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O contrato de gestão entre o poder público e organizações sociais como instrumento de fuga do regime jurídico administrativo

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22/02/2011 às 16:51
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2 DISCUSSÕES DOUTRINÁRIAS ACERCA DO CONTRATO DE GESTÃO

2.1 LEGALIDADE DA DELEGAÇÃO DOS SERVIÇOS SOCIAIS

Conforme amplamente explanado, a Lei n°9.637/98 prevê a possibilidade de delegação às organizações sociais de serviços originariamente prestados à população pela Administração Pública. Assim, nos termos do convencionado no contrato de gestão, a entidade privada passa a gerir os serviços em substituição ao Poder Público, desincumbindo-se este de seu ônus, e cabendo-lhe apenas fomentar as atividades das entidades privadas.

Segundo o entendimento de parte da doutrina, se faz inadmissível a delegação da execução dos serviços públicos de interesse social a particulares, haja vista que a Constituição Federal expressamente prevê em diversos de seus dispositivos o dever do Estado na prestação direta de tais serviços, em especial a educação, a saúde e a seguridade social [79].

Um dos preconizadores deste entendimento é Celso Antônio Bandeira de MELLO, o qual defende a ideia de que os serviços de interesse da coletividade não podem ser prestados exclusivamente por entidades do terceiro setor, afinal, o Poder Público não pode eximir-se de desempenhá-los, motivo pelo qual lhe é vedado esquivar-se deles e, pois, dos deveres constitucionais aludidos pela via transversa de ‘adjudicá-los’ a organizações sociais. Segue-se que estas só poderiam existir complementarmente, ou seja, sem que o Estado se demita de encargos que a Constituição lhe irrogou. [80]

Outro não é o entendimento de Weida ZANCANER, ao asseverar que

Liberdade tem um significado amplíssimo em nosso sistema jurídico, e para que o homem possa exercitar sua liberdade, esse direito individual com a amplitude que lhe é assegurado pela Lei Magna, os direitos sociais prescritos na Constituição de 1988 têm que ser implementados e o Estado tem que se mostrar presente, sob pena de perecimento do primeiro. [81]

Nesse mesmo sentido, GABARDO defende que o fato de ser permitida a exploração pela iniciativa privada de atividades prestadas pelas organizações sociais, como educação, saúde e previdência, trata-se de um "mero resultado do tipo de coordenação econômica escolhido pelo constituinte", contudo, o constituinte "atribuiu responsabilidade típica ao Estado no tocante à realização das políticas públicas, principalmente as sociais", o que torna inafastável sua competência própria e direta para gerir tais atividades. [82]

Seguindo esse mesmo raciocino, ROCHA acrescenta que "a atividade administrativa de fomento, enquanto subsidiária, não desonera a Administração de atuar, de modo direto, na prestação de serviços, como os de saúde e os de educação". [83]

Nesse mesmo sentido, é o pensamento de Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, ao asseverar que "é evidente que o contrato de gestão pode ser útil para o Estado e para suas empresas. Mas, há que ser respeitado o direito positivo. A autonomia a ser concedida às entidades com as quais o Estado celebra esse tipo de contrato não pode ultrapassar os limites definidos em lei". [84]

Sob outro enfoque, considerando-se a atuação das organizações sociais na prestação de serviços sociais de forma não-exclusiva, em complementação à atividade estatal, Juarez FREITAS pondera que "as organizações sociais podem desempenhar papel precioso de colmatação de lacunas da ação estatal. Todavia, não devem agir de maneira substitutiva ou excludente". [85]

Igualmente, preceitua VIOLIN:

Não percebemos que a Constituição Federal de 1988 tenha o ideário de transformar o Estado em subsidiário na ordem social, ao contrário do que argumentam alguns autores, uma vez que a Carta Magna utiliza expressões como participação da comunidade, participação complementar de instituições privadas e colaboração da sociedade nos serviços públicos sociais (Ordem Social, art. 194 e seguintes da Constituição Federal), deixando claro o caráter do Estado como principal responsável nessa demanda, sempre, é claro, de forma democrática. [86]

Ademais, acrescenta mencionado autor que "os serviços sociais devem obrigatoriamente ser exercidos pelo Estado, sob o regime de direito público, como serviços públicos sociais. Eles diferem dos serviços públicos privativos, uma vez que estes são privativamente de titularidade do Estado, prestados diretamente pelo Poder Público ou mediante concessão ou permissão de serviços públicos". [87]

