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As novas técnicas de reprodução humana à luz dos princípios constitucionais

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24/06/1998 às 00:00
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Introdução

Vivemos em um mundo de perplexidades. Ao final do segundo milênio, estamos assistindo a uma série de transformações políticas, econômicas, sociais e tecnológicas. Presenciamos fatos até então inconcebíveis, se pensássemos com a mentalidade de dez, vinte ou trinta anos atrás. No plano político, ficamos deslumbrados com o fim do comunismo, a queda do Muro de Berlim, a unificação das duas Alemanhas. Socialmente, talvez o fato mais marcante dessa década tenha sido o fim do regime de discriminação na África do Sul. No tocante à economia, fato que nos impressionou foi a derrocada das economias planificadas, com a atual tendência desses países para um regime capitalista. Mas, sem dúvida, os avanços tecnológicos foram os que mais impressionaram neste final de milênio. Se não, vejamos. Descobrimos uma nova doença, de proporções terríveis para a humanidade, a AIDS, ao mesmo tempo que já em muito avançamos para conseguirmos a cura desse mal. Por outro lado, a engenharia genética avançou a passos largos: na década de 70, nasceu o primeiro bebê de proveta; logo depois, desenvolveram-se as técnicas de inseminação animal, vegetal e humana, com a possibilidade de melhoramento dos animais para o abate, de uma produtividade maior na agricultura, resolvendo, em tese, o problema da fome mundial, e o que é considerado, para muitos, um avanço incalculável na área médica, devolvemos aos casais estéreis ou com problemas reprodutivos a possibilidade de gerar filhos. Para culminar, o maior avanço na engenharia genética se deu na Escócia, quando o cientista Ian Wilmut conseguiu clonar uma ovelha, ou seja, de forma assexuada, reproduziu uma ovelha idêntica a uma outra usada como modelo.

Realmente, é um admirável mundo novo que se abre para nós e para as gerações futuras. Quantas possibilidades não se descortinam para a humanidade? Ao mesmo tempo, que mundo perigoso esse que podemos criar, se utilizarmos todas as técnicas à nossa disposição, sem um mínimo de debate sobre a eticidade dos resultados obtidos. Certa vez, advertiu o Ministro da Justiça da Alemanha, Hans Engelhard, que nem tudo que é cientificamente possível pode ser autorizado.

Inserido em todo este contexto já delineado, está o problema candente das novas técnicas de inseminação artificial. Será possível, jurídica e eticamente, utilizarmos todas as técnicas possíveis de inseminação artificial de que dispomos? Em caso de resposta negativa, quando elas deverão ser autorizadas pelo Direito?

São perguntas difíceis de ser respondidas, mormente pelo fato de o Brasil não possuir uma legislação específica sobre o tema, o que atesta o nosso atraso em relação aos países mais desenvolvidos do mundo (basta dizer que Espanha e Suécia, só para se ficar com dois exemplos, já possuem leis específicas sobre a utilização das técnicas de reprodução medicamente assistida).

Ancoraremos nosso estudo nos princípios constitucionais, pois acreditamos serem eles os únicos com possibilidade de dar respostas satisfatórias às perplexidades que se apresentam quanto ao tema em exame. Inspira-nos afirmação de Sérgio Ferraz, ao tratar da relação entre as manipulações biológicas e os princípios constitucionais" (1):

"Em outras palavras, seja agora, enquanto não editada a pertinente normatividade, seja a partir de sua elaboração, e subseqüente vigência, o tema da manipulação genética tem de ser, a todo instante, calibrado à vista dos princípios constitucionais - única fórmula de assegurar a abertura das sendas do progresso, dentro dos marcos fundamentais livremente estabelecidos pela sociedade."



1. As Novas Técnicas de Reprodução Humana

A) Histórico

" (...) E disse também Deus: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança, o qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis, que se movem sobre a terra, e domine em toda a terra.

