4.A Democracia Radical
Conforme se examinou no item precedente, o agonismo é pressuposto da democracia radical e de uma Constituição Cosmopolita viva, concreta. Mas como pensar numa constituição cosmopolita que pressupõe a responsabilidade e a partilha de bens como se o planeta fosse nossa morada comum, sem abordar a democracia, e mais, que tipo de democracia?
Como será possível que a pluralidade de visões de mundo se embata na Constituição Cosmopolita e dela exija o que ela não pode oferecer (soluções adequadas) e esse embate não descambe em conflitos generalizados, ressuscitando-se a relação amigo-inimigo de Schmitt e o extermínio do inimigo?
Buscou-se apoio na democracia radical de Chantal Mouffe [25] para quem uma democracia radical e plural busca romper com o racionalismo, o individualismo e o universalismo, não implicando, porém, na rejeição da idéias de racionalidade, da individualidade ou da universalidade, mas estas devem ser plurais, racionalmente construídas e comprometidas com relações de poder.
Essa democracia resgata o conceito aristotélico de phronesis [26], conhecimento ético, distinto do conhecimento epistêmico das ciências, passando a depender desse ethos as atuais condições históricas e culturais da comunidade, implicando na renúncia a toda pretensão de universalidade.
Essa racionalidade, baseada na práxis humana, exige uma razão prática, não caracterizada por afirmações irrefutáveis, onde o razoável prevalece sobre o demonstrável, ao contrário da razão prática kantiana que exige universalidade.
Acolhe-se o conceito de ‘tradição’, de Gadamer e dos ‘jogos de linguagem’ de Wittgeinstein, onde para Gadamer há uma unidade fundamental entre pensamento, linguagem e mundo, revalorizando-se os ‘preconceitos’, pois são justamente os preconceitos que definem nossa situação hermenêutica e constituem nossa condição de compreensão e abertura ao mundo [27].
Por sua vez, para Wittgeinstein, os jogos de linguagem formam uma união indissolúvel entre regras lingüísticas, situações objetivas e formas de vida, e a tradição, nessa perspectiva, é o conjunto de discursos e práticas que nos constituem como sujeitos [28].
Nessa fusão de horizontes (Gadamer x Wittegeinstein), uma democracia radical que acolha o conceito de tradição acima, só pode ser composta, heterogênea, aberta e indeterminada.
A democracia radical exige o reconhecimento da diferença, do particular, do múltiplo, do heterogêneo, do que fora excluído pelo conceito abstrato de homem. Não se rejeita o universalismo, mas se o particulariza, exigindo-se uma nova articulação entre o universal e o particular [29].
5.A Esfera Pública
Traçar os marcos de uma constituição cosmopolita que pretenda ser instrumento de transformação da realidade (concretização dos direitos humanos e fundamentais e soluções adequadas para temas/assuntos de interesse de todas as pessoas do planeta) não pode ser levada adiante sem pensar numa esfera pública onde os assuntos de interesse das pessoas, Estados, comunidades e organizações possam ser canalizados, debatidos e solucionados.
Essa esfera pública deve viabilizar tanto a participação direta (pessoas aportando suas demandas e debates na ONU) quando a representativa (Assembléias Parlamentares Cosmopolitas), esta por meio de Estados, entidades transnacionais, organizações e partidos cosmopolitas que representem seus interesses.
Conforme já se destacou em outra passagem, a nova ONU, radicalmente redemocratizada, deve receber esses pleitos, tabulá-los e traduzi-los nas línguas oficiais que se escolherá e manter os cidadãos cosmopolitas devidamente informados sobre o andamento das discussões, definindo momentos de deliberação e decisão.
Os assuntos sujeitos a deliberação para a formação dessa Constituição Cosmopolita poderão partir da recepção das Cartas e Pactos já em vigor (sistemas global e regionais de proteção dos direitos humanos), incorporando-se posterior e progressivamente temas que digam respeito a toda a humanidade, tais como, o aquecimento global, a sustentabilidade, pesquisas genéticas, a extinção ou não de armas nucleares, etc.