Por seu turno, MODESTO defende a legalidade da atuação das organizações sociais em substituição ao Poder Público, ao estabelecer que

Não prover diretamente não quer dizer tornar-se irresponsável perante essas necessidades sociais básicas. Não se trata de reduzir o Estado a mero ente regulador. O Estado apenas regulador é o Estado Mínimo, utopia conservadora insustentável ante as desigualdades das sociedades atuais. Não é este o Estado que se espera resulte das reformas em curso em todo o mundo. O Estado deve ser regulador e promotor dos serviços sociais básicos e econômicos estratégicos. Precisa garantir a prestação de serviços de saúde de forma universal, mas não deter o domínio de todos os hospitais necessários; precisa assegurar o oferecimento de ensino de qualidade aos cidadãos, mas não estatizar todo o ensino. Os serviços sociais devem ser fortemente financiados pelo Estado, assegurados de forma imparcial pelo Estado, mas não necessariamente realizados pelo aparato do Estado. [88]

Seguindo o mesmo entendimento, FERRARI endossa que com a delegação de atividades estatais a entidades particulares, "a responsabilidade, a titularidade da prestação da atividade continua a ser confiada ao Estado pela ordem jurídica, apenas o seu exercício passa a ser encargo do particular". [89] Dessa forma, entende a autora que o Estado não se exime de sua obrigação constitucional de prestar serviços sociais essenciais com a delegação da prestação de tais serviços às organizações sociais.

Igualmente, Gustavo Justino de OLIVEIRA defende a legitimidade da atuação das organizações sociais nos termos estabelecidos pela Lei n°9.637, ao asseverar que

Entendendo o Poder Público que a melhor opção para o desenvolvimento de determinadas atividades seria a realização de uma parceria com a iniciativa privada e desde que respeitados os princípios e regras porventura aplicáveis ao caso concreto, nada obsta que tais parcerias sejam firmadas. Portanto, deve ficar claro que a Constituição de 1.988 não veda a parceirização público-privada para a realização dessas atividades sensíveis; ao contrário, os alberga e incentiva, sobremaneira. [90]

Com base nos posicionamentos expostos, observa-se que existem interpretações contraditórias do texto constitucional, no que se refere à possibilidade ou não de o Poder Público delegar integralmente a execução dos serviços públicos de interesse da coletividade, como os de saúde, educação, assistência social, às organizações sociais por meio do contrato de gestão.

Cumpre anotar que, de fato, ao se analisar o texto da Carta Magna, não se pode definir com solidez se é cabível ao Poder Público repassar a entes privados a prestação de serviços sociais, conforme almejado pela Reforma do Estado de 1995.

Nesse passo, ROCHA conclui que "o modelo proposto pela Reforma do Estado não está adequado à nossa realidade constitucional, e ele não pode ser implementado sem prévia alteração da Constituição Federal". [91] No mesmo sentido, DI PIETRO defende que "não é possível, pura e simplesmente, ignorar o regime jurídico de direito público, sem que se promovam as alterações legislativas necessárias a essa finalidade". [92]

Outrossim, face a ausência de previsão constitucional, GABARDO concebe a delegação de serviços sociais às entidades do terceiro setor como uma hipótese de desvio de finalidade, nos termos a seguir transcritos:

A tendência da delegação dos serviços públicos não privativos do Estado ao terceiro setor dificilmente escapa do enquadramento em um claro caso de desvio de finalidade. Há desvio de finalidade no campo dos valores e também no campo dogmático-administrativo. Os motivos declarados, em geral, não são motivos reais, pois na verdade, a combinação entre mais controle do déficit público e menos controle das verbas assistenciais parece agradar tanto os agentes do aparelho estatal quanto às entidades, grupos e agentes vinculados a esta ‘sociedade civil prestacional’. [93]

Face ao exposto, observa-se que a Constituição Federal não autoriza de forma expressa a delegação dos serviços cuja execução compete à Administração Pública, o que faz nascer a discussão a respeito da constitucionalidade de tal medida, disposta em lei ordinária. Para alguns autores, o Poder Público não pode se eximir da obrigação constitucional de prestar diretamente os serviços de interesse social, enquanto que para outros, a prestação dos serviços públicos pelas organizações não retira a incumbência do Poder Público sobre tais serviços, não havendo que se falar em inobservância das normas constitucionais.

