"Aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade eu tiver visto ou ouvido que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto"
Hipócrates
Um dos postulados do direito moderno é de que o intérprete das normas – mesmo as deontológicas – deve observar suas razões teleológicas, ou seja, a razão de ser das leis, o bem jurídico que elas buscam proteger. Quando se fala em sigilo profissional tenciona-se, precipuamente, preservar a intimidade e dignidade dos clientes, de modo que eles não se inibam de procurar a assistência de que necessitam. Assim não fosse, padres, por exemplo, não teriam nenhuma utilidade para seus confessionários, uma vez que poucos fiéis se sentiriam seguros para oferecer confissão. Daí porque essencial a observância desse preceito ético. Nas palavras do Professor e Procurador de Justiça, Fernando Capez: "É do interesse social que os fatos da vida privada revelados sejam resguardados, ocultados, isto é, sejam mantidos em segredo profissional, pois, do contrário, sem esse sigilo, poucas pessoas se arriscariam a procurar ajuda profissional"¹.
Como espécie do sigilo profissional tem-se o sigilo médico, preceito verdadeiramente sacrossanto para qualquer atividade da saúde, porquanto inadmissível seria que alguém carente de assistência médica deixasse de procurá-la receoso do constrangimento social, moral e, por vezes, profissional que poderia advir da revelação de sua patologia.
INTIMIDADE VERSUS INTERESSE PÚBLICO
Um dos direitos mais caros previstos em nossa Constituição Federal é a intimidade, sendo invioláveis a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (Art. 5, inciso X). Da mesma forma, o art. 154 do Código Penal tipifica e penaliza a quebra dessa intimidade, verbis:
Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem.
Pena – Detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa
O novel Código de Ética Médica, nessa esteira, também veda tal revelação (Art. 73), excetuando-a em caso de justo motivo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Diante disso, cumpre analisar as chamadas justificantes, ou seja, as causas que afastam a ilicitude da revelação, especialmente o chamado "justo motivo" ou "justa causa".
Justa Causa
Nas vicissitudes das relações sociais, não raro é a colisão de direitos. Como conciliar, por exemplo, o direito constitucional à correspondência eletrônica sigilosa quando ele se contrapõe ao poder de fiscalização do empregador? De forma similar, como conciliar o direito à intimidade quando tal direito se choca com o interesse público? Nessa última hipótese, a solução estará no uso do que o Direito denomina "estado de necessidade" que, in casu, consiste em praticar fato para salvar de perigo atual direito alheio cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir (CP. Art. 24). Nisso reside a controvertida "justa causa", cuja inexistência é imprescindível para que o crime (âmbito da Justiça Penal) ou infração ética (âmbito do CRM) possa estar configurada.
Assim, médico que toma ciência que determinado paciente é portador do vírus da AIDS deverá observar o sigilo profissional. Contudo, o sigilo será afastado caso o paciente assuma pretender transmitir o vírus, por exemplo, à sua noiva que o acompanhou ao consultório. Ter-se-á, no caso em tela, a "justa causa" ou "justo motivo" capaz de elidir o sigilo profissional. É, outrossim, o caso do advogado que denuncia seu cliente porque este confessa que irá praticar um crime assim que deixar seu escritório.
Dever Legal
O Código de Ética Médica vigente entendeu por bem chamar de "dever legal" o que o referido art. 154 do Diploma Penal incluiu no próprio conceito de justa causa. Destarte, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente determina, em seu art. 13, que "os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança e adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar"² se está diante do chamado "dever legal".
Outra hipótese que engendra dever legal é a prevista no art. 269, Código Penal, litteris: "deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória". O direito denomina tais dispositivos de "normas penais em branco", isto é, normas que necessitam de outras para regulamentá-las. Dessa forma, a portaria 1.100/96, do Ministério da Saúde, criada em função da Lei 6.259/75, faz referência a doenças cuja notificação é compulsória, tais como varíola, febre amarela, peste, difteria etc. Mesmo nos referidos casos, está a autoridade sanitária obrigada a preservar o sigilo (art. 10, Lei 6.259/75)
Consentimento do Paciente
Trata-se de justificante auto explicativa. O consentimento do paciente, por escrito, afasta a ilicitude. Interessante observar que mesmo que o fato seja notório, não pode o médico expô-lo a nenhum terceiro sem tal consentimento (Art. 73, parágrafo único do Código de Ética Médica). Na lição do professor E. Magalhães Noronha "o segredo pode ser conhecido por várias pessoas, não deixando por isso de o ser, como ocorre com o fato cuja ciência se limita aos diversos membros da família, que não querem a sua revelação"³.
QUESITOS
Seguradora pode solicitar prontuário de paciente?
Não. No REsp 159527/98, a Quarta Turma do STJ decidiu que a situação das empresas responsáveis pelo pagamento das despesas médico-hospitalares não é motivo suficiente para violar "princípios universal e secularmente consagrados de ética médica e de sigilo profissional, que não podem ser desprezados para maior facilidade das companhias que exploram esse ramo". Semelhante é o entendimento do Conselho Federal de Medicina, exarado nos Pareceres-Consulta nº 02/94 e 05/96 e art. 77 do Código de Ética Médica.
O Poder Judiciário pode requisitar prontuário de paciente?
Sim. Entretanto, conforme dispõe o Código de Ética Médica, em seu art. 89, § 1º, "quando requisitado judicialmente o prontuário será disponibilizado ao perito médico nomeado pelo juiz". Semelhante é a inteligência do art. 434 do CPC, bem como Resolução 1.605/00 do CFM e Parecer-Consulta nº 06/03 da mesma autarquia.
