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O contrato de gestão entre o poder público e organizações sociais como instrumento de fuga do regime jurídico administrativo

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22/02/2011 às 16:51
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3 QUESTÕES CONTROVERTIDAS DE ORDEM PRÁTICA

3.1 INEFETIVIDADE, LIBERALIDADE E ALTOS CUSTOS DOS CONTRATOS DE GESTÃO

Conforme amplamente mencionado, os principais objetivos da implantação do modelo de Administração Gerencial pela Reforma do Estado eram o oferecimento à população de serviços sociais de forma mais efetiva, com menor onerosidade ao Estado, a fim de que fossem proporcionados serviços de melhor qualidade à população, sem que o Governo tivesse que aumentar suas despesas.

No entanto, observa-se que tais objetivos não foram de fato atingidos, pois, de acordo com a constatação de especialistas, além de haver precariedade nos serviços prestados pelas entidades do terceiro setor, não houve efetiva redução dos gastos públicos.

Face à ausência de critério de seleção das organizações sociais, acaba-se por delegar poderes para a prestação de serviços sociais primordiais a entidades desprovidas de capacidade técnica e organizacional para a execução da atividade, o que, incontroversamente, obsta a consecução dos objetivos propostos pela Reforma do Estado.

A esse respeito, GABARDO assevera que

É coerente com a realidade brasileira a própria negação de direitos sociais mediante a sua pseudo-atribuição a entidades privadas (que não raras vezes carecem de infra-estrutura para a realização do serviço ou não detém know how suficiente para compreender o caráter da prestação assumida). Ou então, prestam serviços com objetivos que não são aqueles identificáveis no espírito do Estado social presente na Constituição, seja ela entendida como norma jurídica, seja como essência política. [122]

Tarso Cabral VIOLIN igualmente comunga do entendimento de que a abertura legal conferida às organizações sociais pode acabar por comprometer a garantia da efetividade de sua atuação e de redução nas despesas ao dispor que

O ‘terceiro setor’ também é passível de atuar com ineficiência e com falta de eficácia, não estando adstrito ao regime jurídico administrativo, sendo mal controlado pelo Poder Público e pela sociedade, sujeitas, assim, aos mesmos vícios da Administração Pública. Ressaltamos ainda que o ‘terceiro setor’ também gasta volumosa soma de dinheiro em suas atividades-meio, assim como ocorre com a Administração. [123]

Importante destacar que os direitos sociais estão elencados dentre as garantias fundamentais do cidadão, e diante disso, se faz inegável que os serviços públicos voltados à sua consecução devem ser prestados de forma mais otimizada possível, até porque, como é cediço, o administrador público "está obrigado a trabalhar tendo como parâmetro a busca da melhor opção". [124]

Ademais, no que toca à estrutura e organização das organizações sociais, que, conforme já comentado, tratam-se de requisitos fundamentais para a garantia de uma prestação de serviços adequado, DI PIETRO, critica incisivamente as entidades, ao sustentar que, na verdade, "são entidades fantasmas, porque não possuem patrimônio próprio, sede própria, vida própria", de modo que vivem às custas das verbas, pessoal e bens recebidos por conta do contrato de gestão celebrado com o Poder Público. [125]

Com relação à ampla liberalidade do Poder Público no que tange à contratação e remuneração de pessoal, DI PIETRO tece severas críticas à ausência de regulamentação na Lei n°9.637/98, conforme a seguir:

Se a entidade vai administrar dinheiro público, também não tem sentido a total ausência, na lei, de limitações salariais aos empregados dessas entidades; enquanto para o servidor público o regime constitucional vigente é rico em restrições, para as organizações sociais a liberdade é total; o mesmo servidor que trabalhava na mesma entidade, a partir do momento em que esta muda sua roupagem, deixa de sofrer limitações quanto ao concurso público, a teto salarial, a acumulação de cargos e tantas outras. A medida é contraditória com relação aos objetivos da Reforma Administrativa, especialmente, à contenção de despesas com quadro de pessoal. [126]

Isto posto, observa-se que a Lei n°9.637/98 falha ao inexigir que as organizações sociais apresentem razoáveis condições técnicas e estruturais para prestar os serviços aos quais se incumbem, pois, dessa forma, por certo que tendem a se arrimar ao Estado para obter meios de dar cumprimento ao contrato de gestão. Como consequência, é de se convir que nesses termos inexiste vantagem em repassar a prestação dos serviços sociais às organizações sociais, sendo mais conveniente que o Poder Público o fizesse diretamente.