2.2 AS ATIVIDADES DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E O PROCESSO DE LICITAÇÃO

Como é cediço, o Estado, ao contrário da iniciativa privada, não possui a prerrogativa de alienar ou adquirir bens e contratar a prestação de serviços livremente, tendo, por sua vez, que cumprir severas normas preliminares para contratar com particulares.

Tais normas correspondem ao processo de licitação, que, pelas palavras de Celso Antônio Bandeira de MELLO, "é um certame que as entidades governamentais devem promover e no qual abrem disputa entre os interessados em com elas travar determinadas relações de conteúdo patrimonial, para escolher a proposta mais vantajosa às conveniências públicas". [94]

Nessa feita, nota-se que "o princípio licitatório impõe um comando expresso e uma regra geral ao Administrador Público, qual seja, o de que todas as contratações públicas devem ser precedidas de licitação", [95] com exceção das hipóteses de dispensa e inexigibilidade do certame, nos termos do disposto nos arts. 24 e 25 da Lei n°8.666/93.

Outrossim, há de se acrescentar que não são somente as entidades públicas que se submetem ao processo licitatório, mas, sim, toda e qualquer instituição, mesmo privada, que realize contratações utilizando-se de recursos públicos.

Diante disso, surge a indagação sobre a sujeição ou não das organizações sociais à licitação sob um duplo enfoque: em um primeiro momento para a celebração dos contratos de gestão, e em seguida, para a execução do contrato, com a utilização dos recursos públicos recebidos.

Como os demais pontos referentes às organizações sociais e o contrato de gestão, existem diversas divergências sobre a aplicação ou não do processo de licitação nas hipóteses regulamentadas pela Lei n°9.637/98. Diante disso, passa-se a demonstrar os diversos pontos de vista da doutrina sobre o assunto.

2.2.1 LICITAÇÃO PARA CONCESSÃO DO TÍTULO DE ORGANIZAÇÃO SOCIAL E CELEBRAÇÃO DO CONTRATO DE GESTÃO

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Conforme já mencionado, a Lei n°9.637/98, em seu art. 2°, II, estabelece ser ato discricionário da Administração Pública a concessão do título de organização social às entidades privadas que reúnam os requisitos exigidos pela lei. Dessa forma, inexiste qualquer critério que vincule a deliberação da autoridade administrativa, ficando a seu livre arbítrio decidir sobre a conveniência e oportunidade de conceder ou não o título de organização social à entidade interessada, e, consequentemente, celebrar contrato de gestão com a mesma.

Nessa feita, em um primeiro momento, infere-se que o Poder Público acaba por violar a regra de exigibilidade de prévio procedimento licitatório, afinal, além da total discricionariedade na concessão do título de organização social às entidades privadas, a Lei n°9.637/98 confere pleno direito às organizações sociais de celebrar contratos de gestão com a Administração, independente de qualquer certame preliminar.

Nessa feita, Sílvio Luís Ferreira da ROCHA defende a inconstitucionalidade da discricionariedade conferida ao Poder Público, "por violar o princípio da legalidade", [96] ao se atribuir total liberdade ao administrador para conceder ou não o título de organização social a entidades, mesmo que reúnam todos os requisitos exigidos pela lei.

Para o mencionado autor, a fim de se fazer observar o princípio da igualdade na concessão do título de organização social, dever-se-ia adotar o procedimento licitatório, "que, com base em critérios objetivos e imparciais, selecionasse entre as candidatas a que se mostrasse mais capacitada a receber o título de Organização Social". [97]

Levando em consideração o "programa de publicização", DI PIETRO defende que "se a intenção é extinguir um ente público e deixar que sua atividade seja absorvida por entidade privada, a escolha desta não poderia prescindir de licitação ou de outro procedimento adequado para assegurar o princípio da isonomia entre os possíveis interessados". [98]

Celso Antônio Bandeira de MELLO defende a indispensabilidade do processo licitatório no caso em exame, pois, "a ser de outro modo, a qualificação como organização social seria um gesto de ‘graça’, uma outorga imperial resultante tão-só do soberano desejo dos outorgantes, o que, a toda evidência, é incompatível com as concepções do Estado moderno". [99]