A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de se pronunciar sobre o tema no RE 91.218/81. Após memoráveis debates, a corte concedeu mandado de segurança contra Juiz de Direito em favor de hospital que se recusava a liberar prontuário de paciente que a poderia expor à investigação criminal. Mais recentemente entendeu a Segunda Turma do STJ ser "dever legal das entidades hospitalares, à vista das anotações contidas nos prontuários, fornecer certidão sobre os dados ali constantes, omitindo-se apenas as informações técnicas referentes ao nome da doença e ao tratamento prescrito"4.
A autoridade policial pode requisitar prontuário de paciente?
Não. Consoante Lei 8.159/91, art. 24, bem como Resolução 1.605/00 e NTE 84/08 do CFM, somente a autoridade judiciária competente pode requisitar prontuário. Isso posto, recomenda-se que, para fins de inquérito policial, o delegado responsável anexe à sua solicitação a autorização por escrito do paciente (art. 89, CEM).
Empresas podem exigir a inclusão do CID no atestado de seus funcionários?
Não. Trata-se da intimidade do empregado, resguardada, conforme analisado, por cláusula pétrea na Constituição Federal e protegida pelo Código Penal, bem como pelo Código Civil (art. 5, inciso X, art. 154 e art. 21, respectivamente). Apenas o paciente pode autorizar sua divulgação. Nesse sentido, art. 73 do Código de Ética Médica e série de pareceres do Conselho Federal de Medicina, tais como Pareceres-Consulta nº 25/ 88, 32/90, 07/93 e 07/94. Nos termos do Parecer-Consulta 32/90 da lavra do Ex-Secretário Geral do Conselho Federal de Medicina, Sr. Hercules Pires Liberal " é nosso entendimento que a obrigatoriedade do ‘diagnóstico codificado’ no atestado médico, ao invés de proteger o trabalhador, cria-lhe
uma situação de constrangimento. Ao ser relatado seu mal, mesmo em código, suas relações no emprego são prejudicadas pela revelação de suas condições de sanidade"
(...) "além de colocar o profissional (médico) na condição de infrator por delito de violação de segredo profissional".
O TST, no processo nº 115600-40.2007.5.01.0012, entendeu que, mesmo para justificar a ausência em audiência trabalhista, não é necessário a inclusão do CID no atestado.
Empresas podem recusar o atestado médico?
Não, contanto que o rol hierárquico seja obedecido. A súmula 15 do TST indica que "a justificação de ausência do empregado motivada por doença, para a percepção do salário enfermidade e da remuneração do repouso semanal, deve observar a ordem preferencial dos atestados médicos estabelecida em lei". A referida ordem é encontrada na Lei 8.213/91, art. 60, parágrafo 4, que determina ser preferencial o exame médico próprio da empresa ou contratado por convênio, somente encaminhando o segurado à perícia da Previdência Social quando a incapacidade para o labor ultrapassar 15 dias. Nesse mesmo sentido, súmula 282 do TST.
Representantes legais (descendentes, ascendentes, cônjuge etc.) podem requisitar prontuário de paciente falecido?
Entendemos que não. O Código Civil, em seu art. 11, é categórico ao afirmar que os direitos da personalidade são intransmissíveis. Assim, a proteção a esses direitos se projetaria mesmo para além da morte5. Nesse sentido, Parecer-Consulta nº06/10 do CFM, nos termos do Sr. Conselheiro Renato M. Fonseca "o parentesco, por si só, não configura a 'justa causa' (…) Deve-se considerar que, na verdade, em muitas vezes as pessoas que os pacientes menos desejam que saibam de suas intimidades são exatamente os parentes". Dessa forma, o prontuário deverá ser disponibilizado apenas por força de ordem judicial ou requisição do CFM ou CRM. Nesse mesmo sentido, Parecer-Consulta 21/01 do Cremec.
Estão os auxiliares dos médicos vinculados ao sigilo?
Sim. Analisando o art. 154 do CP, preleciona o consagrado Professor Júlio F. Mirabete que "é necessário que o agente tenha conhecimento do segredo em razão de sua atividade específica, ou seja, que exista um nexo causal entre o exercício da atividade e o conhecimento do segredo", diante disso " respondem também pelo crime os auxiliares profissionais (estagiários, por exemplo)"6. Nesse mesmo sentido, os arts. 78 e 85 do novo Código de Ética Médica. O mencionado art. 78 veda expressamente ao profissional "deixar de orientar seus auxiliares e alunos a respeitar o sigilo profissional e zelar para que seja por eles mantido"7.
Aconselha-se cursos periódicos para funcionários que trabalhem com arquivamento e cobrança de prontuários médicos, de modo a conscientizá-los sobre a relevância do sigilo profissional.
Notas
1. Fernando Capez, Curso de Direito Penal, cit., v. 2, pág 417 e 418.
2. Conforme art. 2 da referida lei "considera-se criança, para efeito desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade".
3. E. Magalhães Noronha apud Fernando Capez, Curso de Direito Penal, cit., v. 2, p. 418
4. STJ, 2º Turma, Edcl no RMS 14134, Rel. Min. Eliana Calmon
5. Carlos Roberto Gonçalves, Direito Civil Brasileiro, v. I, pág. 158. Pablo S. Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, Novo Curso de Direito Civil, v. I, pág. 149
6. Júlio F. Mirabete, Manual de Direito Penal, cit. v. II, pág. 196 e 197.
7. O Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem, da mesma forma, em seus arts. 81, 82, 83, 84 e 85 também dispõe sobre o sigilo profissional e o disciplina.