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Boa-fé objetiva e função social dos contratos aplicadas à negociação e redação de instrumentos jurídicos paritários

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3.Panorama da função social dos contratos no Código Civil de 2002

É a essa luz que deve ser interpretado o dispositivo que consagra a função social do contrato, a qual não colide, pois, com os livres acordos exigidos pela sociedade contemporânea, mas antes lhes assegura efetiva validade e eficácia.

Miguel Reale

3.1.Função social do contrato e a socialidade do Código Civil

A cláusula geral de função social dos contratos, estampada no Artigo 421 do Código Civil, é a materialização da diretriz maior de socialidade que permeia todo o diploma civil.

Há que se destacar, logo de início, que socialidade não se confunde com socialismo. Talvez esse equívoco tenha permeado as primeiras interpretações do Artigo 421 realizadas pelos privatistas que ainda tinham frente aos olhos as lentes individualistas do Código de 1916.

Como vimos no item 1.2(b), socialidade seria justamente o oposto do individualismo. Contudo, isso não quer dizer que princípios basilares do Direito Contratual, como o pacta sunt servanda, não tenham sobrevivido nesta nova ordem. Ao contrário, tais princípios agora foram revisitados pela onda da eticidade e convivem harmoniosamente dentro do novo sistema.

De fato, o pacto estipulado entre particulares necessita ser cumprido, mas esse pacto foi alçado a um plano transindividual [43], ou seja, as partes são livres para contratar desde que esse contrato não prejudique a coletividade.

Analisar um contrato sob o prisma da socialidade, também não quer dizer que os particulares deverão suprir as necessidades dos mais pobres, distribuindo suas riquezas. Isso é dever do Estado, e não dos particulares.

Devemos destacar que a socialidade, que sustenta a função social dos contratos, não se opõe ao princípio magno da livre iniciativa estampado na nossa Constituição Federal. E será sob esse enfoque que estudaremos o conceito da função social dos contratos.

3.2.O contrato como ente social

O legislador brasileiro reconheceu a "nova conotação social das relações privadas" [44] ao estampar no Código Civil o Artigo 421, que combinado com o parágrafo único do Artigo 2.035, dá status de norma de ordem pública para o princípio da função social dos contratos.

Na nova Teoria Geral dos Contratos, o instrumento não pode ser visto como uma molécula destacada do organismo, que não interage com outras cadeias. "Não há mais lugar para a neutralidade. Positiva ou negativamente, o contrato subscrito por A e B repercutirá em face de C, D e E, em uma espécie de ‘efeito dominó’." [45]

É fato que também o princípio da relatividade dos efeitos do contrato foi reinterpretado e atualizado [46], pois os terceiros, a coletividade como um todo, não podem sofrer respingos de um pacto que fere a sua função social, nem tampouco podem tais terceiros prejudicar o bom andamento de contratos regularmente firmados [47].

Teresa Ancona Lopez [48] leciona que "O contrato, como fato social relevante (não mais apenas acordo entre particulares) tem também um valor social."

Dessa forma, dentro dessa nova visão do contrato como ente social, o instrumento firmado entre duas partes gera um padrão de comportamento para outros contratantes, deixando, pois, de ser individual para ser social. Por isso mesmo, faz-se necessário soltar as amarras do individualismo em benefício do bem comum. [49]

Por fim, há que se destacar que o "contrato tem de ser entendido não apenas com pretensões individuais dos contratantes, mas como verdadeiro instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade." [50]Trata-se de uma nova roupagem dada ao instituto denominado contrato.

3.3.O conceito da função social do contrato no Código Civil de 2002

O princípio da função social dos contratos é consectário do Artigo 5º, incisos XXII e XXIII da Constituição Federal, pois a "realização da função social da propriedade somente se dará se igual princípio for estendido aos contratos, cuja conclusão e exercício não interessam somente às partes contratantes, mas a toda coletividade." [51]

Nos dizeres de Renata Domingues Balbino Munhoz Soares [52] "o princípio da função social do contrato, bem como os princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico, constituem os novos princípios que regem o contrato hoje, em meio ao processo de socialização do direito civil, à luz do direito constitucional."

E autora ainda complementa:

"Isso ocorre uma vez que a liberdade de contratar só pode ser legitimamente exercida em consonância com os fins sociais do contrato, num panorama de solidariedade social que foi estabelecido pela Constituição de 1988 e consagrado recentemente pelo novo Código Civil."

De acordo com Rogério Ferraz Donnini [53] temos que:

"A função social do contrato tem por escopo limitar a autonomia privada, a liberdade de contratar, impondo um comportamento ético, proporcional aos contraentes, impedindo distorções à idéia de comutatividade, que deve imperar em toda relação contratual." (Grifo nosso).

Da citação acima, podemos concluir que, assim como a boa-fé objetiva, a função social dos contratos também exerce um papel de moldura da relação contratual, impondo limites para a autonomia privada e para a liberdade de contratar.

Continuando, o autor acima citado nos explica que:

"Essa função social, portanto, propicia à relação existente entre as partes um procedimento justo, visto que contratações desproporcionais, que acabam por lesar, prejudicar um dos contratantes, em detrimento do outro, são vedadas." (Grifo nosso)

Vislumbramos, assim, que a função social do contrato exerce dois tipos de efeitos: (a) inter partes, no momento que impõe certos modelos de conduta a fim se atingir a Justiça Contratual (equilíbrio do contrato), obrigando as partes a cooperarem entre si "para que o negócio seja útil como meio de produção e circulação de riquezas" [54] [55]; e (b) ultra partes, de modo que o contrato represente uma "fonte de equilíbrio social" devendo "ser concluído e executado de forma socialmente responsável." [56]

De certa forma, é difícil dar um conceito definitivo de função social do contrato, pois como cláusula geral que é, dependerá do caso concreto para ter a sua concretude, da mesma forma que ocorre com a boa-fé objetiva (vide item 2.2. acima).