E criou Deus o homem à sua imagem: ele o criou à imagem de Deus, macho e fêmea os criou.

Deus os abençoou e disse: Crescei e multiplicai-vos e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar, e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra.

(...) Formou pois o Senhor Deus ao homem do barro da terra, e inspirou no seu rosto um assopro de vida, e foi feito o homem em alma vivente.

(...) Disse mais o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só: façamos-lhe um adjutório semelhante a ele.

(...) Infundiu pois o Senhor Deus um profundo sono a Adão: e quando ele estava dormindo, tirou uma de suas costelas, e encheu de carne o lugar donde se tinha tirado.

E da costela que tinha tirado de Adão formou o Senhor Deus a mulher, e a trouxe a Adão." (2)

Esse é o mito da criação, encontrado na Bíblia Sagrada dos cristãos. Explica a criação da espécie humana, amparando-se no poder de um Ser Supremo.

Os gregos, na busca de explicações racionais para os fenômenos naturais, tentaram explicar o surgimento do homem e como este transmitia a sua descendência. Coube a ARISTÓTELES formular a teoria da pré-formação, que foi popularizada por SÊNECA, grande orador romano:

"Na semente estão contidas todas as partes do corpo do homem que serão formadas. A criança que se desenvolve no útero da mãe tem as raízes da barba e do cabelo que nascerão um dia. Também estão presentes nesta pequena massa todos os contornos do corpo e tudo o que a posteridade descobrirá nele." (3)

Essa idéia de ARISTÓTELES, popularizada por SÊNECA, ficou conhecida como teoria da pré-formação, e se revelou tão sedutora que mesmo quando o microscópio foi inventado, 2000 anos depois da época da Grécia Antiga, os primeiros cientistas que examinaram os espermatozóides julgaram ver um homúnculo no interior.

Apenas no final do séc. XIX os cientistas iniciaram pesquisas a respeito do desenvolvimento embrionário. Nesse período descobriram que o óvulo desempenhava papel importante para a fecundação humana, desmitificando a idéia de que apenas o homem, com seu espermatozóide, era o responsável pela geração de vida humana, sendo a mulher considerada mero receptáculo para o novo ser.

Em meados do séc. XX, foi descoberto o processo de meiose celular, que originava as células reprodutoras, e, através da união do espermatozóide com o óvulo, fazia surgir um pequeno ser, possuidor de metade do material genético da mãe e metade do pai.

Apenas na década de 50, graças aos trabalhos de dois grandes geneticistas, de nomes WATSON e CRICK, foi possível desvendar a estrutura do DNA, o material genético primordial de todo ser humano. Daí para frente, os avanços na área da genética foram espantosos e em curto espaço de tempo foi possível o desenvolvimento de técnicas de manipulação do material genético e de fertilização humana em laboratório.

O final da década de 1970 assistiu estupefato o que nunca se acreditou ser possível realizar: o nascimento de bebês de proveta. O delírio de Aldous Huxley (4) ganhava forma e se tornava realidade. Em 20 de julho de 1978, nascia Louise Joy Brown, no General Hospital, na cidade de Oldham (Inglaterra), graças ao trabalho dos doutores Steptoe e Edwards, que vinham se dedicando à pesquisa há mais de quinze anos. (5)

Após esse fato espantoso, vários outros bebês de proveta surgiram em todo o mundo. Aperfeiçoaram-se, outrossim, as técnicas de reprodução artificial, surgindo novas tecnologias na área. Tudo isso será explicado no próximo tópico.

