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Arbitragem no Direito do Trabalho: limites e perspectivas

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3.AS ORIGENS E A ESTRUTURA DA JUSTIÇA DO TRABALHO

O sistema de solução dos conflitos trabalhistas no Brasil foi concebido em um contexto histórico de transformações que marcaram de forma decisiva o destino do país. As turbulências sociais, políticas e econômicas que o mundo vivia na primeira metade do século passado influenciaram significativamente o advento e os moldes da construção de um novo Estado no Brasil, com reflexos até os dias de hoje.

Na verdade, os conflitos entre capital e trabalho, surgidos a partir dos efeitos da Revolução Industrial e que desenharam o desenvolvimento histórico dos países europeus ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX, somente começaram a aparecer no Brasil, de forma incipiente, ao longo da década de 1920 e início da década de 1930, em decorrência da industrialização. A abolição da escravatura e a substituição da força de trabalho por imigrantes europeus, especialmente italianos, alemães, poloneses e japoneses, aliadas ao êxodo rural e à conseqüente formação de um operariado urbano na cidade de São Paulo, constituíram o ambiente ideal para o surgimento de um grupo de trabalhadores que certamente poderiam fomentar profundas e revolucionárias mudanças na estrutura social e organizacional existente até então no Brasil.

Vivia-se, em síntese, uma fase de amadurecimento do que poderia vir a ser o início de um movimento sindical extremamente forte, nos moldes da evolução do sindicalismo inglês. Pode-se dizer que foi um choque social tardio produzido em um país colonizado durante séculos e distante do núcleo de acontecimentos e transformações dos países europeus, que já haviam experimentado o fenômeno da industrialização.

Por outro lado, no campo político, a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao Poder, representou a transição de um Estado eminentemente agrícola e escravocrata para outro em vias de industrialização e de trabalhadores mais conscientes de seus direitos sociais, especialmente os imigrantes italianos. Isso fez com que os interesses em jogo no campo político e econômico levassem à constituição de um Estado fundado no corporativismo. Seu fundamento, em essência, era a colaboração e não a luta de classes para o desenvolvimento do Estado.

Com efeito, como bem observa o emérito Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Ives Gandra Martins Filho, "a idéia do Estado Corporativista veio opor-se às duas formas básicas então existentes, de Estado Liberal e de Estado Comunista, onde uma dava excessivo valor ao individual e a outra ao Estado". (MARTINS FILHO, 1996, p. 17) Os postulados básicos do Corporativismo negavam a democracia pluralista e o sufrágio universal, tidas como geradoras de desagregação nacional e instabilidade governamental. Pregavam que a solidariedade nacional apenas se concretiza com o reconhecimento da supremacia do Estado sobre o indivíduo e da identificação entre Estado e Nação. (MARTINS FILHO, 1996, p. 18) Nesse sentido, a organização estatal deveria ocorrer por meio da descentralização funcional em que cada corporação exerceria atividade delegada do Poder Público para desenvolver sua parcela do esforço nacional de crescimento.

Assim, a dinâmica política que levou à adoção de uma estrutura corporativista no Brasil decorreu, fundamentalmente, de circunstâncias sociais e econômicas vivenciadas no início da década de 1930. A opção por esse modelo foi conveniente aos interesses em jogo e adequada ao estágio incipiente de desenvolvimento sindical no país. Ives Gandra Martins Filho, a esse respeito, assevera:

A adoção de tal padrão para as relações de trabalho não conflitava com a realidade sócio-econômica brasileira, tendo em vista que o Brasil, por não ter vivenciado a revolução industrial e, conseqüentemente, visto eclodir um movimento sindical espontâneo, veio a se antecipar ao problema social, ofertando ao operariado, desde os primórdios da industrialização brasileira, uma estrutura sindical e a proteção de leis trabalhistas, infundindo, dessarte, uma mentalidade paternalista na classe trabalhadora, de difícil alteração. (MARTINS FILHO, 1996, p. 20)

