I. Introdução.
Uma das importantes inovações trazidas pela emenda constitucional 19, de 4 de junho de 1998, foi a criação de mecanismos de controle de desempenho mais rígidos para o servidores públicos estáveis.
Tais inovações buscavam dar efetividade ao "recém-constitucionalizado" princípio da eficiência, inserido no caput do art. 37 da Constituição também pela EC 19/98. Passados, todavia, mais de doze anos da reforma constitucional, muitos dos novos dispositivos não foram implementados a contento.
No presente artigo, analisa-se em face do princípio do devido processo legal uma omissão ainda comum na Administração Pública, consistente em realizar a avaliação do estágio probatório prescindindo da participação de comissão criada para tal finalidade.
II. Análise dos dispositivos constitucionais e legais.
A Constituição Federal garante aos servidores públicos a estabilidade após três anos de efetivo exercício em cargo público.
O reconhecimento da estabilidade constitui a garantia do servidor de só ter seu vínculo jurídico com a Administração desfeito nas situações inseridas no Texto Constitucional pela emenda nº 19 de 4 de junho de 1998. Nesses termos, veja-se:
Art. 41. São estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público.
§ 1º O servidor público estável só perderá o cargo:
I - em virtude de sentença judicial transitada em julgado;
II - mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa;
III - mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa.
(...)
§ 4º Como condição para a aquisição da estabilidade, é obrigatória a avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade.
(...)
Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar.
(...)
§ 3º Para o cumprimento dos limites estabelecidos com base neste artigo, durante o prazo fixado na lei complementar referida no caput, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios adotarão as seguintes providências:
I - redução em pelo menos vinte por cento das despesas com cargos em comissão e funções de confiança;
II - exoneração dos servidores não estáveis.
§ 4º Se as medidas adotadas com base no parágrafo anterior não forem suficientes para assegurar o cumprimento da determinação da lei complementar referida neste artigo, o servidor estável poderá perder o cargo, desde que ato normativo motivado de cada um dos Poderes especifique a atividade funcional, o órgão ou unidade administrativa objeto da redução de pessoal.
Não é, todavia, o mero cumprimento do lapso temporal de três anos de exercício que trará por conseqüência a aquisição de estabilidade. Durante esse período o servidor terá seu desempenho avaliado e, apenas se considerado apto, será declarado estável.
Esse período de aferição de desempenho é chamado de estágio probatório e, segundo o excerto constitucional acima destacado, será avaliado por comissão instituída para essa finalidade (art. 41, §4º, da CF/88).
Vê-se, pois, que o cumprimento a contento do estágio probatório se subordina ao atendimento de dois requisitos:
a) Um de ordem temporal (três anos de efetivo exercício) e;
b) Outro de ordem valorativa (cumprimento regular das atribuições e de outros deveres inerentes ao cargo).
O Estatuto dos Servidores Públicos Federais (lei nº 8.112/90), por sua vez, ao tratar do estágio probatório, dispõe o seguinte:
Art. 20. Ao entrar em exercício, o servidor nomeado para cargo de provimento efetivo ficará sujeito a estágio probatório por período de 24 (vinte e quatro) meses, durante o qual a sua aptidão e capacidade serão objeto de avaliação para o desempenho do cargo, observados os seguinte fatores:
I - assiduidade;
II - disciplina;
III - capacidade de iniciativa;
IV - produtividade;
V - responsabilidade.
§ 1º 4 (quatro) meses antes de findo o período do estágio probatório, será submetida à homologação da autoridade competente a avaliação do desempenho do servidor, realizada por comissão constituída para essa finalidade, de acordo com o que dispuser a lei ou o regulamento da respectiva carreira ou cargo, sem prejuízo da continuidade de apuração dos fatores enumerados nos incisos I a V do caput deste artigo.
§ 2º O servidor não aprovado no estágio probatório será exonerado ou, se estável, reconduzido ao cargo anteriormente ocupado, observado o disposto no parágrafo único do art. 29.
Da leitura do excerto destacado pode-se inferir que:
a)Durante o estágio probatório, a aptidão do servidor para o desempenho satisfatório do cargo é constantemente avaliada, de acordo com os fatores elencados no caput do art. 20 do Estatuto;
b)A Administração deverá constituir uma comissão com a finalidade específica de elaborar a avaliação do servidor.
c)Até quatro meses antes do término do estágio probatório, tal avaliação será submetida à apreciação e decisão pela autoridade competente.
d)A constituição da comissão e seu funcionamento obedecerão às disposições legais ou regulamentares da respectiva carreira ou cargo.
Da análise das normas acima, pode-se concluir que o instituto do estágio probatório, ao mesmo tempo que constitui uma prerrogativa da Administração, de avaliar a aptidão de seus servidores antes de estabilizá-los, importa a imposição de um dever a essa mesma Administração, de obedecer ao devido processo legal, estabelecendo previamente as regras que serão por si seguidas no processo de avaliação.
Em contrapartida, o titular da posição jurídica ativa quanto a esse dever é o servidor, que tem o direito de ser avaliado com base nas regras e princípios constitucionais, legais e regulamentares.
É sabido que, no exercício do poder ou competência regulamentar, a Administração não pode inovar no ordenamento jurídico, só lhe sendo permitido estabelecer regras para o fiel cumprimento das disposições legais. Por consequência, o regulamento não pode contrariar ou exceder a norma legal.
Deve-se destacar que a própria lei nº 8.112/90 (art. 20, §1º), deferiu ao regulamento a possibilidade de dispor sobre a avaliação do estágio probatório em relação a determinado cargo ou carreira.
Na prática, entretanto, observa-se que a avaliação do servidor em estágio probatório realiza-se unicamente pelo chefe imediato, não contando, portanto com a participação de comissão especificamente criada para proceder à citada avaliação. Em muitos órgãos sequer foi instituída a comissão prevista pela lei.