Entretanto, num esforço metodológico para exemplificar o princípio ora sob comento, valemo-nos dos ensinamentos de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery [57] nos seguintes termos:

a)O contrato estará de acordo com sua função social quando: as partes se pautarem pelos valores da solidariedade (CF 3º, I); da justiça social (CF 170 caput); da livre iniciativa; for respeitada a dignidade da pessoa humana (CF 1º, III); não se ferirem valores ambientais (CDC 51, XIV);

b)O contrato estará em desacordo com sua função social quando: (b1) a prestação de uma das partes for exagerada, extrapolando a álea normal dos contratos; (b2) quando houver vantagem exagerada para uma das partes; (b3) quando quebrar-se a base objetiva ou subjetiva do contrato.

No entanto, há que ser destacado que o princípio em debate não impede que o contrato seja concluído no interesse dos contraentes, ainda que, ao mesmo tempo, não possa ferir ou conflitar com o interesse da coletividade. Necessita-se, pois, equilibrar interesses individuais com valores sociais.

Nesse sentido, temos que:

"A autonomia privada continua sendo o mais importante princípio do direito contratual, pois sem ele não há a criação dos negócios e o desenvolvimento da economia. O contrato é fonte do direito. A Constituição Federal coloca a livre iniciativa como fundamento da República e lhe dá valor social. Porém coloca no seu exercício (da autonomia privada) não na sua existência, limites tendo em vista o respeito ao coletivo e a preservação do bem comum." [58] (Negrito nosso, itálicos originais).

Acerca da função social do contrato e a autonomia da vontade, recomendamos análise do Enunciado 23 [59] da I Jornada do STJ.

3.4.Principais funções e aplicações da função social dos contratos

Judith H. Martins Costa [60] destaca duas principais funções da cláusula geral da função social dos contratos:

a)Função restritiva – trata-se de uma condicionante posta ao princípio da liberdade contratual, para impedir que esta se manifeste sem "peias";

b)Função regulativa – assim como a boa-fé objetiva, a função social do contrato atua como elemento integrativo do conceito do contrato, regulando a disciplina e interpretação contratual, bem como a forma de concretização da cláusula geral pelo juiz face ao caso concreto.

Como já tivemos a oportunidade de mencionar, a função social do contrato (em atuação conjunta com a boa-fé objetiva) será o frame, a moldura dentro da qual as partes poderão desenhar seus negócios jurídicos. As cláusulas ou prestações desenhadas pelas partes que extrapolem esse frame poderão ser sopesadas pelo juiz, podendo inclusive resultar na anulação de tais obrigações, visto que não podemos esquecer que a função social do contrato é norma de ordem pública.

No que tange às aplicações da função social dos contratos, destacamos os ensinamentos de Rodrigo Xavier Leonardo [61], que de assim esquematiza o tema:

a)Revisão contratual – o princípio da intangibilidade dos contratos cede frente ao poder de revisão e integração das cláusulas contratuais abusivas;

b)Dever de indenizar – aquele que viola a função social do contrato comete um ato ilícito (contrário ao direito) e, na medida em que deste ato resulta um dano, submete-se ao dever de indenizar conforme previsto no Artigo 927, caput do CC;

c)Nulidade de cláusulas contratuais – a função social pode ser aplicada também na regulamentação do plano da validade dos contratos, visto que, a cláusula que não estiver de acordo com sua função social, poderá ser anulada pelo juiz.

Dessa forma, é forçoso concluir que nesta moderna Teoria Geral dos Contratos, as partes necessitam observar uma série de preceitos impostos tanto pela função social do instrumento que celebram, como pela eticidade estampada na boa-fé objetiva, sob pena de seus pactos não se adequarem à nova realidade civil.

E é justamente em relação a este ponto que pretendemos chamar a atenção do operador do Direito – o contrato, enquanto fator de organização da vida social, deverá se adequar aos novos parâmetros da ordem civil, sob pena de se transformar em um peso social, prestando um desserviço à comunidade. Isso porque, ao invés de ser um meio de circulação de riquezas, o contrato se transformará em um veículo de obstrução de negócios, o que não é bom nem para as partes, nem para a coletividade.

3.5.Função social dos contratos e deveres de conduta

No item 2.4. acima, tivemos a oportunidade de nos inteirar dos deveres de conduta decorrentes da boa-fé objetiva. Neste momento, poderemos complementar os estudos, verificando quais deveres de conduta são impostos pela cláusula geral de função social dos contratos.

Valendo-nos novamente dos escritos de Nelson Rosenvald [62], observa-se que "todo dever de cuidado envolve, em menor ou maior grau uma forma de cooperação para com o alter."

Esta cooperação pode ser vista dentro da relação contratual, atuando por meio do princípio da boa fé objetiva; como também opera através de reflexos externos, podendo afetar a esfera de terceiros, o que ocorre por meio da função social dos contratos [63], tendo por diretriz a socialidade (colaboração entre os contratantes e a sociedade que os permeia).