O mesmo autor tece severas críticas à desmedida arbitrariedade do Poder Público ao outorgar o título de organização social às entidades privadas, tendo-se em vista a desnecessidade de se "demonstrar habilitação técnica ou econômico-financeira de qualquer espécie. Basta a concordância do Ministro da área (ou mesmo do titular do órgão que a supervisione) e do Ministro da Administração". [100]

Gustavo Justino de Oliveira defende a dispensabilidade do processo de licitação para a concessão do título de organização social, no entanto, sustenta a necessidade de imposição de critérios de seleção das entidades para o recebimento da qualificação como organizações sociais, ao assim se pronunciar:

A rigor, não seria o caso de submeter-se a entidade a um processo de licitação, mas sim agregar ao procedimento legal uma fase de verificação, baseada em critérios objetivos, para a averiguação de sua capacitação técnico-gerencial e de comprovação de expertise na área em que suas atividades são desenvolvidas. [101]

Com relação à celebração do contrato de gestão, cumpre esclarecer que após a promulgação da Lei n°9.637/98, promoveu-se uma alteração na lei de licitações (Lei n°8.666/93), por meio da Lei n°9.648/98, tornando-se dispensável a licitação "para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão". [102]

Assim, nota-se que existe permissão legal para a celebração de contratos de gestão entre o Poder Público e as organizações sociais nos moldes previstos na Lei n°9.637/98, ou seja, sem prévio certame licitatório.

No entanto, a despeito da mencionada chancela legal, segundo a maioria dos doutrinadores, inexiste justificativa para a dispensa de prévia licitação para a celebração dos contratos de gestão, e, ao assim proceder, o Poder Público acaba por violar princípios constitucionais da Administração Pública, como o da impessoalidade e da igualdade.

Segundo aponta FERRARI, "para a assinatura do Contrato de Gestão é indispensável a realização de prévio procedimento licitatório, visto que a Administração Pública, não possui capacidade de dispor do interesse público ao seu talante". [103]

De acordo com o que leciona ROCHA, "a atividade de fomento deve ser impessoal e respeitar, outrossim, o princípio da igualdade. Ela deve evitar favorecer ou perseguir o beneficiário e assegurar a todos o direito de concorrer aos seus benefícios". [104] Em decorrência, "quando for impossível atender a todos os possíveis beneficiários, por escassez de recursos, melhor estabelecer entre eles um procedimento licitatório que privilegie uma solução definidora extremamente objetiva – como o sorteio -, se restar demonstrado que os participantes estão em situações idênticas". [105]

Segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO, qualquer pessoa que almeje estabelecer relações contratuais com o Estado tem de demonstrar minuciosamente sua capacidade para a tarefa a desempenhar, o que não se exige das entidades qualificadas como organizações sociais, para receber bens e recursos públicos e servidores públicos a expensas do Poder Público. "Trata-se, pois, da outorga de uma discricionariedade literalmente inconcebível, até mesmo escandalosa, por sua desmedida amplitude, e que permitirá favorecimentos de toda espécie". [106]

O mesmo autor arremata seu pensamento afirmando que

É inconstitucional a disposição do art. 24, XXIV, da Lei de Licitações (Lei 8.666/93) ao liberar de licitação os contratos entre o Estado e as organizações sociais pois tal contrato é o que ensancha a livre atribuição deste qualificativo a entidades privadas, com as correlatas vantagens; inclusive a de receber bens públicos em permissão de uso sem prévia licitação. [107]

No entanto, contrariando o pensamento dos doutrinadores citados, Gustavo Justino de OLIVEIRA defende a inaplicabilidade do processo licitatório para a celebração do contrato de gestão entre o Poder Público e as organizações privadas, pois, segundo seu entendimento, não haveria "quebra do princípio da isonomia, caso a escolha referida não se submetesse à licitação". [108]

Do exposto, vê-se que mesmo tendo sido alterada a Lei n°8.666/93, no sentido de permitir a celebração dos contratos de gestão entre o Poder Público e as organizações sociais sem prévio processo de licitação, a doutrina, em sua grande maioria, reprova a dispensa de licitação para tais hipóteses, afinal, como bem ressaltam, o dispositivo legal corrobora a violação a uma série de princípios constitucionais da Administração Pública..

