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A Constituição cosmopolita e a inerradicadibilidade do político em sua dimensão agonística

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26/02/2011 às 13:29
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7 O SURGIMENTO DO PODER CONSTITUINTE COSMOPOLITA: REDEMOCRATIZAÇÃO DA ONU E DA UE E FUSÃO DE SUAS ESTRUTURAS E INSTITUIÇÕES

O germe da teoria constitucional se deu em torno do poder constituinte (Seyès/Negri) [49], concebendo este como um poder de fato, extranormativo, fluido, ilimitado, incondicionado que faz irromper o novo sempre que for capaz de aglutinar um grupo em torno uma idéia e suplantar resistências contrárias, conceito este caro até nossos dias. A Constituição, por sua vez, cristaliza essas idéias e valores e as consolida num documento que passa a ser sua ordem jurídico-política.

O poder constituinte, desde as revoluções francesa e americana, tiveram na nação e, posteriormente, no povo, a fonte de tal soberania e, numa Constituição Cosmopolita, se vai além desse conceito, deslocando-o para ‘pessoa humana’ e ‘comunidades’, podendo elas agir isoladas ou em comunidades, grupos de interesse, locais e globais, dependendo de seus objetivos e mudanças sociais que buscarão implementar.

Assim, busca-se ir além do conceito de ‘povo’, naquele sentido defendido por Friedrich Müeller [50], como povo ativo, encarnado num ‘container social’ (Beck) que participa dos destinos da comunidade localizada e se dá uma ordem normativa. O Poder Constituinte Cosmopolita opera com várias ordens normativas e se agrega em comunidades e grupos de interesse, mas não na busca de amesquinhar os grupos e comunidades adversárias, mas com vistas à busca das melhores alternativas para emancipar, libertar e construir grupos e comunidades sustentáveis, agradáveis, reconfortantes.

Esse poder constituinte está umbilicalmente ligado à democracia radical (Mouffe), o que significa que será exercido pela ampliação das formas de participação direta (Internet e todos os demais meios de comunicação que a facilitem), como também pela representação parlamentar, exigindo-se a representação de todas as pessoas, povos e comunidades do planeta.

Esse Poder Constituinte Cosmopolita será eleito mediante a candidatura dos interessados e capacitados para os temas objeto de deliberação e serão escolhidos diretamente pelas pessoas de todo o mundo. O número de constituintes será paritário, para todos os Estados.

Os eleitores terão acesso prévio e amplo sobre os serviços prestados por esses pretensos constituintes, com vistas a ter informações suficientes à realização de uma votação consciente e informada.

A votação será realizada por meio da rede mundial de computadores, bem como pelos meios tradicionais (cédulas) para as comunidades que não dispuserem de tal tecnologia, remetendo-se os votos à ONU para que sejam agregados aos votos realizados pela Internet.

Todos os Estados terão o mesmo número de representantes constituintes, para que os Estados ricos e poderosos não oprimam os mais pobres e hipossuficientes em tecnologia, informação, ciência, etc. e todos possam deliberar em igualdade de condições.

Esses constituintes elaborarão a Constituição Cosmopolita, mediante o apoio logístico da ONU e de seus Estados nacionais, tendo previamente escolhidos os temas sobre os quais haverá deliberação. Concretizada a deliberação e elaborada a Constituição, estará exaurido esse poder constituinte eleito, permanecendo, porém, o originário, que deverá continuar levando suas demandas às suas comunidades locais, regionais, Estaduais (Estados nacionais) microrregionais (e.g. Mercosul), consolidando-as na ONU, e assim, poderão deliberar ou recomendar a eleição de novo poder constituinte para deliberar sobre temas que deverão ser incorporados à Constituição Cosmopolita.

A reformulação democrática da ONU deverá contar com a participação de todos os Estados, em igualdade de condições, inclusive no Conselho de Segurança.