B) Reprodução Medicamente Assistida

As tecnologias de reprodução medicamente assistida inserem-se no contexto mais amplo dos cuidados relativos à infertilidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), infertilidade é a ausência de concepção depois de pelo menos dois anos de relações sexuais não protegidas. Os fatores de infertilidade podem ser absolutos ou relativos, dando origem, respectivamente, à esterilidade ou à hipofertilidade. A primeira deriva de situações irreversíveis em que a concepção só será possível por meio de técnicas de reprodução medicamente assistida. Nas situações de hipofertilidade, como infertilidades de causa inexplicada, a concepção poderá ser conseguida, em alguns casos, por terapêuticas tradicionais. (6)

As técnicas de reprodução medicamente assistida, também denominadas de técnicas de inseminação artificial, classificam-se em dois grandes gêneros: inseminação artificial homóloga ou simplesmente inseminação homóloga e inseminação heteróloga.

Diz-se que uma inseminação é homóloga quando realizada com o sêmen do próprio marido, e heteróloga, quando feita em mulher casada com sêmen originário de terceira pessoa ou, ainda, quando a mulher não é casada.

Recorre-se à inseminação heteróloga quando a esterilidade é indiscutível.

Diversas são as causas de esterilidade masculina, mas as razões mais freqüentes continuam sendo a ausência completa de espermatozóides (azoospermia), ou quando a produção de espermatozóides é alterada (azoospermia secretória). (7)

Como técnicas principais atualmente disponíveis podemos destacar: inseminação artificial (IA), transferência intratubária de gametas (GIFT), transferência intratubária de zigotos (ZIFT), fertilização in vitro seguida de transferência de embriões (FIVETE). Pode-se, ainda, recorrer a pessoas que carreguem o embrião, caso de impossibilidade física da mulher, situação que ficou vulgarmente conhecida como "mães de aluguel", mas que preferimos denominar "mães de substituição".

Importante ressaltar que qualquer dessas técnicas podem ser utilizadas ora de forma homóloga, ora de forma heteróloga. O que vai definir como homólogo ou heterólogo será a proveniência do material biológico utilizado. A seguir, explicitaremos de forma sucinta cada uma dessas técnicas, para, mais à frente, discutirmos seus principais problemas tendo como balizas os princípios constitucionais consagrados na Constituição Brasileira de 1988.

C) A Inseminação Artificial

A inseminação artificial é o processo pelo qual dá-se a transferência mecânica de espermatozóides, previamente recolhidos e tratados, para o interior do aparelho genital feminino.

A técnica de inseminação artificial é muito simples, consistindo basicamente em obtenção dos espermatozóides, seja do marido, seja de terceira pessoa, através da masturbação ou de massagens nas vesículas seminais. Depois de vários processos de seleção dos espermatozóides, estes estão prontos para ser implantados no corpo da mulher, através da simples colocação no fundo do canal vaginal, podendo-se utilizar pílulas de espermatozóides, inventadas pelo professor MILTON NAKAMURA, da Universidade de São Paulo.

A mecânica mais simples, sem dúvida, supondo-se a sanidade dos gametas, seria a coleta do sêmen com a imediata introdução no corpo da mulher, donde se falar em auto-inseminação, possibilidade exitosa se a mulher estiver na época da ovulação e não sofrer de nenhuma deficiência funcional ou orgânica. Essa introdução pode ser feita usando-se cânulas ou seringas. Isso permite a simplicidade da técnica e a ausência quase que total de riscos para a receptora. (8)

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É possível, ainda, o congelamento do sêmen recolhido, quando este não é automaticamente implantado no corpo da mulher. Pelas técnicas de crioconservação (congelamento de gametas) existentes na atualidade, pode-se manter o sêmen com suas características inalteradas por um período de até 20 anos. Assim é que foi notícia em revista de grande circulação aqui no Brasil a façanha de um hospital do estado americano da Califórnia, que conseguiu a concepção de um gêmeo de um menino de sete anos de idade. Essa proeza que, ao mesmo tempo, assusta, só foi possível graças ao congelamento de espermatozóides. (9) E, o congelamento de óvulos, técnica que parecia impossível, foi noticiada em outubro de 1997, como o mais novo avanço na área de reprodução artificial. (10)

O alongamento na discussão de técnica tão simples justifica-se, como se verá adiante, pelo fato de que todos os outros métodos são derivados da inseminação artificial.