3.2 O PROGRAMA NACIONAL DE PUBLICIZAÇÃO COMO MEIO DE PRIVATIZAÇÃO

Como já mencionado, a Lei n°9.637/98 prevê a possibilidade, por meio do Programa Nacional de Publicização de o Poder Executivo transferir às organizações sociais atividades realizadas por órgãos públicos.

Desse modo, as entidades privadas passam a prestar o mesmo serviço, não mais como serviço público, mas, sim, como atividade privada de interesse público, fomentada pelo Poder Público por meio do contrato de gestão. [127]

Destarte, observa-se que a Lei n°9.637/98 acaba por possibilitar uma forma de privatização de serviços estatais, "sob outra modalidade que não a venda de ações", [128] ao possibilitar a extinção de um órgão público e em seu lugar se criar uma entidade privada, ou, até mesmo, a transformação da entidade pública em organização social, de natureza privada.

Segundo Celso Antônio Bandeira de MELLO,

O Poder Público, sob o título paradoxal de ‘Programa Nacional de Publicização’, mediante decreto do Poder Executivo, estabelecerá diretrizes e critérios para qualificar organizações sociais que absorverão (por certo mediante contrato de gestão) as atividades de órgãos e entidades públicas a serem extintos (por lei, visto que de outro modo seria impossível) e cujas atribuições sejam as mencionadas no art. 1° da lei, isto é, os serviços públicos ali referidos. [129]

Para DI PIETRO, com o Programa Nacional de Publicização,

A ideia é que os próprios servidores da entidade a ser extinta constituam uma pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, e se habilitem como organizações sociais, para exercerem a mesma atividade que antes exerciam e utilizem o mesmo patrimônio, porém sem a submissão àquilo que se costuma chamar de "amarras" da Administração Pública. [130]

Já FREITAS assevera que é inadmissível que a "publicização", ao invés de incitar à complementaridade da prestação dos serviços sociais, conforme inicialmente proposto, possibilite a "privatização assistida" dos serviços sociais, "com cedência de pessoal, permissão de uso de bens públicos e valores, a par da remessa dos servidores para quadros em extinção, sem maior justificativa à luz do interesse público". [131]

Para MÂNICA, a transformação de entidades públicas em organizações sociais de fato corresponde a uma forma de privatização, e não de publicização, afinal, "a propriedade que antes era pública estatal passa a ser pública não-estatal: ocorre, portanto, um processo de transformação da propriedade estatal para a propriedade privada, ainda que ambas destinadas ao atendimento do interesse público". [132]

VIOLIN defende a mesma ideia, ao preceituar que

Se uma entidade pública é extinta e é firmado um contrato de gestão com uma entidade privada como forma de fomento, automaticamente o Estado está se abstendo de executar esta atividade transferindo-a aos entes privados. Assim, caso de privatização, e não publicização, que apenas poderia ser assim denominada se o Estado fosse dar caráter público a uma instituição que já exerça a atividade de interesse público. [133]

Gustavo Justino de OLIVEIRA, por sua vez, não vislumbra no modelo das organizações sociais um meio de privatização de funções sociais, afinal, segundo sua concepção,

A busca do legislador estaria mais voltada para um necessário realinhamento das funções estatais, que levariam não à privatização das atividades listadas no art. 1° da Lei n°9.637/98 (quando estas são desenvolvidas por entidades administrativas), mas à implantação de um novo modelo de gestão dessas atividades, um modelo de colaboração público-privado, desde que isso se justificasse como sendo o meio mais apto a ensejar a geração de melhores resultados da ação pública. [134]

O tema ora debatido, certamente, trata-se de um dos mais polêmicos no que tange à Lei n°9.637/98, uma vez que a possibilidade ou não de se extinguir uma entidade da administração pública indireta, ou de um órgão público, para no seu lugar atuar uma instituição privada, certamente contraria as mais manifestas normas constitucionais. Em face disso, conforme se passará a discorrer, tal matéria vem sendo debatida em Ação Direta de Inconstitucionalidade, juntamente com outras regras exaradas na Lei n°9.637/98.