Nos reflexos externos do dever de cooperação, podemos visualizar os seguintes deveres de conduta, a serem observados sobre o prisma da função social dos contratos, conforme indica Nelson Rosenvald [64]:

a)Terceiro ofendido pela relação obrigacional – neste caso, caberia ao terceiro a percepção de uma indenização, não em razão na falha de alguma prestação contratual (referente exclusivamente às partes), mas por ser ofendido em sua indenidade físico-psíquica e econômica [65], visto que qualquer contrato irradia os seus efeitos para terceiros, pois assume relevância no mundo econômico;

b)Terceiro ofensor da relação obrigacional – observa-se a quebra do dever de conduta de proteção quando temos um terceiro que colabora para a inadimplência do contrato, frustrando as expectativas de uma das partes da relação obrigacional originária. Citando Junqueira de Azevedo, o autor sob estudo ressalta que "os terceiros não podem se comportar como se o contrato não existisse." [66]

Dessa forma, podemos concluir que mediante a revitalização de alguns princípios contratuais (como a liberdade de contratar; autonomia da vontade; e relatividade dos efeitos do contrato), em razão da função social dos contratos e também da boa-fé objetiva, os terceiros se tornarão credores ou devedores de deveres de conduta, e não de prestações contratuais (atinentes exclusivamente às partes do contrato).

Em resumo, notamos que na nova Teoria Geral dos Contratos "há uma via de mão dupla que demanda um atuar dos contratantes para o bem comum, assim como um agir da sociedade que não sacrifique o bem individual, considerado solidário em relação aos bens dos demais." [67]


4.Negociação de Contratos

O grande desafio do direito contratual hodierno é conciliar o sentido de opulência com o bem-estar geral; é satisfazer as necessidades básicas, sem que haja engodo; é a concorrência, no mercado, de fortes e fracos em condições que um não imponha ao outro a sua vontade, somente porque detém fração do poder econômico; é, enfim, dar vigência ao solidarismo que pontua o Código Civil brasileiro, deixando de lado a juridicização do egoísmo.

Antônio Jeová dos Santos

4.1.Direito formal e Direito aplicado

Nos capítulos anteriores, fizemos uma explanação doutrinária acerca dos principais pontos relacionados aos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, a fim de que o leitor pudesse atualizar-se acerca da moderna interpretação desses institutos. Entendemos que não haveria como responder à pergunta realizada no final do Capítulo 1 sem tal preparo teórico [68].

Feita a necessária visitação a tais conceitos, passamos aqui a desenvolver os aspectos práticos da influência das cláusulas gerais em estudo na negociação (Capítulo 4) e redação de contratos (Capítulo 5).

Conforme dito por Fábio Conder Comparato, citado por Newton De Lucca [69], já é hora da doutrina jurídica focar sua atenção não somente no Direito formal ("querelas especiosas e insolúveis a respeito da autonomia dos diferentes ramos do Direito"), mas também no Direito aplicado, pois ao lado de conceitos e categorias existe um estudo de técnicas, necessárias e adequadas para a instrumentalização de negócios (operabilidade).

Em comparação com os brilhantes e numerosos estudos acerca do direito formal, constatamos certa escassez de obras brasileiras voltadas para as boas técnicas de negociação e redação de contratos, ou seja, voltadas para o Direito aplicado ao campo contratual.

Dessa forma, sob a luz da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, passamos a dar singelos contornos de Direito aplicado afeitos à nova Teoria Geral dos Contratos no âmbito proposto por este estudo.

4.2.A necessidade de mudança comportamental das partes no tráfego jurídico

É costume na comunidade jurídica mencionar que a lei está sempre correndo atrás das mudanças comportamentais impostas pela sociedade. Contudo, ousamos dizer que em matéria de aplicação prática da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, talvez isso não seja totalmente verídico.

Observamos que desde a Constituição Federal de 1988, a lei já havia trazido certa socialidade para os negócios jurídicos, e somada agora à eticidade imposta pelo Código Civil de 2002, entendemos que os operadores do Direito já deveriam ter adequado o seu comportamento para atuarem conforme o tráfego jurídico vigente.

Isso sem mencionar os preceitos do Código de Defesa do Consumidor, que desde a década de 90 [70] também imprimiram importantes mudanças no Direito aplicado aos contratos e que, por óbvio, também necessitam ser observados.

Portanto, em termos de eticidade e socialidade na área contratual, vislumbramos que a lei se adiantou aos comportamentos sociais, cabendo agora aos operadores do Direito se adequarem às novas regras.

Na prática, sabemos que muitas pessoas (físicas ou jurídicas) se aproximam de outras, não com a real intenção de negociar e concretizar contratos, mas com segundas intenções, como para obter informações confidenciais (quebrando o dever de lealdade [71], por exemplo), ou apenas para sondar situações estratégicas de mercado, gerando expectativas comerciais que não se concretizam (quebra da confiança).

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Entendemos que não há mais espaço para práticas negociais de cunho negativo neste novo panorama jurídico, como as citadas acima, pois o sistema legislativo está devidamente amparado para sancionar e coibir este tipo de comportamento.

Ressalte-se que não estamos aqui defendendo um mundo utópico em que todos os negociadores e operadores do Direito serão como personagens de contos infantis, personificando papéis do tipo "... e viveram felizes para sempre." Sabemos que as disputas e discussões são naturais e próprias do tráfego jurídico.