2.2.2 LICITAÇÃO PARA A EXECUÇÃO DO CONTRATO DE GESTÃO – CONTRATAÇÃO COM PARTICULARES

Outro ponto que merece ressalva é o fato de a Lei n°9.637/98 não estabelecer regras sobre a utilização de recursos públicos auferidos pelas organizações sociais na execução do contrato de gestão, haja vista que apenas determina o dever de o órgão ou entidade supervisora da área de atuação correspondente à atividade fomentada fiscalizar a execução do contrato de gestão, mediante entrega de relatórios por parte da organização social (arts. 8° a 10 da Lei n°9.637/98).

No entanto, há os que defendem que não se pode admitir que as organizações sociais façam uso de recursos públicos na execução do contrato de gestão a seu livre arbítrio, pois, considerando-se que tais recursos não perdem o seu caráter público, certamente se submetem aos princípios administrativos, fazendo-se imperiosa de tais preceitos, em especial a observância do prévio processo licitatório.

Em consonância com o entendimento supra, após sete anos da promulgação da Lei n°9.637/98, o Decreto Executivo n°5.504/2005, trouxe regulamentação para a matéria, ao estabelecer em seu artigo 1°:

Os instrumentos de formalização, renovação ou aditamento de convênios, instrumentos congêneres ou de consórcios públicos que envolvam repasse voluntário de recursos públicos da União deverão conter cláusula que determine que as obras, compras, serviços e alienações a serem realizadas por entes públicos ou privados, com os recursos ou bens repassados voluntariamente pela União, sejam contratadas mediante processo de licitação pública, de acordo com o estabelecido na legislação federal pertinente.

Certamente, os contratos de gestão se caracterizam como "instrumentos congêneres" que envolvem repasse voluntário de recursos públicos da União, e, diante disso, inegável a aplicação da mencionada regra na contratação de organizações sociais com o Poder Público. Em função disso, observa-se a existência de exigibilidade de prévia licitação para contratações pelas organizações sociais, de execução de obras, compras, serviços e alienações, com a utilização de recursos públicos.

Hely Lopes MEIRELLES reconhece a aplicação das normas dispostas no Dec. 5.504/2005 na execução dos contratos de gestão, e acrescenta que preferencialmente devem as organizações sociais fazer uso da modalidade licitatória do pregão na forma eletrônica na contratação com terceiros, diante da natureza das operações realizadas. [109]

Outrossim, considerando-se a reconhecida exigência de prévia licitação para a execução do contrato de gestão, e a fim de otimizar a utilização dos recursos públicos, VIOLIN sugere "a alteração da legislação licitatória para que sejam criadas modalidades de licitação mais compatíveis para a celebração de acordos com as entidades do ‘terceiro setor’". [110]

Em arremate ao exposto, não se pode olvidar que o Ordenamento Jurídico deu tratamento adequado à matéria, ao estabelecer a exigibilidade de prévio certame licitatório para as contratações realizadas pelas organizações sociais na execução do contrato de gestão, afinal, tratando-se de recursos públicos, é cediço que sua utilização por entidades privadas merece regulamentação estrita, para que se garanta a justa e adequada atuação de tais entidades.

2.3 RECRUTAMENTO DE PESSOAL PELAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Conforme já mencionado, a Lei n°9.637/98 permite a cessão de funcionários públicos para prestar serviços junto às organizações sociais, custeados pelo próprio ente estatal. Em outras palavras, além de o Estado custear o quadro de pessoal das entidades, dispensa-se a prévia aprovação em concurso público para a ocupação das vagas, e servidores públicos, aprovados em concurso para a ocupação de determinado cargo, são desregradamente removidos para o trabalho junto às entidades.

Tal regra, como é de se supor, destoa do contexto de normas que orientam a Administração Pública, e diante disso, se tornou alvo de severas críticas por parte da doutrina

Para Celso Antônio Bandeira de MELLO, tal norma "aberra dos mais comezinhos princípios de Direito", e, segundo o mesmo autor,

Tais servidores jamais poderiam ser obrigados a trabalhar em organizações particulares. Os concursos que prestaram foram para entidades estatais, e não entidades particulares. Destarte, pretender impor-lhes que prestem seus serviços a outrem violaria flagrantemente seus direitos aos vínculos de trabalho que entretêm. [111]

ROTHENBURG, sob outro enfoque, defende a imprescindibilidade da realização de concurso público para o preenchimento das vagas junto às organizações sociais, pois, em sua opinião, "a forma de arregimentação de pessoal deve pautar-se por certa impessoalidade", afinal, "não é porque a prestação da atividade de interesse público não se faz diretamente pelo Estado, que o regime de Direito Administrativo fica completamente alijado". [112]

