I - Introdução
No dia a dia da Administração sempre nos deparamos com questões relacionadas à cessão de servidores de outros entes da federação para a União. A Lei nº 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores da União, além de não tratar da hipótese inversa – que abordamos neste momento – não prevê todas as situações, o que torna o tema bastante controverso. Por outro lado, a Jurisprudência – notadamente do eg. Tribunal de Contas da União – além de se nos apresentar – data venia – equivocada, ainda não se apresenta firme sobre a questão. Soma-se a isso o fato de o Decreto nº 4.050/2001, que regula o art. 93 da Lei nº 8.112/90, que deveria regulamentar apenas a hipótese tratada neste referido artigo, terminar por extrapolar do objeto da norma que intenta regulamentar, impondo restrições que a própria lei não prevê. Procuraremos, assim, abordar o tema de uma forma sistemática, levando em consideração todo o ordenamento jurídico pátrio, e, principalmente, a mens legis, com que procuraremos demonstrar o tratamento destoante do Decreto nº 4.050/2001 e dos julgamentos do eg. TCU sobre o tema.
II - Desenvolvimento
Com efeito, recorrendo-se à Lei nº 8.112/90, que trata do regime jurídico dos servidores civis da União e seus entes, verificamos que o instituto da cessão é tratado no seu art. 93. Tal dispositivo, contudo, não cuida, especificamente, de cessão de servidores dos Estados e Municípios à União, restringindo-se a tratar de cessões de servidores da União a tais entes da federação. Isto porque, na verdade, tal diploma não visa, precipuamente, regular o regime jurídico dos servidores dos demais entes da federação, sob pena de ofensa ao princípio federativo, mas, tão-somente, dos servidores da União.
Observa-se que o art. 93 da Lei nº 8.112/90 condiciona a cessão de servidores da União, de seus órgãos e entidades, somente para as hipóteses de exercício de cargo de confiança ou função gratificada. Veja-se:
Art. 93 – O servidor poderá ser cedido para ter exercício em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, ou do Distrito Federal e dos Municípios, nas seguintes hipóteses:
I – para exercício de cargo em comissão ou função de confiança;
II – em casos previstos em leis específicas.
Na mesma linha, o Decreto nº 4.050/2001, que regulamenta o art. 93 da Lei nº 8.112/90, dispondo sobre as cessões dos servidores de órgãos e entidades da Administração Pública Federal e dá outras providências, define, no seu art. 1º, cessão como sendo:
"Art. 1º - (...)
II - cessão: ato autorizativo para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança, ou para atender situações previstas em leis específicas, em outro órgão ou entidade dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sem alteração da lotação no órgão de origem;
Aqui, a propósito, cabe uma ligeira crítica ao inciso II do art. 1º do Decreto 4.050/2001, acima transcrito. Observe que não há que confundir o "conceito de cessão" com "condições de cessão". Ora, o art. 93 da lei estatutária não conceitua cessão de servidor; e o fato de condicionar a cessão de servidores da União ao exercício de cargo de confiança e função gratificada não significa que tais condições sejam elementos essenciais do instituto da cessão.
Como se sabe, o traço diferenciador da "cessão de servidor" com a "requisição de servidor" é o fato de que enquanto o primeiro instituto depende da autorização (consentimento) do órgão cedente, o segundo (requisição) independe, a rigor, de tal autorização, somente sendo possíveis em hipóteses previstas legalmente. O fato de a lei indicar algumas condições para realização da cessão não significa, data venia, que tais condições (que poderão ser alteradas, suprimidas ou acrescentadas) façam parte da natureza do instituto.
Mas não é só: o referido decreto ao adentrar no campo de cessões de servidores dos demais entes da federação para a União, acaba por extrapolar o objeto do art. 93 da lei estatutária, o qual visa apenas regulamentar. Assim, tal decreto acaba por limitar, sobremaneira a possibilidade de cessão de servidores de outros entes da federação para a União, notadamente, nos arts. 5º, 6º e 11. Veja-se:
Art. 5
ºObservada a disponibilidade orçamentária, a Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional poderá solicitar a cessão de servidor ou empregado oriundo de órgão ou entidade de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, suas empresas públicas e sociedades de economia mista, para o exercício de cargo em comissão ou função de confiança e, ainda, requisitar nos casos previstos em leis específicas.