D) A Transferência Intratubária de Gametas

Idealizada pelo médico argentino Ricardo Ash, a transferência intratubária de gametas (GIFT, sua sigla em inglês), consiste em captar os óvulos da mulher através de laparoscopia, exame endoscópico da cavidade abdominal através de uma pequena incisão na parede do abdome (11), ao mesmo tempo que se capta o esperma do marido. Na mesma operação, colocam-se ambos os gametas em uma cânula especial, devidamente preparados, introduzindo-os em cada uma das trompas de Falópio, lugar onde se produz naturalmente a fertilização. Se tudo transcorre normalmente, os espermatozóides penetram em um ou mais óvulos, formando-se o embrião. Este descerá dentro das trompas até o útero, de forma tal que a concepção se produzirá integralmente no corpo da mulher. O grande problema é a baixa porcentagem de êxito desta técnica, figurando entre 35 a 40 % (12). Outro problema, comum às técnicas que não se utilizam apenas de métodos físicos, é a grande possibilidade de concepção de gêmeos. Isso se explica pelo fato de, ao se utilizar esse método de reprodução artificial, recolherem-se vários óvulos, para se garantir alguma margem de sucesso.

E) A Transferência Intratubária de Zigotos

Por meio da transferência intratubária de zigotos (ZIFT, em inglês), ambos os tipos de gametas são postos em contato, in vitro, em condições apropriadas para a sua fusão. O zigoto ou zigotos resultantes são transferidos para o interior das trompas uterinas.

A grande diferença da ZIFT em relação à GIFT é que, na primeira, a fecundação se realiza fora do corpo da mulher, enquanto na segunda, o encontro do óvulo com o espermatozóide, formando o embrião, ocorre nas trompas. (13)

Possui a ZIFT as mesmas restrições apresentadas pela GIFT, ou seja, baixa porcentagem de êxito e sobra de vários zigotos não colocados no corpo da mulher. Esses zigotos são conservados congelados até que o casal decida o que fazer com ele, surgindo problema ético-jurídico de monta, que será analisado mais a frente.

F) A Fertilização In Vitro Seguida da Transferência de Embriões

A fertilização in vitro seguida da transferência de embriões, ou simplesmente FIVETE (sigla em inglês), consiste na técnica segundo a qual o zigoto ou zigotos continuam a ser incubados in vitro no mesmo meio em que surgiram, até que se dê a sua segmentação. O embrião ou embriões resultantes (estágio de 2 a 8 células) são, então, transferidos para o útero ou para as trompas. É a fertilização em laboratório, conhecida como bebê de proveta.

Difere da ZIFT pelo fato da transferência ocorrer após a segmentação do zigoto, quando este já é denominado de embrião. (14)

G) As Mães de Substituição

Por fim, nesse breve esforço de caracterização de algumas práticas concernentes à reprodução artificial, temos o que vulgarmente se chamou de "mães de aluguel", mas que preferimos, por razões a serem explicitadas mais a frente, denominar de "mães de substituição".

Convém ressaltar que não se trata de uma técnica biológica, mas sim da utilização de mulheres férteis que se dispõem a carregar o embrião, durante o período de gestação, pela impossibilidade física da mulher que recorreu aos Centros de Reprodução de suportar o período gestacional.

Essa prática tem tido repercussões bastante negativas, pelo fato de, muitas vezes, a mãe substituta se afeiçoar ao ser que vai gerar, descumprindo a obrigação contratual de devolver o recém-nascido à mulher que a contratou.

Nos países desenvolvidos, esse fato tem causado grandes discussões, sendo na maior parte deles vedado o uso das mães de substituição. Tudo isso será examinado quando tratarmos das questões jurídico-constitucionais que envolvem os métodos de reprodução artificial.