O mesmo autor ainda corrobora sua afirmação sob outro fundamento, ao defender que "o pessoal adequadamente selecionado e contratado para o desempenho das atividades de interesse público por meio de Organizações Sociais deve ter alguma estabilidade (...) para assegurar a continuidade adequada do serviço e o descomprometimento político-partidário (eleitoral)". [113]

Ainda com relação à polêmica em torno do quadro de pessoal das organizações sociais, MÂNICA questiona a constitucionalidade da Lei n°9.637/98, dentre outros fundamentos, pela "inexistência de limites salariais para pagamento de empregados com recursos públicos". [114]

DI PIETRO compartilha do mesmo entendimento, ao afirmar que

Enquanto para o servidor público o regime constitucional vigente é rico em restrições, para as organizações sociais a liberdade é total; o mesmo servidor que trabalhava na mesma entidade, a partir do momento em que esta muda sua roupagem, deixa de sofrer limitações quanto ao concurso público, ao teto salarial, a acumulação de cargos e tantas outras. [115]

Inegavelmente, a falta de imposições legais com relação à contratação de funcionários pelas organizações sociais corresponde a ato de total iniquidade, afinal, além de contrariar os objetivos da Reforma do Estado, de contenção de gastos, contrasta frontalmente com as normas constitucionais sobre servidores públicos. Assim, não se pode discordar das opiniões exaradas acima, ao criticar com rigor as disposições da Lei n°9.637/98 sobre o tema.

2.4 CONTROLE DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS

Outra questão de relevo no que tange ao tratamento jurídico conferido às organizações sociais é a míngua de previsão legal com relação ao controle exercido pela Administração Pública, no que toca à destinação dos recursos públicos auferidos pelas entidades

É de se ressaltar que os recursos destinados às organizações sociais para a execução do contrato de gestão não ficam consignados no orçamento da União, mas, sim, constituem receita própria das entidades beneficiadas. Desse modo, a execução do contrato de gestão não se sujeita aos ditames da execução orçamentária, financeira e contábil governamentais.

A respeito do controle administrativo das receitas despendidas com os serviços públicos, Celso Antônio Bandeira de MELLO pontua que

No Estado de Direito, a Administração Pública assujeita-se a múltiplos controles, no afã de impedir-se que desgarre de seus objetivos, que desatenda as balizas legais e ofenda interesses públicos ou dos particulares. Assim, são concebidos diversos mecanismos para mantê-la dentro das trilhas a que está assujeitada. Tanto são impostos controles que ela própria deve exercitar, em sua intimidade, para obstar ou corrigir comportamentos indevidos praticados nos diversos escalões administrativos de seu corpo orgânico central, como controles que este mesmo corpo orgânico exercita em relação às pessoas jurídicas auxiliares do Estado (autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mistas e fundações governamentais). [116]

Dessa forma, é de se vislumbrar que não é dado ao Estado expender recursos públicos de forma livre, sem se submeter à prestação de contas, afinal, em observância aos princípios constiucionais que lhe são impostos, assujeita-se a um rigoroso controle de gastos, tanto em relação à Administração direta como no que toca às entidades da Administração indireta.

O controle dos gastos públicos constitui um dos princípios basilares da Administração Pública, e ao tecer comentários a respeito da sua importância, Juarez FREITAS defende a participação popular em matéria orçamentária, e assevera que "a participação fiscalizatória direta é direito fundamental, cuja concretização tende a melhor tutelar a ação do Estado, simultaneamente em termos éticos e de eficiência, qualificando o espaço dominado pela democracia meramente formal". [117]

Nessa ótica, vem à tona a discussão sobre a aplicabilidade do controle de gastos públicos às organizações sociais, haja vista que, muito embora estas não se enquadrem na categoria de entes da Administração Pública indireta, utilizam-se de bens, recursos e pessoal concedidos pelo Estado, na consecução de atividades de interesse público.

A resposta à indagação pode ser extraída da própria Constituição Federal, que, com as alterações introduzidas pela Emenda Constitucional n°19/98, modificou a redação do parágrafo único do art. 70, que passou a assim estabelecer:

Art. 70. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou quem em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária

Incontroversamente, as Organizações Sociais, bem como as demais entidades que compõem o terceiro setor, enquadram-se no referido dispositivo legal, devendo, por conta disso, se submeter aos controles exercidos pela Administração Pública.