Mas o que gostaríamos de ressaltar é a necessidade de mudança comportamental das partes e seus advogados para adequação a um novo sistema jurídico que já impera, já está posto, e que exige eticidade e socialidade, conforme visto detalhadamente nos capítulos anteriores.

Nelson Rosenvald [72] exprime com clareza a mencionada necessidade de mudança no comportamento das partes contratantes nos seguintes termos:

"... credor e devedor compartilharão de lealdade e confiança para, recusando a posição clássica de ‘antagonistas’, assumirem uma postura colaboracionista rumo ao adimplemento do bem comum, como finalidade que polariza todo o ‘processo’ da obrigação.

...

A visão solidária da relação obrigacional, porém, demonstra que os contratantes assumirão a postura de parceiros e não simplesmente de pólos opostos em um vínculo negocial. Não há qualquer ingenuidade em supor uma affectio contractus, pois a existência de interesses opostos não impede que cada parte respeite um mínimo ético e indispensável de lealdade e cuidado para com o outro." (Grifo nosso)

Reputamos extremamente relevante para o conteúdo deste trabalho a citação acima indicada, pois o moderno operador legal necessita abandonar a clássica polarização antagônica do contrato, para dar lugar à atitude colaboracionista, foco da nova Teoria Geral dos Contratos.

Acerca do assunto, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka [73] nos ensina que:

"... enquanto princípio informador da validade e eficácia contratual, a principiologia deve orientar-se pelo viés objetivo do conceito de boa-fé, pois visa garantir a estabilidade e a segurança dos negócios jurídicos, tutelando a justa expectativa do contraente que acredita e espera que a outra parte aja em conformidade com o avençado, cumprindo as obrigações assumidas. Trata-se de um parâmetro de caráter genérico, objetivo, em consonância com as tendências do direito contratual contemporâneo, e que significa bem mais que simplesmente a alegação da ausência de má-fé, ou da ausência da intenção de prejudicar, mas que significa, antes, uma verdadeira ostentação de lealdade contratual, comportamento comum ao homem médio, o padrão jurídico standard." (Grifo nosso)

Cabe destacar que a nova dinâmica que a boa-fé objetiva e a função social dos contratos aplicam ao instrumento contratual é tão significativa, que ecoa e tem ressonância no comportamento das partes, de modo que os contratantes sejam obrigados a cumprir certas regras de conduta negocial durante todo o tráfego jurídico.

Nesse sentido, citamos mais uma vez o ensinamento de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka [74]:

"Trata-se, portanto, da boa-fé objetiva entranhada no comportamento dos contratantes, capaz de exigir, deles, uma postura que sobrepassa a singela idéia de ser o contrato apenas uma auto-regulamentação de interesses contrapostos, um instrumento de composição de interesses privados antagônicos. O comportamento delineado pelo atributo da boa-fé objetiva é um comportamento tal que faz transcender a noção de colaboração entre os que contratam, antes de mais nada. E que os faz, por isso, mais leais, reciprocamente, mais informados, mais cuidadosos e mais solidários na persecução da finalidade contratual comum." (Grifo nosso)

Na realidade, podemos afirmar que a boa-fé objetiva trabalhando em conjunto com a função social dos contratos, transforma o pacto jurídico de simples sinalagma para um efetivo acordo de vontades inserido num cenário ético de negociações e relações jurídicas.

E não é demais afirmar que "o que se pretende é cada vez mais aproximar o direito da moral, uma vez que aquele separado desta perde a razão de ser." [75], pois, conforme expressado pelo Enunciado 27 da Jornada I do STJ "Na interpretação da cláusula geral da boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos."

4.3.A função instrumentalizadora do advogado

No primeiro Capítulo deste ensaio (item 1.4), lançamos como mote desta pesquisa o questionamento relativo à utilização do arsenal das cláusulas gerais do Código Civil de 2002 pelas partes contratantes, e não somente pelo juiz, na sua função de instrumentador da norma jurídica aberta. [76]

Pois entendemos que as partes, efetivamente orientadas por seus advogados, e adequando-se ao parâmetro de entes colaboradores e não simplesmente antagônicos no contrato, poderão utilizar-se dos princípios e deveres de conduta impostos pelo Código Civil de 2002, na consecução de instrumentos jurídicos eficientes e eficazes não só para elas, mas para a comunidade como um todo [77].

Mas como realizar isso?

Além da alteração do comportamento negocial/contratual, conforme expusemos no item 4.2. acima, há a necessidade de remodelação do advogado como negociador e criador de contratos, pois sendo este profissional o elo entre as partes e o instrumento jurídico elaborado, será ele o principal pivô dessa mudança. Enxergarmos, pois, a função instrumentalizadora do advogado.

Já analisamos que as cláusulas gerais necessitam se deparar com o caso em espécie para que sejam materializadas ou concretizadas. No entanto, convidamos os advogados a realizarem desde já a concretude da norma jurídica aberta, por meio da aproximação do contrato que criam aos preceitos impostos pela boa-fé e função social, o que pode ser efetivado através de adequada técnica de negociação e redação contratual.

Assim, ao invés de deixar todo do trabalho de concreção para o juiz, entendemos que o advogado alinhado às modernas técnicas contratuais deverá, ele mesmo, aproximar o instrumento jurídico às diretrizes de eticidade e socialidade, tomando os devidos cuidados para dar à luz a um contrato praticamente auto-suficiente, que não necessite da intervenção do Estado para ser interpretado e executado.