A partir do item a seguir, adentra-se no plano mais especificamente normativo, para o fim de pensar numa Constituição Cosmopolita gestada na ONU redemocratizada, onde ela passa a ter capacidade normativa e sancionatória, incorporando o sistema global de proteção dos direitos humanos e fundamentais, dialogando com os sistemas jurídicos regionais (sistema europeu, interamericano, africano, asiático, árabe, etc) e nacionais. [30]
6.A Constituição Cosmopolita e os Sistemas Global e Regional de Proteção dos Direitos
O presente artigo considera que uma constituição cosmopolita incorpora não só os sistemas de proteção global e regionais, mas exige a presença de vários pressupostos para que essa Constituição seja exitosa e o principal deles é a incorporação da dimensão do político (Chantal Mouffe) [31], conforme já examinado, permitindo assim a abertura ao livre embate de idéias entre adversários e não inimigos, capazes de realizar um link vivo entre o político e o jurídico, construindo um instrumental normativo que sirva de instrumento de emancipação, libertação, solidariedades múltiplas e sustentabilidade (das pessoas, comunidades, sociedades, do planeta, etc).
Os sistemas constitucionais tradicionais, ao não potencializarem esse link entre o político e o jurídico, não extraem a dimensão concretizadora da Constituição, pois não trazem para a esfera pública as demandas emancipatórias e libertadoras reivindicadas pelas pessoas e comunidades.
A Constituição Cosmopolita aqui imaginada acolhe uma das principais críticas de Bruce Ackerman [32], ao examinar o sistema constitucional norte-americano e constatar seu legado de injustiça, observando que não há qualquer mão-invisível conduzindo os Estados Unidos e se o país deseja construir uma vida mais justa para si próprio, não há nenhum substituto para a política engajada e a um governo ativista. Assim, conclama ele o povo norte-americano à reconstrução de uma fundação mais justa para seu povo.
Dessa maneira, aquilo que Ackerman busca em relação ao povo norte-americano, a Constituição Cosmopolita convoca toda a humanidade a superar o quadro de indigência que impera pelo mundo, buscando sentido naquilo que se desenvolve e se faz (economia, tecnologia, ciência, etc), que deve ser a elevação da condição humana e não sua degradação.
Dessa forma, não se pensa que levar a sério o ‘político’ e, por conseqüência o conflito em sua dimensão agonística, vá enfraquecer uma Constituição Cosmopolita. A recepção do político pela dimensão agonístico-normativa da constituição é instrumento mais adequado à conquista, garantia e proteção de bens essenciais à dignidade da pessoa humana, à solidariedade e à sustentabilidade dos mais variados modos de vida, pois não se busca excluir, mas construir coexistencialmente novos mundos.
A experiência norte-americana, da ONU, dos inúmeros Tratados e Pactos em vigor e, mais recentemente, da União Européia, permite concluir que, apesar da enorme dificuldade, é possível construir-se sistemas jurídicos que atravessem nações e agreguem novas espécies de normatividade (multipolaridade normativa).
Os modelos constitucionais tradicionais supostamente fundados na identidade, povo, território, Estado, comunidade de valores, podem ceder a outros modelos ainda não adequadamente pensados, mas cujo objetivo e esboço podem ser traçados: elevar o nível de dignidade, emancipação, libertação, solidariedade e sustentabilidade dos modos de vida, construindo pontes discursivas entre todas as pessoas humanas, povos, etnias e comunidades, não rumo a uma pacificação, mas à construção de uma humanidade viva, ativa.
Por óbvio que essa Constituição Cosmopolita tem fim bem diverso da Constituição gestada pela União Européia ou mesmo da formação dos Estados Unidos da América, pois não visa ela à competição, à guerra econômica entre Estados Nações ou blocos econômicos. Pelo contrário, visa justamente criar um outro locus (entrenormativo) entre o constitucionalismo nacional e o direito internacional, desta feita fundado na ONU, partilhando o poder constituinte que continua a ser exercido tanto local (nacional) quanto regionalmente (Mercosul, União Européia, Nafta, etc).
A normatividade pensada por uma Constituição Cosmopolita parte e valoriza em primeiro plano o local, porque é no local que os laços sociais são mais fortemente valorizados, mas complexifica esse discurso ao pretender a circularidade e influência mútuas entre os sistemas global, regionais e locais (Estados nacionais), concebendo que ao final dessa circularidade, tal qual o rio de Heráclito [33], todos ganhem e ninguém seja o mesmo ao cabo dessa aventura normativa (responsável)!
Os discursos transconstitucionais partem, assim, de um sistema de reenvio, do local (Estado nacional) para o regional e ao cosmopolita, buscando uma legitimação de base/origem, com vistas a não impor uma visão/concepção de mundo cosmopolita que não tenha qualquer valor para as comunidades e grupos locais.
O local, o regional e o global estarão em constante interação rumo à busca de um status dignificante melhor, buscando-se em qualquer deles uma maior dignidade humana, conservando seu direito à diferença, caso o local e o regional já lhe ofereça um status dignificante melhor.