2. As Novas Técnicas de Reprodução Humana e os Direitos Reprodutivos

Examinaremos, a partir de agora, a temática das novas técnicas de reprodução humana sobre o prisma jurídico-constitucional. São essas técnicas direitos constitucionalmente garantidos? Quais as características desses direitos, se realmente assim são considerados? Devemos, no entanto, para uma compreensão melhor de problema tão intrincado, olhar para o passado e fazer a reconstrução dos direitos fundamentais, tendo como marco as gerações de direitos, elaborada de forma magnífica por NORBERTO BOBBIO.

Segundo esse autor, os direitos humanos ou fundamentais podem ser agrupados em gerações sucessivas e complementares, gerações essas surgidas em íntima relação com o grau de evolução do Estado. Os direitos de primeira geração surgiram na primeira fase do Estado Moderno, o Estado de Direito. Eram direitos de liberdade, igualdade e segurança basicamente. Num contexto político em que se entendia que o indivíduo era tanto mais livre quanto menos o Estado interviesse em sua vida particular, constituíam-se esses direitos uma garantia contra os abusos do poder estatal. Era o período do liberalismo econômico, refletido no pensamento do "laissez-faire, laissez-passer", que acabou por influenciar a esfera política, gerando o que se denominou de Estado Mínimo.

Mas, devido a grandes modificações sociais, políticas, econômicas e culturais, o Estado foi obrigado a intervir no domínio econômico. Passou a regular a atividade econômica, a intervir sempre para minorar as desigualdades nas relações entre os indivíduos. Surge, então, o Estado de Bem-Estar Social e, com ele, os direitos de segunda geração, não considerados como superiores em relação aos de primeira, mas complementares, englobando aqueles e lançando uma nova interpretação em relação a eles. São os direitos relativos ao trabalho, saúde, transporte, etc.

O Estado de Bem-Estar conseguiu por muito tempo garantir um mínimo de igualdade entre seus membros. Mas, em decorrência de crises econômicas e até mesmo crises internas nos Estados de Bem-Estar, esse modelo começa a apresentar problemas. Passa-se a elaborar um novo modelo de Estado, denominado de Estado Democrático de Direito, uma nova alternativa para a resolução dos problemas que o Estado Social não havia conseguido resolver. (15)

É nesse novo paradigma estatal que surgem os direitos de terceira (direito ao meio ambiente equilibrado, consumidor, patrimônio histórico, etc) e quarta gerações (16) (direitos reprodutivos, material genético, etc). Esse modelo estatal caracteriza-se principalmente pela reconstrução de conceitos como cidadania e soberania. Essas noções são baseadas na idéia de ação comunicativa racionalmente fundada no seio da sociedade, ou seja, são conceitos que devem ser construídos pelas pessoas no seu dia a dia, através da comunicação e do diálogo. (17)

Ressalte-se que no paradigma do Estado Democrático de Direito há uma grande inovação nos conceitos de público e privado. O público não se confunde mais com o estatal; é agora o próprio espaço social, onde se desenvolvem as ações comunicativas. É nesse contexto que se devem entender os direitos reprodutivos, dentre eles podendo-se destacar o direito à integridade do material genético, o direito a ter filhos e de deixar descendentes, a própria sacralidade do corpo com a proibição do comércio de partes do corpo humano (art. 199, parágrafo 4º da Constituição Federal).



3. Problemas Jurídicos Decorrentes das Novas Técnicas de Reprodução Humana

Vamos agora examinar algumas questões palpitantes sobre as novas técnicas de reprodução humana. É bem de ver que não temos a pretensão de esgotar tema tão vasto e complexo. Nossa tarefa será colocar alguns problemas, sempre balizados pelos princípios constitucionais.

Nas páginas anteriores, discorremos sobre os aspectos biológicos das técnicas de reprodução humana. Se assim fizemos, foi com o objetivo de aclarar algumas noções, para que não repetíssemos posteriormente.