Deve-se destacar que a Administração se encontra vinculada ao cumprimento de todas as regras emanadas do princípio da legalidade em sua acepção positiva, segundo a qual, só é dado fazer o que a lei determina ou permite.
No caso, a lei nº 8.112/90, seguindo o mandamento constitucional previsto no art. 41, § 4º, determina que a avaliação de estágio probatório seja realizada por comissão instituída, exclusivamente, para essa finalidade.
III- O devido processo legal e a avaliação em estágio probatório.
A razão de ser da previsão constitucional e, consequentemente, da previsão legal, é garantir que o servidor não sofra perseguições ou desmandos oriundos de sua chefia imediata, que sejam capazes de inabilitá-lo no estágio probatório.
Ao atribuir ao chefe imediato a competência para avaliar o cumprimento dos requisitos do estágio probatório, a instrução normativa vai de encontro ao que a lei e a Constituição determinam, desrespeitando, portanto, o princípio da legalidade.
Ressalte-se, ademais, ser entendimento pacífico a incidência do princípio do devido processo legal aos processos administrativos.
Esse princípio é considerado a matriz de muitos outros princípios constitucionais expressos (contraditório, ampla defesa, juiz natural) ou implícitos (razoabilidade e proporcionalidade), sendo concebido em uma acepção formal (procedural due process of law) e em uma acepção material (substantive due process of law).
No caso, a norma regulamentar que retirou da comissão prevista legal e constitucionalmente a atribuição de avaliar o estágio probatório do servidor violou não só regra atinente ao devido processo legal formal, mas também ao material, tendo em vista não ser razoável permitir que um único agente público analise a conduta profissional do servidor, principalmente de servidor àquele subordinado hierarquicamente.
Atribuir, exclusivamente, ao chefe imediato tal competência importa desfalcar o servidor de garantias básicas para o exercício regular de seu múnus, porque, mais importante do que agir com lisura e probidade, seria cumprir os comandos emanados pelo chefe, titular do "poder" de avaliá-lo.
Isso posto, não pairam dúvidas do conflito existente entre a lei nº 8.112/90 (de forma direta ou imediata) e a Constituição (de forma indireta ou mediata) em relação a todas as práticas administrativas que excluem a avaliação do estágio probatório de servidores da análise de comissão instituída para tal fim.
Não se pode imaginar, entretanto, que a omissão da Administração em obedecer ao princípio da legalidade traga algum prejuízo aos servidores.
Assim, caso não se proceda à instalação e funcionamento da comissão de avaliação, o cumprimento do estágio probatório de todos os servidores do respectivo órgão passa a se vincular, apenas, ao atendimento do requisito temporal, motivo pelo qual, após o cumprimento dos três anos de efetivo serviço, a Administração deverá proceder ao reconhecimento da estabilidade.
Caso se entendesse de forma diversa, violado estaria o princípio da boa-fé objetiva e um de seus famosos corolários, qual seja, o princípio do tu quoque. Segundo este, ninguém poderá invocar em seu benefício a norma jurídica que descumpriu ou, em outras palavras, o descumprimento da lei não pode gerar para uma das partes situação mais vantajosa do que alcançaria cumprindo a norma.
Exemplificando, seria mais vantajoso ao administrador mal intencionado nunca criar a comissão de avaliação, deixando de confirmar o estágio probatório dos servidores e, querendo exonerá-los, não ter que observar as regras mais rígidas que protegem os servidores estáveis.
Tal mecanismo, além de tudo, ainda atentaria contra os princípios da moralidade e da impessoalidade, na medida em que o atendimento das vontades do dirigente seria um mecanismo ilegítimo de pressão a ser exercido sobre o trabalho e a vontade do servidor.
Ademais, em atenção ao princípio do juiz natural e ao princípio que veda a instituição de juízo ou tribunal de exceção, previstos, respectivamente no art. 5º, LIII e XXXVII, da CF/88, a instalação da comissão deve ser prévia ao início do cumprimento do estágio probatório pelo servidor.
Isso, porque o direito a juiz natural é o direito de ser julgado por uma autoridade competente (aspecto objetivo) e imparcial (aspecto subjetivo). A competência, portanto, deve estar determinada de forma prévia (antes do problema acontecer) e abstrata (para qualquer caso que se encaixa naquela hipótese) na norma jurídica.
Em razão disso, é proibida a fixação de juízo ex post facto, ou seja, aquele criado para apreciar fato ocorrido anteriormente a sua designação, motivo pelo qual, a instituição da comissão de avaliação deve ser feita de forma prévia ao início do cumprimento do estágio probatório.
IV- Conclusão.
É direito potestativo da pessoa jurídica exonerar o servidor a ela vinculado, nas hipóteses em que a aptidão e a capacidade para o exercício do cargo forem avaliados como insuficientes.
Não se deve, entretanto, confundir tal direito potestativo com exercício arbitrário do direito, porque a Administração possui o ônus de organizar os mecanismos de avaliação de acordo com as normas do ordenamento jurídico.
Infelizmente, ainda se observa que o descumprimento pela Administração das regras jurídicas sobre o tema e do princípio do devido processo legal ainda é frequente no procedimento de avaliação do estágio probatório.
Dentre os vários requisitos para a realização a contento do estágio probatório, destaca-se a instituição prévia de uma comissão especificamente criada para esse fim.
A omissão no cumprimento desse requisito pela Administração, todavia, não pode prejudicar o direito do servidor em ser avaliado pela autoridade competente, motivo pelo qual a aquisição da estabilidade só dependerá do atendimento do requisito temporal enquanto não for adotado o procedimento correto de avaliação.