Não se busca assim um instrumento normativo totalitário centrado numa suposta República Mundial disfarçada (ONU), mas na construção de um instrumento normativo amoroso onde convirja uma diversidade de poderes democráticos e partilhados em busca da construção de novas solidariedades [34].
Conforme se examina a seguir, um novo instrumento regulatório, criativo, pode ser gestado para lidar com novas complexidades. Uma Constituição Cosmopolita como a até aqui pensada, pode ser um modelo.
7.Do Direito Internacional ao Direito Constitucional Cosmopolita: os direitos humanos e fundamentais como instrumentos de diálogos civilizacionais, de concretização de direitos, emancipação e libertação
Atualmente a sociedade é regida pelo sistema normativo de cada Estado, bem como pelo sistema jurídico internacional, aplicando-se este em conformidade com a hierarquia ou status que o ordenamento jurídico de cada país lhe confere (hierarquia supra constitucional, constitucional ou infraconstitucional).
A sociedade em rede do Século XXI (Castells) e os problemas e virtudes que o encurtamento de distâncias e relações propicia (sistemas de comunicações, de trocas econômicas, técnicas, etc) já permitem pensar em elevar o nível de normatividade que considere tanto os aportes do direito internacional quanto do direito constitucional.
O direito internacional e o direito constitucional de cada Estado se funde para fazer surgir o Constitucionalismo Cosmopolita, que terá várias dimensões ou níveis: a) local (no âmbito do Estado-Membro); b) regional (sistemas regionais); c) sistema global.
Todos esses sistemas se comunicam entre si com vistas à construção de soluções normativas que permitam emancipar e libertar a pessoa humana e erigir-se sociedades sustentáveis, sem quaisquer discriminações, permitindo que os 4/5 da humanidade que ainda não têm acesso a bens primários e recursos mínimos para sobrevivência se libertem e vá em busca dos projetos de vida que fundadamente valorize.
Com Celso Lafer, citando Flávia Piovesan, se observa que interesse geral, jus cogens, obrigações erga omnes são conceitos que abrem espaço para falar com Kant, de um jus cosmopoliticum que diz respeito aos seres humanos e aos Estados em suas relações exteriores e sua interdependência como cidadãos de um Estado da humanidade, o que resulta em que a violação dos direitos em um só lugar da Terra é sentida em todos os outros [35].
Aos sistemas global e regional falece a capacidade institucional ou como diz Flavia Piovesan, falece ‘garras e dentes’ para sancionar os descumprimentos às violações de direitos humanos.
O constitucionalismo cosmopolita institucionalizo na ONU será não só uma das novas espécies de poder constituinte originário como também o poder sancionatório, construído juntamente com as pessoas, instituições, organizações e Estados.
Com Piovesan, acredita-se no potencial emancipatório e transformador que uma Constituição Cosmopolita, apoiada no diálogo entre civilizações - e não de confronto civilizacional (Huntington) – pode propiciar, sem ignorar o espaço de lutas que constitui a busca pela concretização de direitos e deveres.
No entanto, com Huntington [36], não se ignora a dificuldade de um tal projeto, especialmente em razão da alteração do equilíbrio de poder entre as civilizações, da ordem emergente das civilizações e do futuro delas.
Conforme se terá a oportunidade de examinar mais adiante, os sistemas de proteção global e regional para funcionarem bem carecem de uma cultura de respeito aos direitos humanos e fundamentais e Estados e instituições comprometidos com sua efetivação e tanto no sistema interamericano quanto no sistema africano esses sistemas são frágeis, a começar pelas democracias incipientes.
As dificuldades podem se exacerbar quanto se institucionalizar os sistemas asiático e árabe, onde os valores e princípios têm um potencial conflito maior.
Parafraseando Piovesan, o diálogo entre os sistemas regionais (existentes e por existir) constituem medidas imperativas rumo à concretização de um constitucionalismo cosmopolita, emancipatório e libertador que corrija as assimetrias não só entre os direitos civis e políticos, como também em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais (inter-estatais, regionais e global), ambientais e outros temas que afetem a toda a humanidade. [37]
Concebendo os direitos humanos e fundamentais como o telos da Constituição Cosmopolita, importante examinar, com Piovesan, os desafios e tensões que uma teoria dos direitos humanos atualmente enfrenta [38].