Elaborada a Constituição, o controle de constitucionalidade será exercido pela ONU reformulada, a partir da fusão da estrutura e instituições da ONU e da União Européia. A estrutura atual da ONU está assim assentada:

a)Assembléia Geral;

b)Conselho de Segurança;

c)Conselho Econômico e Social;

d)Conselho de Tutela;

e)Corte Internacional de Justiça;

f)Secretariado.

Instrumentaliza essa estrutura uma série de organismos subsidiários, programas e órgãos, institutos de estudo e pesquisa, comissões orgânicas, regionais, órgãos conexos, organismos especializados.

Por sua vez, a União Européia não é uma federação como os Estados Unidos, mas é formada por 27 Estados Membros de nações soberanas e independentes, que exercem sua soberania em comum para adquirir um poder e influência no cenário internacional em que nenhum deles isoladamente é capaz.

As três principais instituições detentoras de poder de decisão são:

a)O Parlamento Europeu, que representa os cidadãos europeus cujos membros são eleitos por sufrágio universal direto;

b)O Conselho da União Européia que representa os Estados Membros;

c)A Comissão Européia que tem por missão defender os interesses da União e de seus parceiros.

Esse triângulo institucional define as políticas e os atos legislativos que se aplicam sobre toda União. Em princípio, cabe à Comissão propor os novos atos legislativos europeus e lhes operacionalizar, mas é o Parlamento e o Conselho que os institui.

O Parlamento exprime a vontade democrática de 501 milhões de cidadãos da União Européia e representa seus interesses nas discussões com outras instituições européias. O Parlamento atual, eleito em 2009, conta com 751 membros representando 27 Estados Membros da União Européia. Aproximadamente 1/3 são mulheres.

São 08 os grupos políticos dentro do Parlamento:

a) PPE – Grupo do Partido Popular Europeu (democratas cristãos), com 265 deputados;

b) S & D - Aliança dos Socialistas e Democratas Progressistas, com 184 deputados;

c) ALDE – Grupo da Aliança dos Democratas Liberais pela Europa, com 84 deputados;

d) G-EFA – Grupo dos Verdes/Aliança Livre Européia, com 55 deputados;

e) ECR - Reformistas e Conservadores Europeus, com 54 deputados;

f) GUE/NGL – Grupo Confederal da Esquerda Unitária Européia/Esquerda Nórdica Verde, com 35 deputados;

g) EFD – Grupo União para a Europa das Nações, com 32 deputados;

h) NI – Não Inscritos, com 27 deputados [51].

A Corte de Justiça tutela o respeito ao direito comunitário e a Corte de Contas Européia controla o financiamento das atividades da União.

Outras instâncias jogam igualmente um papel chave no funcionamento da União Européia:

a)O Comitê Econômico e Social Europeu representa a sociedade civil e os parceiros sociais (empregadores e trabalhadores);

b)O Comitê das Regiões, que representam as autoridades regionais e locais;

c)Banco Europeu de Investimentos que financia os projetos de investimentos europeus;

d)O Banco Central Europeu que é responsável pela política monetária européia;

e)O Mediador Europeu, que examina as reclamações formuladas nos encontros das instituições ou órgãos da União Européia por má administração;

f)O Controlador Europeu de proteção des données que tem por missão proteger dados pessoais relativos à vida privada dos Europeus.

A União Européia repousa sobre quatro tratados:

a)O Tratado Instituinte da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), assinado em 18 de abril de 1951 em Paris e que entrou em vigor em 23 de julho de 1952 e se expirou em 23 de julho de 2002;

b)O Tratado Instituinte da Comunidade Econômica Européia (CEE), assinado em 25 de março de 1957 em Roma, e que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1958, também denominado ‘Tratado de Roma’;

c)O Tratado Instituinte da Comunidade Européia de Energia Atômica (Euratom, CEEA), assinado em Roma ao mesmo tempo que o Tratado CEE;

d)O Tratado da União Européia (EU), assinado em 07 de fevereiro de 1992 em Maastricht, e que entrou em vigor em 01 de novembro de 1993.