Conforme nos ensina Sílvio de Salvo Venosa [78], "... os intérpretes e aplicadores primeiros das normas contratuais e legais são as próprias partes interessadas" (grifo nosso), de modo que entendemos possível ao advogado interpretar os ditames da eticidade e socialidade, concretizando-os na negociação e redação do contrato.

Dessa forma, elencamos aqui os principais deveres práticos do advogado que reputamos essenciais para a perseguição do objetivo aqui proposto, qual seja, utilizar-se adequadamente do arsenal de cláusulas gerais e princípios impostos pelo Código Civil de 2002, com a finalidade de produzir negociações e instrumentos contratuais eficientes e eficazes.

4.3.1. Releitura dos conceitos jurídicos - Primeiramente, entendemos que os advogados deverão revisitar os conceitos do Direito Civil com a ótica da boa-fé objetiva e da função social dos contratos. É necessário, sim, estudo e releitura [79] dos institutos sob esse novo prisma, visto que será notória a mudança não exatamente da conceitualização desses institutos, mas da forma de aplicação dos mesmos.

Já sabiam os romanos que "nem tudo que é lícito é honesto" [80]. Com esse foco, deve o advogado, por exemplo, internalizar a cláusula geral da função social dos contratos, de modo a reler o conceito de adimplemento contratual. O conceito jurídico de adimplemento das obrigações está estampado no Título III do Código Civil, mas as consequências do adimplemento substancial [81], por exemplo, estão pautadas na função social dos contratos.

4.3.2. Busca por "novos modelos de realização do direito" [82]– O advogado moderno, alinhado com os novos parâmetros do mundo jurídico global, deve ter como meta a inovação nas formas de se realizar o Direito. É notório que o sistema judiciário como meio de solução de conflitos está em vias de colapso [83], daí a necessidade de se focar na negociação e elaboração de um instrumento contratual que possa cumprir com o seu objetivo, qual seja, levar às partes ao regular adimplemento dos deveres contratuais, ou permitir a discussão amigável e auto-suficiente para a solução de conflitos que surjam durante o expediente contratual.

Aplicando-se, por exemplo, o princípio da boa-fé objetiva nas três fases contratuais, conforme explanado no item 2.5 acima, acreditamos que o advogado terá todos os instrumentos necessários para conduzir as partes ao objetivo contratual indicado no parágrafo anterior. Esse deverá ser o espírito do advogado contratualista nesta nova era.

4.3.3. Aperfeiçoamento da técnica de redação contratual – Uma vez que o advogado já tenha imprimido na negociação do pacto os preceitos da boa-fé objetiva e da função social dos contratos (vistos nos Capítulos 1 a 3, acima), há que se manter este espírito também na redação do instrumento, cujos detalhes serão propostos nos capítulos que se seguem.

Conforme esclarecimentos que serão realizados no Capítulo 6, o contrato desempenha um importante papel na economia, motivo pelo qual deve ser redigido com a maior cautela e zelo possíveis, visando à auto-suficiência das partes para a solução de seus impasses.

4.3.4. O advogado como conselheiro - Estando o advogado ciente deste novo cenário legal aplicável aos contratos, é seu dever orientar o cliente a seguir tais ditames, oficiando, assim, sua função instrumentalizadora.

A nosso ver, é papel do advogado apontar os riscos da não obediência aos princípios do Código Civil de 2002, explicando, por exemplo, que caso o consulente não se comporte dentro do "frame" ou moldura delimitada pela boa-fé objetiva e função social dos contratos, todo tempo e dinheiro gastos na negociação e elaboração de um contrato poderão ser "jogados fora", vez que o juiz, caso venha a analisar o pacto, poderá integrá-lo, modificá-lo ou até mesmo anulá-lo, fazendo a correção de azimutes [84].

Por exemplo, é dever do advogado ressaltar ao seu cliente todos os deveres de conduta derivados da boa-fé objetiva e da função social dos contratos, elencados nos itens 2.4. e 3.5. acima, reforçando a ideia de que "passar a outra parte para trás" ou "bancar o espertinho" são comportamentos rejeitados pelo novo sistema, pois o juiz terá poderes para integrar o contrato [85] e limitar a autonomia das partes.

4.3.5. O advogado como agente minimizador de riscos – Em complemento ao disposto no item 4.3.4. acima, ressaltamos que o advogado deve colaborar para que seu cliente imprima nas relações com a outra parte negociante um comportamento confiante, evitando o clima beligerante que apenas resulta em negociações truncadas.

Como agente minimizador de riscos, o advogado deve alertar o seu consulente de que a famosa "Lei de Gérson" não vale mais a pena, e que o "negócio da China" não existe mais, bem como que uma discussão judicial leva anos para ser concluída, roubando tempo e dinheiro do seu cliente.

Repaginando-se e despindo-se da roupagem bélica típica dos profissionais de outrora, o advogado necessita imergir na solução de problemas jurídicos, e não na criação ou manutenção deles.

4.3.6. O advogado como propagador da Justiça Contratual – De acordo com a diretriz de eticidade, mencionada no item 1.2 (a) acima, o objetivo principal do novo Direito dos Contratos seria o alcance da Justiça Contratual.