Dessa forma, o resultado foi que o Brasil seguiu rigorosamente as premissas do Estado Corporativista, fundando sua estrutura de relações de trabalho no modelo fascista adotado na Itália por Mussolini. De acordo com esse modelo, os sindicatos são corporações atreladas ao Estado, sendo proibida a utilização da greve como forma de reivindicação. O Estado, por derradeiro, institucionaliza seu poder sobre as relações de trabalho por uma justiça laboral especializada com competência para regulamentar e dirimir as controvérsias surgidas da relação entre capital e trabalho. Assim, nosso sistema foi criado copiando, em muitos aspectos, o sistema italiano da Carta del Lavoro, de 1927, produzida no regime fascista de Mussolini.

Pode-se dizer, nesse contexto, que a legislação social produzida especialmente a partir da Constituição Federal de 1934 tinha a real intenção política de conter os trabalhadores, enfraquecendo um movimento que não se sabia até onde poderia avançar. A própria Constituição de 1934 instituiu, pela primeira vez, um órgão especializado para dirimir questões entre empregados e empregadores, inicialmente ligado ao Poder Executivo. A Justiça do Trabalho somente passou a fazer parte do Poder Judiciário com a promulgação da Constituição Federal de 1946.

Essa estrutura corporativista foi um dos fundamentos do autoritarismo do Estado Novo de Vargas, a partir de 1937, não tendo sido alterada pelos sucessivos regimes civis e militares que se seguiram no Brasil. Isto ocorreu pela simples razão de que tal estrutura se coadunava perfeitamente com as pretensões antidemocráticas dos governantes, permitindo um amplo controle do movimento sindical, sob o pretexto de que seu desenvolvimento desenfreado poderia desestabilizar a ordem social nos períodos de crise econômica.

Nos dias atuais, entretanto, o movimento sindical sente de forma clara os efeitos negativos dessa estrutura corporativista, mantida por tanto tempo nas relações de trabalho. Constitui, em verdade, o motivo evidente da fraqueza e falta de representatividade dos entes sindicais no Brasil. É, sem dúvida, um dos principais óbices a toda e qualquer mudança que se queira fazer para modernizar as relações de trabalho no país, que sempre esbarra na barreira imposta pela ausência de agentes sociais que representem de forma efetiva os trabalhadores.

Destacam-se, nesse aspecto, os dizeres de Ives Gandra Martins Filho, a saber:

[...] apenas com a Assembléia Constituinte de 1988 é que se começou a dar os primeiros passos no sentido de uma maior liberdade sindical e, como decorrência, menor intervencionismo estatal na área trabalhista. Os sinais dessa virada podem ser percebidos na outorga de um direito de greve mais amplo (CF, art. 9º), na não interferência do Estado nos sindicatos (CF, art. 8º) e no estímulo à negociação coletiva e ao recurso à arbitragem antes de se apelar para a solução estatal dos conflitos coletivos de trabalho (CF, art. 114). Verifica-se, entretanto, que a matriz corporativista na qual teve sua origem o Poder Normativo da Justiça do Trabalho ainda continua nutrindo o sistema brasileiro de relações de trabalho, de vez que persiste o princípio da unicidade sindical (CF, art. 8º, II), com necessidade de registro no Ministério do Trabalho (CF, art. 8º, I e Instrução Normativa n. 5/91 do MTb), garantia do recolhimento da contribuição sindical de toda a categoria (CF, art. 149) e submissão dos conflitos coletivos de trabalho à jurisdição dos tribunais trabalhistas (CF, art. 114). (MARTINS FILHO, 1996, p.22)

Nos países onde o Estado não interferiu de forma deliberada nos conflitos laborais, o movimento sindical criou forças naturalmente, em sintonia com o avanço do fenômeno da industrialização. O associativismo é um acontecimento sociológico espontâneo, tendo sido a fórmula histórica encontrada pelos trabalhadores em outros países para se contraporem à força do capital. Esse fato pode ser percebido de forma mais clara nos países onde o sistema capitalista sempre foi expressivo. É interessante perceber, inclusive, que o desenvolvimento do sindicalismo proporcionou avanços significativos nas técnicas de solução dos conflitos trabalhistas. Para ilustrar esse fenômeno, nada melhor do que os Estados Unidos, país que atualmente centraliza o capitalismo mundial. Poder-se-á, assim, criar um contraponto necessário à compreensão do significado da existência da Justiça do Trabalho no Brasil.