Uma decisão tomada ao nível da União Européia implica inúmeras instituições européias, em particular a Comissão Européia, o Parlamento Europeu e o Conselho da União Européia.

Os três principais procedimentos são a consultação, o ponto de vista ou pensamento conforme e a co-decisão, processos cujo objetivo é conseguir legitimidade decisória, estabelecendo um equilíbrio entre a voz dos cidadãos europeus e sua representação na União.

Os funcionários que trabalham para as instituições da União Européia são originários de todos os seus Estados Membros, às vezes mesmo estrangeiros. Eles cobrem uma grande gama de competências e atividades: desde decisores políticos e gestores às secretárias e ao pessoal técnico e logístico, passando pelos economistas, juristas e lingüistas. Todos devem aceitar e ser capazes de trabalhar dentro de um desenvolvimento multicultural e multilíngüe, geralmente muito longe de seu país natal.

Previamente à criação desse Poder Constituinte, impõe-se a significativa reforma da ONU, destacadamente a ampliação da participação democrática para que as decisões passem efetivamente a representar os direitos, interesses e deveres de todos os povos, etnias e comunidades e, em segundo lugar, por meio da correção do déficit democrático da União Européia.

Comparando-se as duas estruturas, observa-se que a estrutura da ONU é uma estrutura executiva com larga experiência na elaboração e execução de programas de interesse de todos os povos e pode se tornar em órgão executivo capaz de implementar uma Constituição capaz de efetivar inúmeros direitos e deveres que interessam a todas as pessoas humanas, emancipando-as e libertando-as.

Em síntese, ter-se-ia uma estrutura institucional oriunda da estrutura da ONU e da União Européia, previamente reformadas para que todos os cidadãos cosmopolitas possam se sentir efetivamente representados.

No entanto, a ONU não será guindada à condição de um Estado supranacional ou a uma República Mundial, mas exercerá suas competências ampliadas com a cooperação das pessoas, dos povos, das organizações e instituições supranacionais, organizações não governamentais, Estados nacionais, nos limites da legitimação que lhe foi outorgada, detendo os povos e os Estados o poder de veto, se extrapolar os poderes que lhe forem conferidos.

Uma estrutura assim imaginada amplia a democracia e distribui de forma mais equânime o poder para que todas as decisões sejam tomadas em conjunto e não privilegiem uns poucos (e.g. não sujeição dos EUA ao TPI e ao Protocolo de Kyoto).

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O Poder Constituinte Originário poderá a qualquer momento deliberar em sentido contrário ao decidido pela ONU, pelos mesmos meios de escolha dos constituintes, desde que a participação decisória seja proporcional à população de cada país, evitando-se que países populosos imponham suas pretensões sobre os países menos populosos.

Instaura-se formalmente no âmbito da ONU o Poder Constituinte Originário Ativo, por meio do qual a participação política cosmopolita se operará, obrigando-se a ONU a consolidar mensalmente essas demandas, por Estado nacional, podendo o poder constituinte originário pleitear a votação de novas normas para a incorporação/Emenda à Constituição Cosmopolita.


8 A ESTRUTURA JURÍDICO-POLÍTICA CONCRETIZANTE DA CONSTITUIÇÃO COSMOPOLITA

Conforme se destacou alhures, um cosmopolitismo agonístico não pode prescindir de um mecanismo de participação direta dos cidadãos cosmopolitas. Sistemas computacionais ou de AI (Inteligência Artificial) agregariam essas demandas por grupos de demandas a serem deliberadas.

Mesmo após tal aglutinação, os cidadãos são os primeiros a votar sugerindo soluções para os problemas. Os conflitos entre os cidadãos seriam intermediados pela Assembléia Parlamentar e pela estrutura normativa da ONU, mas sem o poder de imposição, caso se chegasse num impasse insolúvel.

O impasse insolúvel ficaria sobrestado até que um discurso comunicativo e argumentativo gerasse um consenso suficiente à deliberação.