3.3 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N° 1.923

Em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI n°1.923), o Partido dos Trabalhadores – PT e Partido Democrático Trabalhista – PDT, pretendem obter a declaração de inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei n°9.637/98. em especial, sustenta-se na referida ADI que o Programa Nacional de Publicização previsto pelo mencionado diploma legal implicitamente configura-se como um programa de privatização dos serviços sociais de prestação não exclusiva do Poder Público, visando a afastar a submissão ao regime administrativo e às suas limitações, com o intuito de fraude.

Além disso, sustenta-se na ADI que, paralelamente aos subsídios públicos auferidos pelas organizações sociais por meio do contrato de gestão, previa-se que as entidades obtivessem renda com a exploração econômica de suas atividades, o que leva a crer que os serviços públicos por elas prestados passariam a ser cobrados da população, correspondendo assim à sua privatização.

A ADI também critica a dispensa de licitação na celebração do contrato de gestão, na utilização de bens públicos e nas atividades das organizações sociais na execução do mencionado contrato, fazendo uso de recursos públicos, bem como a dispensa de concurso público para a contratação de seus servidores (prestadores de serviços públicos, substitutos dos ocupantes de cargos efetivos).

Questiona-se também a constitucionalidade da cessão de servidores públicos às custas do Poder Público, a insubmissão das organizações sociais aos controles interno e externo, a exoneração da Administração Pública da prestação direta dos serviços nas áreas de saúde e educação e na defesa do meio-ambiente e patrimônio histórico, artístico e cultural e no acesso à ciência (afinal, a Constituição Federal estabelece que as entidades privadas podem prestar tai serviços de forma meramente complementar, não exclusiva).

Finalmente, alega-se na ADI que a Lei n°9.637/98 viola a norma constitucional que estabelece as funções institucionais do Ministério Público, pois em seu artigo 10, referido diploma legal determina que "havendo indícios fundados de malversação de bens ou recursos de origem pública", [135] os responsáveis pela fiscalização do contrato de gestão representarão ao Ministério Público para que sejam tomadas as providências cabíveis, o que retira a autonomia do Ministério Público no exercício de suas funções de zelar pelo efetivo respeito aos direitos assegurados pela Constituição Federal, ficando subordinado à mencionada representação.

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O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, indeferiu a medida cautelar de suspensão da eficácia de dispositivos da Lei n°9.637/98 pleiteada pelos requerentes da ADI, sobretudo em razão do não-reconhecimento do periculum in mora na manutenção da vigência da mencionada Lei, afinal, o julgamento da liminar se arrastou por quase dez anos (a ADI foi proposta em 01/12/1998, logo após a promulgação da Lei, e teve o julgamento da liminar finalizado apenas em 01/08/2007).

No entanto, em que pese o indeferimento da liminar, cabe registrar que grande parte dos Ministros posicionou-se quanto ao mérito do pedido, e seus votos seguiram posicionamentos distintos, com base em diversos fundamentos. Alguns ministros declararam a constitucionalidade da lei, em todos os dispositivos impugnados, outros, no entanto, assentiram na inconstitucionalidade de apenas alguns dos dispositivos da lei, contudo, como já mencionado, indeferiram o pedido liminar em razão do tempo decorrido. O único a reconhecer a procedência do pedido liminar e a consequente inconstitucionalidade da Lei, nos termos do pedido inicial, foi o Min. Joaquim Barbosa.

Há de se destacar que o Ministro Eros Grau inicialmente havia deferido o pedido liminar, contudo, por conta do tempo decorrido até o julgamento final, acabou por mudar o seu voto. No entanto, com relação ao mérito do pedido, o Ministro, fazendo uso da expressão consagrada por Sepúlveda Pertence, declarou a "inconstitucionalidade chapada" [136] da mencionada lei, tamanha a contrariedade que existe entre seus dispositivos e as normas constitucionais.

A referida ADI aguarda julgamento, e recentemente houve a inclusão de entidades como amici curiae no processo, ante o reconhecimento da relevância da matéria debatida.


CONCLUSÃO

O contrato de gestão, previsto pela Lei n°9.637/98, celebrado entre as organizações sociais e entidades do Poder Público, fora instituído com a finalidade de garantir a adequada prestação dos serviços públicos de ordem social, sem causar ao orçamento público grande desfalque.

Pela mencionada Lei, as entidades do terceiro setor são incumbidas de desempenhar os serviços sociais, em especial nas áreas de saúde e educação, em substituição ao Estado, proporcionando à população maior eficiência e qualidade nos serviços prestados. Para tanto, as entidades são beneficiadas com recursos e bens públicos, bem como a cessão de pessoal para o trabalho a ser desempenhado.