Houve, naquele país, uma construção progressiva de direitos resultantes, essencialmente, da atividade reivindicatória dos sindicatos, nunca tendo existido uma Justiça especializada em conflitos de trabalho. O instrumento encontrado para contornar situações extremadas nos conflitos trabalhistas foi, por conseguinte, o instituto da arbitragem.

As origens da arbitragem nos Estados Unidos estão situadas na Segunda Guerra Mundial, quando foi criada uma agência oficial para tratar de assuntos trabalhistas, em especial nas indústrias bélicas. Não havia uma maneira pela qual as partes pudessem tratar de seus problemas trabalhistas, razão pela qual os litigantes solicitavam a decisão de terceiros e se acostumaram a ter pessoas neutras para resolver as suas disputas. (NASCIMENTO, 1993, p. 71) A inserção da arbitragem em praticamente todos os contratos laborais originou-se da certeza de que esse mecanismo de solução pacífica conferia aos empregados resposta adequada aos seus anseios, evitando-se, com isso, potenciais greves que poderiam afetar a produção de materiais bélicos. (MARTINS et al., 1999, p. 151)

Ao contrário do que ocorre no Brasil, o papel do Governo nos Estados Unidos é tão-somente o de encorajar as negociações entre as partes, não existindo praticamente interferência judicial nos conflitos. Há um sistema em que existem poucas leis trabalhistas, mas muitos acordos entre os sindicatos e as empresas. Os contratos coletivos desempenham importante papel, pois geralmente contêm previsão para que os eventuais conflitos sejam solucionados pela arbitragem. Os conflitos individuais são resolvidos pela arbitragem privada, escolhida pelas partes, mas geralmente patrocinada pelos sindicatos, pois é muito oneroso o seu custo para o particular. Já nos conflitos coletivos a arbitragem é facultativa, após tentativa de conciliação obrigatória. Normalmente, as controvérsias coletivas são solucionadas por meio de acordos ou convenções coletivas. São pouquíssimos os conflitos em matéria trabalhista levados ao Judiciário. (MARTINS, 2002, p. 39)

Percebe-se, com amparo nas características da sistemática de resolução dos conflitos trabalhistas nos Estados Unidos, o quanto as raízes, circunstâncias e opções históricas de um país influenciam todo o sistema jurídico construído ao longo do tempo, dificultando sobremaneira qualquer alteração que se queira fazer. Há diretrizes políticas e econômicas que variam segundo o estágio de desenvolvimento das relações produtivas e o regime político sob o qual determinada nação se encontra submetida (MARTINS FILHO, 1996, p. 27) O caso americano é sintomático na medida em que possibilita a real compreensão dos fatos históricos que ensejaram, por exemplo, o predomínio, no campo trabalhista, de uma Justiça Pública no Brasil e de uma Justiça Privada nos Estados Unidos. Pertinentes nesse aspecto são as colocações do Juiz e Professor Jorge Luiz Souto Maior, ao explicar que "na visão cultural que prega o afastamento do Estado das relações sociais não teria mesmo muito sentido o Estado intervir para dar guarida a um direito que ele não criou". (MAIOR, 2002, p. 185) (grifo nosso) Como o direito trabalhista americano é pautado fundamentalmente na autonormatização das partes, o modo de solução dos conflitos segue a mesma regra, de forma espontânea e natural. A intervenção estatal se reduz, por conseguinte, a tão-somente fiscalizar a boa-fé no processo de resolução do conflito.