Nesse prisma, é a opinião de FERRARI:

Quando as Organizações Sociais estiverem usando, arrecadando, guardando, gerenciando ou administrando valor pelo qual a União ou entidade estatal responda, devem, obrigatoriamente, se submeter ao controle interno e externo, devendo atentar para o disposto no art. 12, da Lei n°9.637/98, pois neste são previstos os repasses possíveis de serem realizados pelo Poder Público para as entidades qualificadas como Organizações Sociais. [118]

Todavia, não obstante a existência de previsão legal quanto à obrigatoriedade de as organizações sociais prestarem contas das verbas públicas recebidas, há de se ponderar que, conforme anteriormente exposto, os idealizadores da Reforma do Estado conceberam a atividade das organizações sociais com base em um controle de resultados, ou seja, com a avaliação de desempenho das entidades, das metas atingidas, como forma de controle de sua atuação. Pelas palavras de Claudia COSTIN, por esse mecanismo, "controlam-se os resultados da ação pública, e não o cotidiano da gestão", com o que "diminui-se a burocracia e os gastos a ela relacionados e permite-se aos usuários dos serviços e aos cidadãos em geral saber como está sendo empregado o dinheiro público e a efetividade a eles prestado". [119]

Diante disso, há quem cogite a inaplicabilidade do controle administrativo nos termos ora explicitados, sendo aplicável, por seu turno, exclusivamente, o controle periódico dos resultados estabelecidos no contrato de gestão.

No entanto, FERRARI discorda de tal entendimento, ao asseverar que

Em sendo as Organizações Sociais instrumentos criados pela Reforma do Estado, para que este possa, por meio de simples atividade de fomento, tornar efetivo o interesse público, inadmissível conceber que sejam submetidas apenas ao controle finalístico de suas condutas, diante da atual crise política Brasileira e as reiteradas notícias de corrupção. [120]

A despeito de tais discussões, cumpre acrescentar que conforme entendimento firmado pelo Tribunal de Contas da União na decisão n°592/1998, as contas anuais das Organizações Sociais de fato devem ser submetidas a julgamento da Corte de Contas. Da mencionada decisão, há de se transcrever o seguinte trecho do relatório que motivou o voto do Ministro Relator Benjamin Zymle:

De acordo com o disposto na Lei das OS, os gestores dos recursos dos contratos de gestão se encontram sob a jurisdição dessa Corte de Contas não apenas quando derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte dano ao Erário, situação, aliás, na qual se enquadram todos que de alguma forma utilizam ou gerenciam recursos públicos, sejam pessoas físicas ou jurídicas, entidades públicas ou privadas, consoante comando constitucional ínsito no inciso II do art. 71 c/c o parágrafo único do art. 70 da Carta Magna. Mas também, esses gestores, por força da literalidade do comando legal acima transcrito, estão submetidos à fiscalização do TCU quanto a legalidade, legitimidade e economicidade de todos seus atos de gestão que envolvam recursos públicos. Ou seja, o controle externo a ser exercido sobre os contratos de gestão abarca, por imposição legal, o conjunto de atos de natureza financeira, orçamentária e patrimonial praticados pelos responsáveis na execução dos referidos contratos, no que diz respeito a recursos públicos, quanto a sua regularidade e legalidade. Além disso, em vista do comando constitucional contido no art. 70 da CF, a competência desta Corte inclui a fiscalização do aspecto operacional da gestão, o controle finalístico dos serviços públicos, natureza indubitável dos serviços a serem prestados pelas OS. [121]

Portanto, vê-se que embora a intenção dos idealizadores da reforma do aparelho do Estado fosse a submissão do contrato de gestão apenas a controle de resultados, o Ordenamento Jurídico acabou por impor-lhe o mesmo controle a que se submetem as demais entidades que laboram com recursos públicos, a fim de garantir a estrita observância das disposições constitucionais.

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Sobre a autora
Rachel Zolet

Advogada, especialista em Direito Público pela UNIBRASIL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZOLET, Rachel. O contrato de gestão entre o poder público e organizações sociais como instrumento de fuga do regime jurídico administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2792, 22 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18550. Acesso em: 5 nov. 2024.

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