O art. 5º, acima transcrito, autoriza a possibilidade de cessão de servidores para a União, apenas nas hipóteses em que tais servidores venham a ocupar cargos em comissão ou função de confiança, devendo, para tanto, como não poderia deixar de ser, verificar a existência de prévia disponibilidade orçamentária.
Já o art. 6º, abaixo transcrito, determina que, na hipótese de cessão para a União (cessionária), é ela que deverá arcar com o ônus da remuneração do servidor cedido.
Art. 6
ºÉ do órgão ou da entidade cessionária, observada a disponibilidade orçamentária e financeira, o ônus pela remuneração ou salário do servidor ou empregado cedido ou requisitado dos Poderes dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios ou das empresas públicas e sociedades de economia mista, acrescidos dos respectivos encargos sociais definidos em lei.
Parágrafo único. O ônus da cessão ou requisição prevista no caput não se aplica no caso de o cedente ser empresa pública ou sociedade de economia mista que receba recursos financeiros do Tesouro Nacional para o custeio total ou parcial da sua folha de pagamento de pessoal, bem assim do Governo do Distrito Federal em relação aos servidores custeados pela União.
Em complemento, o art. 11 do mesmo Decreto restringe - nos casos de cessões que impliquem reembolso pela Administração Federal - as cessões de servidores para a União, apenas para ocupação de cargos de níveis DAS 4, ou superior. Veja-se:
Art. 11. As cessões ou requisições que impliquem reembolso pela Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, inclusive empresas públicas e sociedades de economia mista, à exceção da Presidência e da Vice-Presidência da República, somente ocorrerão para o exercício de : (Redação dada pelo Decreto nº 5.213, de 2004)
I - cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, níveis 4, 5 e 6, e de Natureza Especial ou equivalentes; e (Incluído pelo Decreto nº 5.213, de 2004)
II - cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, nível 3, ou equivalente, destinado a chefia de superintendência, de gerência regional, de delegacia, de agência ou de escritório de unidades descentralizadas regionais ou estaduais. (Incluído pelo Decreto nº 5.213, de 2004)
[...]"
Esclareça-se que, nos termos do art. 1º, III, do mesmo Decreto, reembolso é definido como "restituição ao cedente das parcelas da remuneração ou salário, já incorporadas à remuneração ou salário do cedido, de natureza permanente, inclusive encargos sociais".
Destarte, o pagamento da remuneração ou salário do servidor cedido é reembolso. E como o art. 6º impõe que tal pagamento é de responsabilidade da União (cessionária), temos que em todas as hipóteses de cessão para a União implicarão reembolso e todas somente poderão ser feitas nos casos de o servidor cedido vir a ocupar cargo de Direção de nível DAS 4, ou superior, ou de nível de DAS 3, destinado a chefia de superintendência, de gerência regional, de delegacia, de agência ou de escritório de unidades descentralizadas regionais ou estaduais.
Desse modo, considerando as condições restritivas dos arts. 1º, 5º, 6º e 11, todos do Decreto 4.050/2001, a cessão de servidor municipal ou estadual para a União somente poderia se efetivar nas hipóteses dos incisos I e II do art. 11, acima transcrito.
Vale anotar, ainda, que o eg. Tribunal de Contas da União-TCU, dando aplicação aos dispositivos do Decreto acima, já julgou da seguinte forma:
1) Decisão nº 641/1995 – Plenário, Relator Ministro Carlos Átila, Sessão de 05.12.1995, DOU de 22.12.1995, p. 21903:
"O Tribunal Pleno, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE:
(...)