A fim de nos auxiliar a aclarar esse conceito, que entendemos ser de suma importância para o advogado enquanto agente transformador na sociedade, citamos João Hora Neto [86] nos seguintes termos:

"Em apertada síntese, pois, a novel principiologia contratual tem por escopo teleológico alcançar a Justiça Contratual, que é uma espécie de Justiça Comutativa, segundo magistério de Fernando Noronha, ao observar que ‘a justiça contratual será, portanto, uma modalidade de justiça comutativa. Se a justiça costuma ser representada pela balança de braços equilibrados, a justiça contratual traduz precisamente a idéia de equilíbrio que deve haver entre direitos e obrigações das partes contrapostas numa relação contratual’". (Grifo nosso)

Daí, pois, a necessidade do advogado de ser um propagador da Justiça Contratual, alertando o seu cliente que será melhor, mais econômico e eficiente para todos, a assinatura de um contrato equilibrado para ambas as partes, em detrimento de um contrato que proteja excessivamente apenas um dos contratantes.

Poderíamos elencar aqui outras qualidades pertinentes à função instrumentalizadora do advogado, mas reputamos as acima destacadas como de suma importância para essa nova era contratual.

Oxalá que a comunidade possa vestir-se com essa nova roupagem jurídica, pois com certeza isso teria um reflexo "tsunâmico" na sociedade em geral.

4.4.As vantagens do advogado como negociador

Abriremos este sub-capítulo citando Alessandra Gomes do Nascimento Silva [87], cujos ensinamentos caem como uma luva para este ensaio:

"Por que muitos advogados têm receio de buscar uma solução amigável antes de ajuizar a famosa ‘ação judicial cabível’? Por que tantos tratam a audiência de tentativa de conciliação e julgamento como uma grande perda de tempo?"

Vivendo na era em que a boa-fé objetiva e a função social dos contratos são normas de ordem pública, os operadores do Direito – mas em especial os advogados – devem meditar sobre os questionamentos acima realizados, e devem se preparar para este novo estágio do mundo dos contratos. A negociação que visa à conciliação é o tônus desta nova era.

Portanto, como meio de desafogar o nosso lento judiciário, o papel do advogado como negociador ganha novo peso neste momento da nossa sociedade jurídica, pois acreditamos que inúmeros processos poderiam ser evitados, caso as partes recebessem adequada orientação antes de firmar o contrato; ou, uma vez instalada a lide, fossem as partes conduzidas à conciliação [88]. Por este motivo, entendemos que a negociação de contratos seja uma das facetas do Direito aplicado que deveria ser ensinada lá nos bancos das faculdades.

Ressaltamos, pois, algumas importantes considerações sobre o papel do advogado como negociador, baseando-nos nos ensinamentos de Alessandra Gomes do Nascimento Silva [89]:

a)O advogado deve estar bem preparado para enfrentar as mais variadas situações que a negociação nos propõe (pessoas não afeitas ao processo de negociar, táticas pesadas de negociação, controle das emoções, etc.). Assim como é necessário estudar adequadamente as regras de processo para atuar bem na jurisdição, também é necessário se tornar habilitado na arte de negociar;

b)É preciso deixar claro para o cliente as vantagens da negociação, e que este procedimento não representa fraqueza ou subordinação à outra parte [90], destacando, inclusive, as vantagens pecuniárias do procedimento, seja a economia de tempo para a solução da demanda, seja na economia dos honorários. É certo que o advogado até poderá receber proporcionalmente menos em comparação com uma demanda judicial, mas com certeza também trabalhará menos (o que gerará a oportunidade de manejar outros casos de outros clientes), e embolsará os seus honorários num curto lapso temporal (o que é bem mais vantajoso do que aguardar o êxito de uma ação judicial).

Dessa forma, entendemos que os advogados devem abraçar todos os meios necessários para a conciliação entre as partes [91], produzindo contratos que traduzam o que foi efetivamente negociado, de forma auto-suficiente, e que não demandem intervenção externa para serem interpretados ou executados.

4.5.Técnicas de negociação contratual

As técnicas de negociação que apresentaremos a seguir estão baseadas em estudos desenvolvidos principalmente nos Estados Unidos, aonde nasceu o Programa de Negociação da Faculdade de Direito da Universidade de Harvard [92], com a intenção de "aprimorar a teoria e a prática da resolução alternativa de conflitos" [93].

No entanto, nosso objetivo é focar estes estudos sob a ótica da boa-fé objetiva e função social dos contratos, realizando um intercâmbio de ideias entre o que já foi mencionado nos Capítulos anteriores, e as modernas técnicas de negociação contratual.

Portanto, o que é negociar contratos? Alessandra Gomes do Nascimento Silva nos auxilia nesta explicação [94]:

"Em juízo, nosso papel [advogados] é convencer o julgador no sentido de nossa tese jurídica. Na negociação, cabe-nos convencer a outra parte de que a proposta que temos a oferecer é a melhor alternativa que resta ao nosso oponente, caso o acordo não venha a se consolidar." (Grifo nosso)

Contudo, estamos convencidos de que não devemos apenas "convencer o nosso oponente" de que o acordo é a melhor alternativa. É preciso atuar com diligência em relação à outra parte (que ao invés de "oponente", poderia ser nomeada como parceiro contratual), cumprindo com os ditames de colaboração; proteção; cuidado; probidade; lealdade; confiança; equidade; razoabilidade; ou seja, atuando conforme os preceitos da boa-fé objetiva e a função social dos contratos.

Dessa forma, estaremos fermentando a parceria para que as vantagens negociais cresçam a tal ponto que o "pedaço do bolo" servido a cada parte será maior do que aquele inicialmente pensado pelos próprios contratantes. Trata-se de método oposto ao "ganha-perde", típico das relações negociais carentes de eticidade e socialidade.