A Assembléia Parlamentar também vota, mas em caso de conflito entre o deliberado pelas pessoas cosmopolitas e o deliberado pela Assembléia, prevalece o deliberado pelas pessoas.

Os sistemas de comunicação e de informação devem ser transparentes e eficientes e com tempo suficiente para que as pessoas se manifestem sobre os temas postos em discussão e votem.

Antes de se implementar qualquer decisão, os cidadãos cosmopolitas devem receber informações completas e adequadas sobre os efeitos das decisões para todos os envolvidos.

Em caso de resistência entre o posicionamento de cada Estado Nacional e a posição da Sociedade Cosmopolita, prevalece a do Estado Nacional, haja vista que uma Constituição Cosmopolita parte do local para o global e não o contrário, pois a pessoa ou o cidadão cosmopolita continua vinculado a um local que fundadamente valoriza e tem laços comunitários mais fortes que o global.

Nessa simbiose estrutural da ONU com a União Européia, não se aproveitariam estruturas cuja missão é impor um domínio sobre os demais. A palavra domínio terá um sentido apenas argumentativo, persuasivo, não invocador de forças bélicas para repelir resistências contrárias.

Dessa forma, o Parlamento Cosmopolita, representando as pessoas e cidadãos cosmopolitas de todo o mundo e onde seus membros serão eleitos por sufrágio universal direto e o Conselho Cosmopolita, representando os Estados Nacionais Membros seriam sucedâneos do Parlamento Europeu e do Conselho da União Européia, nessa ONU reformulada e radicalmente democrática.

A Comissão Européia seria substituída pelos blocos regionais (Mercosul, Ásia, África, Nafta, etc.), assim como se criariam Comissões da Sociedade Civil e Organizações Não Governamentais, dialogando com seus cidadãos e profissionais especializados para conduzir a bom termo as demandas e subseqüentes decisões cosmopolitas.

Criar-se-ão partidos cosmopolitas, partidos reunidos em torno das causas/temas que serão submetidos à deliberação.

Aproveita-se a experiência da Corte de Justiça, que examinará eventual desrespeito ao direito cosmopolita e à Corte de Contas que financiará as atividades da nova ONU, que poderá inclusive ter um novo nome, a exemplo de OCPP (Organização Cosmopolita de Pessoas Planetárias).

Cria-se um Comitê Econômico e Social Cosmopolita, a exemplo do Comitê Econômico e Social Europeu, representando a sociedade civil e os parceiros sociais, bem como um Fundo de Emancipação e Libertação dos povos cosmopolitas, cujo objetivo é resgatá-los da pobreza e oferecendo-lhes um mínimo existencial (patrimônio mínimo e condições mínimas de subsistência) capaz de dar-lhes a segurança mínima possível para que envidem, por si próprios, esforços na concretização de projetos de vida que fundadamente valorizem.

Outros fundos e estruturas deverão ser criados, haja vista que uma Constituição Cosmopolita que se centra na dignidade humana, na solidariedade, na emancipação, na libertação e na sustentabilidade de pessoas, grupos, comunidades e da vida, não terá esteio apenas no ter (patrimônio), mas na partilha de outros bens, direitos e deveres não econômicos que dignificam e torna prazerosa a existência.

Cria-se também um Comitê de Regiões e Blocos, para representar as autoridades regionais e locais.

Igualmente, cria-se um Banco Cosmopolita de Investimentos, com vistas ao financiamento dos projetos de investimentos cosmopolitas e se decide que os investimentos se darão na razão inversa do IDH de cada Estado, critério este também mantido internamente nos Estados, com vistas à ampliação do desenvolvimento regional interno (e.g. municípios), regiões, grupos de Estados Nações (e.g. Mercosul), etc., ou seja, o desenvolvimento deve sempre partir do local para o global.

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Sobre o autor
Vicente Higino Neto

advogado em Curitiba (PR)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HIGINO NETO, Vicente. A Constituição cosmopolita e a inerradicadibilidade do político em sua dimensão agonística. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2796, 26 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18588. Acesso em: 16 abr. 2024.

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