2. determinar ao TRF-5ª Região que:
2.1. faça cessar todos e quaisquer pagamentos decorrentes da integração dos servidores citados no subitem 8.1 supra, sob pena de obrigação de ressarcimento, pelo responsável, das quantias pagas após ciência desta Decisão e da sanção prevista no art. 58 da Lei nº 8.443/92;
2.2. promova a adequação das cessões de pessoal aos estritos termos do art. 93, incisos I e II, da Lei nº 8.112/90;
2.3. devolva aos seus respectivos órgãos ou entidades de origem os servidores requisitados que não exercem qualquer função ou cargo de confiança no órgão, por absoluta inexistência de fundamentação legal;
2.4. se abstenha de dispor sobre a criação de funções de Representação de Gabinete, como efetuado pelo Ato nº 59/89 TRF-5ª Região, por ser essa atribuição de competência do Congresso Nacional (C.F., art. 48, inciso X);
2.5. regularize a situação dos servidores requisitados, que exercem a função de Representação de Gabinete, ante o que preceitua o art. 37, inciso V, da Constituição Federal;
3. encaminhar, com fulcro no art. 74, inciso IV, da Constituição Federal, cópia desta Decisão, bem como do Relatório e Voto que a fundamentam, às Secretarias de Controle Interno do Conselho da Justiça Federal e do TRF-5ª Região, para conhecimento e adoção de providências na esfera das respectivas competências;
4. determinar à Secretaria de Controle Interno do TRF-5ª Região que no relatório de auditoria sobre as contas do órgão, referentes aos exercícios de 1995, faça constar as medidas adotadas pela referida Corte Federal em face das determinações e recomendações contidas nesta deliberação, bem como as informações sobre os resultados obtidos com essas medidas; e
5. juntar o presente processo às contas respectivas, para exame em conjunto." (grifos acrescentados)
2) Decisão nº 116/1999 – 1ª Câmara, Relator Ministro Humberto Souto, Sessão de 18.05.1999, DOU de 26.05.1999:
"A Primeira Câmara, diante das razões expostas pelo Relator, DECIDE, com fundamento no art. 43, inciso I, da Lei nº 8.443/92:
8.1 – determinar ao Excelentíssimo Senhor Dirigente da Seção Judiciária da Justiça Federal do Ceará que promova, no prazo de quinze (15) dias, consoante o disposto no inciso IX do art. 71 da Constituição Federal, o retorno:
a) dos servidores a seguir relacionados aos seus órgãos de origem, uma vez que não exercem cargo em comissão ou função de confiança, nos termos previstos no art. 93 da Lei 8.112/90:
(...)
b) das pessoas a seguir relacionadas às Prefeituras Municipais de origem, uma vez que as Funções Comissionadas (FC–1 a FC–5) devem ser obrigatoriamente ocupadas por servidores da União, Estados e Municípios, nos termos do art. 93 da Lei nº 8.112/90 c/c art. 9º da Lei nº
9.421/96: (...) (destacamos)
Assim, o eg. Tribunal de Contas da União - TCU, embora não possua jurisprudência substancial sobre o tema, registra precedentes que apontam pela necessidade de não só nos casos de cessão, mas, também, nos de requisição de servidores dos Estados e Municípios para a União, os mesmos ocuparem cargos comissionados ou funções gratificadas.
Nesse sentido, a decisão do TCU acima transcrita encontra, também, divergente da posição da Administração, já que, nos termos do inc. I do art. 1º do Decreto 4.050/2001, as requisições não carecem de ocupação de cargo de confiança ou função gratificada, sendo definidas como:
"I - requisição: ato irrecusável, que implica a transferência do exercício do servidor ou empregado, sem alteração da lotação no órgão de origem e sem prejuízo da remuneração ou salário permanentes, inclusive encargos sociais, abono pecuniário, gratificação natalina, férias e adicional de um terço".
Vale ressaltar, a propósito, que os julgados do TCU, acima transcritos, além de não se consubstanciarem em jurisprudência consolidada dessa eg. Corte de Contas, não possuem efeito vinculante.
III – Conclusão
Por todo o exposto, entendemos que as disposições do Decreto nº 4.050/2001 e as decisões do eg. TCU, acima transcritas, se nos apresentam, flagrantemente, equivocadas. A uma porque a Lei nº 8.112/90 não disciplina cessões de servidores dos Estados, DF e Municípios. A duas porque, ao impor condições que a própria lei não impõe, não somente infringe o Princípio da Legalidade, como também afronta Princípios de grande importância como o da Eficiência e Colaboração entre os órgãos e entes públicos, já que culmina por dificultar a concretização dos atos da espécie.