lesão ou ameaça a direito.

Como restou observado, não há falar em violação ao princípio da segurança jurídica no caso, sendo que as decisões do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) possuem natureza administrativa, e não jurisdicional. Desta forma, rechaçada se encontra a tese de afronta à coisa julgada, quando se busca a apreciação judicial de uma decisão favorável ao contribuinte - mesmo que definitiva e irreformável no plano administrativo.

Demonstrou-se, ainda, que o efetivo e amplo controle judicial das decisões do CARF significaria uma mera "repristinação" do lançamento outrora invalidado, não implicando, portanto, a idéia de invasão da competência privativa da autoridade tributária, através de um suposto lançamento de créditos realizado por juízes e tribunais.

Com relação à indagação acerca de quem seria o réu da ação anulatória fazendária, concluiu-se que o próprio contribuinte (ou responsável tributário) favorecido pela decisum administrativo definitivo seria a parte legítima para ocupar o polo passivo, nos moldes do que é estabelecido pela legislação processual para a ação rescisória. A clássica noção de "pretensão resistida" restaria superada na aludida ação estatal.

Por fim, oportuno trazer à colação os irretocáveis ensinamentos de James Marins no sentido de que:

"as garantias constitucionais tributárias não se apresentam como meras garantias dos contribuintes, mas se afiguram como garantias da própria relação jurídico-tributária e, desse modo, ao garantir sua higidez constitucional, garantem o próprio Estado e logo garantem a própria sociedade. A visão unilateral relativa às garantias dos contribuintes é primária e preconceituosa. [19]"


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, Alvim. Tratado de Direito Processual Civil, vol.1, São Paulo: RT, 1990

BRITO, Edvaldo. Problemas de processo judicial tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). São Paulo: Dialética, 1999. v. 3.

CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 5 edição. São Paulo: RT, 2007;

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: EditoraMalheiros, 1994.

JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 51ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010;

MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010;

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 17. edição. São Paulo:Editora Malheiros, 1992.


Notas

  1. Favoráveis ao questionamento judicialsãoAurélio Pitanga Seixas Filho, Edvaldo Brito, Rubens Gomes de Sousa, Carlos da Rocha Guimarães, Gilberto de Ulhôa Canto e Lídia Maria Lopes Rodrigues Ribas. Desfavoráveis situam-se Paulo de Barros Carvalho, Eduardo de Moraes Sabbag, Hugo de Brito Machado, Hugo de Brito Machado Segundo, Lúcia Valle Figueiredo, Marciano Seabra de Godói, Ricardo Lobo Torres, Sacha Calmon Navarro Coelho e Ives Gandra Martins.
  2. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 495
  3. "LV: Aos litigantes, em processo judicial ou administartivo,e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes."
  4. "XXXIV: São a todos assegurados, independente do pagamento de taxas:
  5. a)o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder"

  6. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 5 ed. São Paulo: RT, 2007, p.81
  7. MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª Ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 488
  8. BRITO, Edvaldo. Problemas do processo judicial tributário. ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). São Paulo: Dialética, 1999, v. 3, p.114-115.
  9. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010, p. 80.
  10. MEIRELLES, Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 17ª Ed. São Paulo. Editora Malheiros. 1992, p.76
  11. Art 156, IX do CTN – " Extinguem o crédito tributário: (...) IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não possa mais ser objeto de ação anulatória.(grifos nossos)"
  12. Decreto nº 70.235/72, art. 26-A: " No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob o fundamento de inconstitucionalidade." (Redação dada pela Lei nº 11.941, de 2009)
  13. "Lei 9784//99 art. 53. A Administração poderá seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência e oportunidade, respeitados os direitos adquiridos."
  14. Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: I - quando a lei assim o determine; II - quando a declaração não seja prestada, por quem de direito, no prazo e na forma da legislação tributária; III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade; IV - quando se comprove falsidade, erro ou omissão quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória; V - quando se comprove omissão ou inexatidão, por parte da pessoa legalmente obrigada, no exercício da atividade a que se refere o artigo seguinte; VI - quando se comprove ação ou omissão do sujeito passivo, ou de terceiro legalmente obrigado, que dê lugar à aplicação de penalidade pecuniária; VII - quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação; VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior; IX - quando se comprove que, no lançamento anterior, ocorreu fraude ou falta funcional da autoridade que o efetuou, ou omissão, pela mesma autoridade, de ato ou formalidade especial.
  15. RMS 16.902, 2ª Turma, DJ 04.10.2004; MS 8.810, 1ª Seção, DJ 06.10.2003; e RESP 411.428/SC, 1ª Turma, DJ 21.10.2002.
  16. "Súmula 473 STF: A Administração Poe anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada em todos os casos a apreciação jurisdicional.(grifos nossos)"
  17. JÚNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 51ª Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 723.
  18. ARRUDA, Alvim. Tratado de Direito Processual Civil, vol.1, São Paulo: RT, 1990, p.180
  19. "Art. 142: Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido como o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo o caso, propor a aplicação da penalidade."
  20. MARINS, James. Direito Processual Tributário Brasileiro. 5ª edição. São Paulo: Dialética, 2010, p. 225;
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Sobre o autor
Luciano Costa Miguel

Procurador da Fazenda Nacional. Mestre em Direito Ambiental pela Escola Superior Dom Helder Câmara. Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIGUEL, Luciano Costa. A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2753, 14 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18268. Acesso em: 5 mai. 2024.

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