As grandes discussões que surgem na área das técnicas de reprodução humana dizem respeito a uma questão básica e central: o congelamento do material genético, para posterior implante no corpo da mulher. Questões secundárias também surgem, como o problema das mães de substituição. Na primeira parte, trataremos do congelamento de embriões e espermatozóides. E, no final, das mães de substituição.

Já dissemos anteriormente que as técnicas denominadas de GIFT, ZIFT e FIVETE, se utilizam da técnica de congelamento, seja de embriões, seja de material genético, seja de zigotos, para o posterior implante no corpo da mulher. Por isso, surgem questões palpitantes, a saber: por quanto tempo se deve deixar esse material congelado?; o que fazer com o material congelado que não foi utilizado?

São questões de difícil resolução, examinadas agora no âmbito dos princípios constitucionais, com o escopo de delinear as principais perplexidades referentes ao tema. Sim, porque não temos a pretensão de apresentar soluções prontas e acabadas, até porque elas não existem. E não existem, pelo simples fato de que essa área da pesquisa humana está extremamente relacionada com as visões de mundo, conceitos e preconceitos do sujeito que produz o conhecimento. Assim, é possível, para uma mesma questão sobre um tema da preocupação bioética (manipulação genética, reprodução artificial, clonagem, etc), serem apresentadas várias respostas, em decorrência da influência do sujeito que escreve.

As técnicas retro-referidas são utilizadas para se tentar sanar problema de fertilidade. Até aí, nada mais humano do que tentar dar filhos a quem a natureza não permitiu. O problema surge em decorrência das técnicas utilizadas. Ora, todas essas técnicas se utilizam de uma super-estimulação hormonal, com o objetivo de coletar vários óvulos numa mesma menstruação. Isso se deve pelo fato de que as técnicas de reprodução possuem um índice baixo de êxito, índice que é aumentado se forem implantados vários embriões no corpo da mulher. Por razões de segurança médica, implantam-se cerca de quatro embriões, tendo-se, dessa forma, uma grande probabilidade de ocorrência de gêmeos. O problema é que não são apenas quatro óvulos que são retirados do corpo da mulher, quando da super-estimulação hormonal; e, pior, todos os óvulos retirados são fecundados, significando que, além dos quatro embriões implantados no corpo feminino, temos ainda outros congelados no laboratório. Resta-nos perguntar: esses embriões são seres humanos? A partir de que momento podemos nos referir a uma vida humana?

Na França, tem-se assentado que só se considera vida humana depois de 14 dias da fecundação, por ser esse tempo a época aproximada do surgimento do tecido nervoso. Esse critério não nos parece aceitável, pois logicamente um ser não-humano, não se pode tornar ser humano, da noite para o dia. Cremos que assim que as duas células sexuais se unem, formando uma só célula, teríamos um ser humano, pelo menos em potencial. Por conseqüência, os embriões sobrantes não podem de forma alguma ser destruídos, em respeito aos princípios assegurados no artigo 5º de nossa Constituição. O grande problema é que nossa Constituição também garante como direito fundamental a intimidade, a vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 5º, X), gerando um conflito de princípios: o direito à vida do embrião versus o direito à intimidade da mulher. Perguntamo-nos, então: pode a mulher pedir a destruição dos embriões sobrantes?

No nosso entender, a resposta aqui é também negativa. Quando há choque de princípios, como no caso em tela, esse choque é resolvido não com a eliminação de um princípio, mas com a valoração, no caso concreto, dos princípios. (18) Assim, nesse caso, temos assente que o princípio da vida humana, e mais, da dignidade da vida humana é mais importante do que intimidade, vida privada, ou qualquer outro princípio que se queira invocar no caso concreto. A própria Constituição, no entender de CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, em brilhante artigo editado na Revista da Ordem dos Advogados do Brasil, foi toda estruturada para defender a vida e a dignidade da pessoa humana. (19)

Além da proteção constitucional da vida humana, estabelecida no art. 5º, o nosso ordenamento ainda cuida, no plano infraconstitucional, da proteção do nascituro, ou seja, o ser humano que ainda não chegou a nascer. É o que estabelece, de forma clara, sucinta e objetiva, o Código Civil, no seu artigo 4º. Dispõe o artigo citado:

Art 4º. A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.