No entanto, conforme se demonstrou no presente trabalho, a Lei n°9.637/98 possui várias falhas, ao estabelecer condições demasiadamente benévolas às organizações sociais, condições essas que muitas vezes acabam por contrariar o regime jurídico administrativo imperante na prestação de serviços públicos.

Além disso, a Lei ora tratada dispensa uma série de exigências constitucionais à prestação de serviços sociais por parte das entidades do terceiro setor, o que vem oportunizando severas críticas da doutrina e até mesmo a discussão sobre a constitucionalidade da Lei perante o Supremo Tribunal Federal.

Diante de tais circunstâncias, a presente pesquisa buscou expor o ponto de vista dos principais doutrinadores que se debruçam sobre o assunto, e, ao coligir suas ideias, pôde-se reconhecer que a Lei n°9.637/98 de fato apresenta diversos lapsos, pois, em que pese o entendimento defendido, contrário ou favorável à atuação das organizações sociais na execução do contrato de gestão, todos os juristas são unânimes em afirmar que tal diploma legal possui sérias imperfeições.

Nesse passo, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, contrária à execução de serviços públicos por meio de contratos de gestão, defende que "são inegáveis o conteúdo de imoralidade contido na lei, os riscos para o patrimônio público e para os direitos do cidadão", [137] opinião essa partilhada por diversos outros juristas, dentre eles Celso Antônio Bandeira de MELLO, o qual sustenta a "flagrante inconstitucionalidade de que padece tal diploma". [138]

Por outro lado, na defesa da atuação das organizações sociais no cenário das atividades públicas de grande relevância, FREITAS reconhece a existência de grande número de falhas na Lei n°9.637/98 contudo, sustenta que "tais desalinhos não são de porte se tornarem paralisantes e, nos limites propostos, são sobrepujáveis, em larga medida, pelos benefícios do florescimento deste instituto (organizações sociais)". [139]

Igualmente, na defesa da atuação das organizações sociais na prestação dos serviços de interesse da coletividade, e corroborando o entendimento que defende a observância das regras de Direito Público, OLIVEIRA assim assevera:

As ações públicas atualmente devem estar voltadas a produzir maiores e melhores resultados; devem estar calcadas no critério da eficiência administrativa e, por isso, dependendo da área em que devam ser desenvolvidas e das necessidades que devam satisfazer, uma sinergia mais acentuada entre o público e o privado pode revelar-se a melhor opção a ser encabeçada pelo Poder Público. Nesse sentido, justificar-se-ia a aproximação mais intensa entre as esferas pública e privada, desde que ocorram a partir de bases jurídico-normativas transparentes, com respeito a observância dos princípios e das regras de direito público, aplicáveis a tais hipóteses. [140]

Em suma, não se pode olvidar que a Lei n°9.637/98 apresenta imperfeições que muito comprometem a sua aplicação. Dessa forma, e considerando-se que, conforme mencionado, há uma forte tendência de os governos estaduais e municipais acolherem o modelo proposto na Lei, com o estabelecimento do contrato de gestão com organizações sociais para a prestação dos serviços sociais, se faz imprescindível a correção das falhas existentes, para que a ideia proposta no mencionado ordenamento jurídico seja reproduzida em conformidade com as disposições legais.

Outrossim, cumpre ressaltar, em arremate ao exposto, que a despeito da posição favorável ou contrária à atuação das organizações sociais na prestação de serviços de interesse público, que "não há como imaginar virtudes e defeitos do Estado sem que ele seja inserido como um dos elementos da sociedade civil, bem como não é possível ignorar que o Estado interfere de forma decisiva nos rumos da realidade social". [141] Dessa forma, infere-se que o Estado não se pode fazer substituir por completo pelas organizações sociais nos serviços desempenhados por estas, devendo, sim, haver um complemento, pelas entidades do terceiro setor, das atividades de cunho social prestadas pelo Estado, visando à concessão de serviços de qualidade e efetividade à população.

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Sobre a autora
Rachel Zolet

Advogada, especialista em Direito Público pela UNIBRASIL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZOLET, Rachel. O contrato de gestão entre o poder público e organizações sociais como instrumento de fuga do regime jurídico administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2792, 22 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18550. Acesso em: 19 abr. 2024.

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