Esse fermento que potencializa o bolo da negociação é composto pelos seguintes ingredientes, dentre outros:

(a) separar o conflito das pessoas nele envolvidas - é comum que clientes, e até mesmo advogados, troquem farpas durante a negociação, devido a problemas pessoais do passado, que muitas vezes nada tem a ver com o objeto negociado no presente; portanto, a "chave para a criação de um campo fértil para a negociação é conseguir manter o foco no problema a ser resolvido, separando-o das pessoas envolvidas." [95]

(b) olhar para as necessidades da outra parte, e não somente para as necessidades do nosso cliente – se a outra parte estiver confortável na negociação, ou seja, se ela estiver convencida de que suas necessidades estão estampadas no contrato de forma satisfatória, isso facilitará muito o adimplemento integral do contrato, o que certamente trará vantagens para todos. Neste ponto, podemos citar o dever de prestar informações necessárias à outra parte, como forma de atender às suas necessidades e ainda cumprir com os deveres anexos da boa-fé objetiva [96];

(c) criar um ambiente aonde o diálogo seja possível - "pois sem ele não há negociação". [97] Ao visualizarmos a outra parte como um parceiro contratual, e não como um inimigo, já teremos percorrido um bom caminho para alcançar a comunicação adequada. A partir daí, é preciso fomentar o diálogo, de forma que ambas as partes possam falar, e também possam ouvir.

Além desses ingredientes, gostaríamos de destacar outros pontos primordiais para a negociação de contratos. São eles:

4.5.1. Descobrindo os reais interesses das partes – muitas vezes, num primeiro briefing com a outra parte, o que conseguimos enxergar é somente a "ponta do iceberg", ou seja, uma posição já previamente formatada sobre o mote da negociação. Contudo, existe toda uma montanha de interesses (base do iceberg), que motiva as partes a realizarem um acordo jurídico, que são determinantes para o sucesso da parceria contratual.

Por isso, o advogado na sua função instrumentalizadora necessita desenvolver a astúcia para compreender a visão que a outra parte tem do negócio, o que não significa exatamente concordar com ela. Essa compreensão municiará o advogado para que consiga atender as necessidades do seu cliente e da outra parte, criando assim um ambiente favorável para o adimplemento do contrato.

Nesse sentido, citamos Herb Cohen [98]:

"Ao demonstrar desde o começo que compreende e se solidariza com as preocupações e dificuldades da outra parte, você pode atenuar tais apreensões. Acima de tudo, é importante transmitir por palavras, atos e atitudes que as diferenças são naturais e que existem oportunidades para explorar soluções criativas que resultem em um acordo benéfico para ambas as partes."

Cabe neste ponto, entretanto, um esclarecimento acerca do que são os reais interesses das partes, pois "são os interesses que movem as pessoas, e sua definição e conhecimento são as chaves que proporcionarão a solução do conflito." [99]

De acordo com os autores Roger Fisher, Willian Ury e Bruce Patton [100] temos que:

"Os interesses motivam as pessoas; são eles os motores silenciosos por trás da algazarra das posições. Sua posição é algo que você decidiu. Seus interesses são aquilo que fez com que você decidisse dessa forma." (Grifo nosso)

Assim, distinguimos a negociação baseada nos interesses (necessidades efetivas das partes, que precisam ser espelhadas no contrato), daquela baseada em posição negocial, também conhecida como barganha (a pessoa inicia a negociação com posições já formatadas e ganha quem estabelece menos concessões), método este pouco racional e que não atende o frame da boa-fé objetiva e função social do contrato.

4.5.2. Opções para a negociação – uma vez identificados os interesses, tanto da outra parte como do próprio cliente [101], o advogado, enquanto agente minimizador de riscos, deverá criar na negociação e, por conseguinte, na redação do contrato, as "opções de ganhos mútuos" [102] que possam atender satisfatoriamente tais interesses.

O método de invenção dessas opções é muito semelhante àquele utilizado por publicitários, escritores, atores, dentre outros profissionais que utilizam a criatividade como ferramenta de trabalho. É preciso deixar as opções fluírem, como num brainstorming, para somente depois pinçar as mais satisfatórias e estampá-las adequadamente no contrato. "O erro mais comum nas negociações é barrar esse processo criativo com críticas e recusas precipitadas de lado a lado." [103]

Ao selecionar as opções mais vantajosas, será bastante inteligente, por parte do advogado, primeiramente ressaltar quais as opções que atendem aos interesses comuns das partes. Aqui está uma ótima oportunidade para fermentar o bolo, e posteriormente dividi-lo em frações maiores, saciando as necessidades básicas dos parceiros contratuais.

O próximo passo será identificar quais as opções que atendem aos interesses divergentes, pois aqui estão os obstáculos que normalmente emperram a negociação. Analisando este cenário com inteligência dirigida ao assunto [104], é hora do advogado "explorar as preferências de cada parte envolvida" e "agregar valor ao acordo". [105]

Mas como saber quais são as preferências da outra parte?