Esses grandes desafios, tensões e debates envolvendo uma teoria dos direitos humanos são:
a)universalismo x relativismo
b)laicidade estatal x fundamentalismo religioso
c)direito ao desenvolvimento x assimetrias globais
d)proteção aos direitos sociais x dilemas da globalização econômica
e)respeito às diversidades x intolerâncias
f)combate ao terror x preservação das liberdades públicas
g)unilateralismo x multilateralismo
O primeiro desses desafios é o debate entre universalismo e relativismo cultural. Para os universalistas o importante é o debate sobre as questões: porque temos direitos, quais suas fontes, respondendo Piovesan (op. e loc. cit.) que a fonte é a dignidade humana e que há um mínimo ético universal que qualquer comunidade pode e deve reconhecer.
De outra parte, Boaventura de Souza Santos [39] pensa numa trama do sistema mundo através de uma concepção multicultural de direitos humanos, pensando num localismo globalizado de um lado e de um globalismo localizado, de outro. Pensa assim num universalismo de confluência, onde se nega o universal como ponto de partida, concebendo-se-o como ponto de chegada, através de um processo conflitivo, discursivo e dialógico. Concebe um entrecruzamento e não uma superposição de propostas.
Busca valores culturais alternativos e não imperativos. Pensa num cosmopolitismo através de diálogos e oganizações sul-sul, organizações mundiais de trabalhadores, numa filantropia internacional e em redes internacionais de assimetrias jurídicas e organizações internacionais de direitos humanos. Pensa na construção de um patrimônio cultural da humanidade onde a vida humana na terra tenha sustentabilidade. Pensa numa globalização de baixo para cima.
Boaventura reconceitua os direitos humanos como multiculturais onde haja uma relação de equilíbrio entre a competência global e a legitimidade local.
As premissas para a transformação do localismo globalizado em projeto cosmopolita são: a superação do debate entre universalismo e relativismo cultural; b) trabalhar-se com os princípios da igualdade e da diferença, respeitando-se mutuamente; c) conceber uma hermenêutica diatópica que tenha o pé em ambas as culturas e que exija a produção de conhecimento coletivo, interativo, intersubjetivo e reticular; d) concepção de que os sistemas são incompletos; e) inserção da idéia de deveres para que se reconheça direitos à natureza e às gerações futuras.
Para os relativistas, por outro lado, o importante é a cultura, não havendo a possibilidade de sustentar-se a existência de uma ética universal.
Boaventura de Souza Santos [40] vai dizer que temos que superar esse debate a partir de uma concepção multicultural, onde cada cultura assume sua incompletude, abrindo-se a outras culturas.
O segundo desafio (laicidade estatal x fundamentalismo religioso).
Através do terceiro desafio (desenvolvimento x assimetrias globais) debate-se que não há desenvolvimento sem participação política e sem que haja interação entre o regional e o global. Assim, leva em conta a participação política; necessidades básicas de justiça social e cooperação internacional ou solidarismo.
O quarto desafio (direitos sociais x dilemas da globalização econômica) concebe que os Estados hoje são engolidos pelos mercados e os mercados jamais irão compensar desequilíbrios, ensejando a necessidade de políticas fortes no campo social. Assim, só com ação estatal é possível manter-se um certo equilíbrio nessas relações. Está no centro dos debates desse desafio a consciência de que não são somente os direitos sociais que custam, mas também os civis e políticos, pois é preciso manter-se toda uma estrutura (órgãos de proteção, Judiciário, etc.) para garanti-los. Assim, do ponto de vista dos custos não há diferença entre a proteção de uns ou de outros.
O quinto desafio é o respeito às diversidades e intolerâncias.
O sexto desafio, o combate ao terror de um lado e ao mesmo tempo a preservação das liberdades públicas, surgindo o dilema: como preservar a era dos direitos na época do terror?.
Por último temos de um lado o unilateralismo (o direito da força) de um lado e o multilateralismo de outro (a força do direito, daí a importância do Poder Judiciário).
Esses 07 (sete) desafios marcam a agenda atual mundial dos direitos humanos.
Traçadas as idéias fundantes do constitucionalismo cosmopolita, impõe-se examinar uma tema central para o constitucionalismo, o poder constituinte, ainda que várias categorias do constitucionalismo tradicional (povo, território, estado, identidade, soberania) careçam de desconstrução ou reconstrução em razão das barreiras porosas que a sociedade em rede já enceta e que denota que, apesar de as barreiras físicas ainda persistirem, as simbólicas parecem se esvair e dar vazão a uma paisagem comunicacional hibrida cujo desenvolvimento poucos podem prever.