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Por outro lado, percebe-se que os trabalhadores norte-americanos, inseridos ao longo de vários anos em uma cultura liberal muito competitiva e de valorização extremada do capital, viram-se obrigados a se organizar de uma forma eficaz e a desenvolver uma organização sindical que conseguisse fazer frente às arbitrariedades dos empregadores. Pode-se dizer que nos Estados Unidos há um relativo equilíbrio entre capital e trabalho, construído ao longo de muito anos e calcado em um sistema jurídico e social completamente diferente do que vigora no Brasil.

O fato é que nos países desenvolvidos há um predomínio claro da negociação coletiva sobre a intervenção estatal, constituindo um caminho mais rápido, democrático e eficaz para a pacificação dos conflitos trabalhistas. Isso só é possível porque há um equilíbrio de forças entre o poder econômico patronal e o poder sindical dos trabalhadores, de modo que o poder de barganha destes torna igualitária as condições de diálogo e negociação. O princípio protecionista não é um imperativo nos países com alto grau de associativismo, onde existem sindicatos fortes, representativos e com alto poder de barganha nas negociações.

Já no Brasil, ao contrário, a superioridade econômica do empregador não encontra resistência do outro lado da relação trabalhista. Os sindicatos concebidos na estrutura atrelada ao Estado não amadureceram a ponto de serem o fiel da balança, elidindo a possibilidade dos atores sociais exercerem livremente a negociação coletiva e buscarem formas extrajudiciais de solução de conflitos. A Justiça do Trabalho e o Direito do Trabalho, nesse aspecto, são garantias que não podem ser suprimidas, sob pena de negar vigência ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Esse é um dos principais motivos que justificam a manutenção de um Poder Judiciário Trabalhista no Brasil. Ele exerce uma função social imprescindível, protegendo o trabalhador e conferindo a ele superioridade jurídica para compensar sua inferioridade econômica. A Constituição Federal de 1988, nesse ponto, busca harmonizar a relação entre capital e trabalho, quando contempla como fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, além de institucionalizar um sistema fechado e hierarquizado de solução dos conflitos trabalhistas, tanto individuais quanto coletivos. A Justiça do Trabalho possui, inclusive, um poder normativo constitucional, pelo qual lhe cabe solucionar, de forma impositiva, os conflitos coletivos de trabalho, podendo estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho. Pode-se dizer que essa competência constitucional é o sinal mais evidente da interveniência do Estado nas relações trabalhistas.

No aspecto institucional, a Constituição determina que haja pelo menos um tribunal do trabalho em cada estado da federação, havendo pluralidade de graus de jurisdição. Seus juízes são dotados de garantias, visando à independência de seus pronunciamentos. Os tribunais trabalhistas são regidos por seus regimentos internos e divididos em regiões, contemplando, assim, as varas do trabalho e os tribunais regionais do trabalho. Há, ainda, uma instância especial de cúpula, o Tribunal Superior do Trabalho, que tem por objetivo fundamental uniformizar a jurisprudência dos tribunais regionais.

Evidencia-se, portanto, a ampla estrutura de resolução de conflitos trabalhistas que o Estado, por intermédio do Poder Judiciário, coloca à disposição dos cidadãos brasileiros. Trata-se de um sistema especial no âmbito do Judiciário, estabelecido pela própria Carta Magna, voltado para a conciliação e julgamento dos dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Esse modelo foi assim estruturado em razão da conjugação de inúmeros fatores políticos, sociais e econômicos que marcaram decisivamente a História do Brasil, representando hoje um aparato consolidado e arraigado na cultura dos trabalhadores brasileiros.

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Sobre o autor
Flávio Luiz Wenceslau Biriba dos Santos

Advogado formado pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB, Procurador da Fazenda Nacional, Especialista pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do DF

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Flávio Luiz Wenceslau Biriba. Arbitragem no Direito do Trabalho: limites e perspectivas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2760, 21 jan. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18313. Acesso em: 25 abr. 2024.

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