Assentada, então, a impossibilidade de destruição dos embriões sobrantes, o que fazer com eles? Esse é o grande problema a ser resolvido. Têm-se algumas possibilidades. Pode-se doar os embriões, mas a possibilidade de rejeição em decorrência de ser um corpo estranho é muito grande. Pode-se deixar congelado para uma nova implantação no corpo da mulher, caso ela queira ter mais filhos. Mas, pergunta-se, e se ela não quiser?

Realmente, é um problema de grande complexidade, e qualquer solução pensada trará com ela milhões de outros problemas. Como disse no início, não tenho pretensão de dar uma solução única, até porque ela não existe. Não existe no plano legal (inexiste lei no Brasil sobre o assunto), não existe no plano teórico (poucos autores brasileiros têm se dado conta do problema e apresentado soluções satisfatórias). O ponto positivo de se levantar um problema é que podemos, a partir de agora, começar a pensar soluções éticas, jurídicas e morais adequadas.

Devemos, nesse momento, abordar a questão dos direitos do casal que recorre às técnicas de reprodução. Deve o casal ter toda a informação, por parte do médico responsável bem como do Centro de Reprodução. Deve o médico dar todas as informações necessárias sobre a porcentagem de êxito, o número de vezes que o casal deverá ir ao Centro, os perigos da técnica, qual a melhor técnica a ser utilizada no caso concreto, bem como todo o procedimento que possibilitará ao casal ter o filho tão desejado. Caso o médico não dê todas as informações, poderá ser responsabilizado solidariamente com o Centro em que trabalha. Sempre que um casal recorrer a um Centro de Reprodução Humana, deve este apresentar um documento, que deverá ser assinado pelos beneficiários da técnica de reprodução, declarando que receberam todas as informações sobre o procedimento a ser utilizado, isentando de responsabilidade o Centro e o médico, caso não haja sucesso. É importante ressaltar que a obrigação do Centro e do médico é de meio, e não de resultado, só sendo eles responsabilizados por dolo ou culpa, no caso de falta de diligência no uso do procedimento. (20)

Resta abordar o problema das mães de substituição. Questão que considero um pouco mais simples. Utiliza-se a técnica de mães de substituição, ou seja, contrata-se u´a mulher para carregar o embrião, pelo fato da mãe não poder fazê-lo, em decorrência de problemas biológicos. No Brasil, essa prática deve ser terminantemente vedada, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana. Ora, a mulher que se dispõe a carregar o embrião por nove meses se apega ao ser que cresce dentro de suas entranhas. Como fica o sentimento dessa mulher, quando da entrega desse filho, que ela ajudou a nascer? Ela raciocina e, com toda razão, que esse filho é muito mais dela do que do casal que com ela contratou. Ora, foi ela que suportou todas as dificuldades durante nove meses e, muitas vezes, aprendeu a amar o bebê, que, de estranho, passou a ser o seu bebê. É por tudo isso, que, não raras vezes, a mulher que carrega o bebê se recusa a devolvê-lo ao casal contratante após o parto. Nos E.U.A, isso tem ocorrido de forma recorrente, gerando grandes disputas nos tribunais. (21)

Essa prática da mãe de substituição, não deve ser acolhida no Brasil porque o direito de ter filhos entra em choque com o princípio da dignidade da pessoa humana, alicerce do nosso Texto Fundamental.

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Sobre o autor
José Emílio Medauar Ommati

acadêmico de Direito na UFMG, estagiário do Escritório Campos & Mendes Advogados Especializados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OMMATI, José Emílio Medauar. As novas técnicas de reprodução humana à luz dos princípios constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1854. Acesso em: 29 mar. 2024.

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