Herb Cohen nos ensina que devemos "interagir com os outros de maneira a ajudar-nos a obter informações exatas e oportunas" [106] e para tanto menciona em sua obra os "princípios da busca", que de forma bastante pontual se resumem em:

a)Escute mais e fale menos – temos a tendência de impor nosso modus operandi negocial, o que dificulta ouvir a outra parte e, por conseguinte, dificulta descobrir os reais interesses dela, conforme já comentamos;

b)Faça perguntas não-ameaçadoras – criar um ambiente de confiança na negociação, além de atender ao princípio da boa-fé objetiva, propiciará à outra parte o conforto necessário para nos transmitir todas as informações aplicáveis à negociação em andamento. Ameaçar a outra parte apenas fará com que ela crie escudos de defesa, o que travará a comunicação e a negociação como um todo;

c)Manifeste seus sentimentos – ao manifestar interesse genuíno pelo que a outra parte está dizendo, haverá transmissão de empatia com a situação do parceiro contratual. Isso facilita muito o fluir das informações, estimulando os deveres de conduta mencionados nos itens 2.4 e 3.5 acima;

d)Reafirme as objeções – de forma clara, é necessário demonstrar que todas as objeções expressadas pelo transmissor foram entendidas pelo receptor, cerrando-se as portas para desentendimentos futuros por conta de interpretações dúbias;

e)Pratique o reforço positivo – sempre que a outra parte se dispuser a dar informações e revelar seus interesses, expresse reconhecimento, sendo generoso em seus elogios. Acreditamos que a mantença do ambiente cordial é um solo fértil para frutificar a lealdade e confiança, ou seja, a diretriz de eticidade imposta pelo Código Civil.

Descobrindo as preferências da outra parte, o advogado agregará valor ao acordo mediante a criação de opções de ganhos mútuos que facilitem o "sim". Isso não quer dizer que o advogado desempenhará um papel duplo, advogando para seu cliente e também para o outro signatário. O que se pretende demonstrar é que facilitando o cumprimento do contrato para a outra parte, o seu cliente receberá a prestação devida da forma mais simples e rápida possível. Leia-se: adimplemento contratual sem transtornos.

Com isso, atingiremos o que Alessandra Gomes do Nascimento Silva chama de negociação com "foco nos interesses e ganhos mútuos com criação de valor." [107]

4.5.3. Eleição de critérios objetivos para sustentar as opções criadas – ninguém gosta de sair lesado numa negociação, mas muitas vezes as partes arrastam essa sensação, vez que não estão plenamente convencidas de que suas necessidades foram adequadamente atendidas no processo negocial.

Isso normalmente ocorre porque tal avaliação é realizada com base em critérios subjetivos. Se as opções criadas estiverem baseadas em critérios simplesmente pessoais, fará nascer na outra parte a possibilidade de recusa no cumprimento da prestação (inadimplemento), por se sentir prejudicada.

Portanto, é tarefa do advogado negociador trazer à baila critérios objetivos que sustentem as opções que foram criadas para a satisfação dos interesses de ambas as partes, dando legitimidade à proposta de negociação realizada.

"Não basta criarmos opções de ganhos mútuos, é necessário que essas opções sejam legítimas e justas para que possam ser aceitas pelos envolvidos, de forma que eles a enxerguem com essas qualidades. Se assim não for, poderá haver recusa da opção ou revogação do acordado após a aceitação." (Grifo nosso) [108]

E como isso deve ser feito?

Alessandra Gomes do Nascimento Silva nos ensina que o "advogado pode usar o seu conhecimento da legislação e jurisprudência para fazer da negociação algo mais do que uma simples disputa de vontades." [109]

Além disso, o advogado fomentador da Justiça Contratual deverá nortear a discussão sempre focando os princípios da boa-fé objetiva e função social dos contratos, pois assim a outra parte se sentirá menos estimulada a descumprir um pacto que foi firmado com base na eticidade e na socialidade.

O importante, de qualquer forma, é eleger critérios que além de objetivos, sobrevivam ao "teste da aplicabilidade recíproca" [110], isto é, o critério cairá bem tanto se aplicado para a outra parte, como para o seu cliente.

Trata-se aqui de adotar padrões justos de conduta, pois o advogado, imbuído da sua função instrumentalizadora, não deverá negociar pactos com dois pesos e duas medidas.Há que se buscar o equilíbrio contratual [111].

4.5.4. Comunicação entre as partes envolvidas – já tivemos a oportunidade de ressaltar que o diálogo é o campo fértil da boa negociação [112], mas a comunicação entre os parceiros contratuais é tão relevante para a criação de um contrato paritário que voltamos a este ponto para melhor esmiuçá-lo.

Primeiramente, acreditamos que a comunicação deve se iniciar entre o advogado e o seu cliente. O advogado instrumentalizador dos princípios do Código Civil de 2002 deverá estimular o espírito de confiança no seu cliente, para que todos os dados relevantes para a negociação sejam fornecidos. Caberá ao advogado realizar a análise de toda a informação, para então transmiti-la de forma didática ao parceiro contratual.

Esta primeira fase da rede de comunicação é essencial para que cliente e advogados estejam sintonizados no alcance dos mesmos objetivos contratuais, pois não existe nada pior do que se reunir para a negociação com a outra parte, e ser surpreendido, ali, na hora, por fatos relevantes não fornecidos por seu próprio cliente.

A segunda fase da comunicação será instalada entre os parceiros contratuais, o que significa "falar e ouvir, entender e checar se entendeu e se foi entendido." [113]

Desenvolver, pois, habilidades de comunicação, deveria ser outra matéria a ser ensinada nos bancos das faculdades, pois conversas truncadas, inabilidade em ouvir o outro, ou mesmo dificuldades em expor sua argumentação, são verdadeiras pragas no campo da negociação, que certamente contaminarão os frutos, ou seja, os contratos daí resultantes.

No item 4.5.2 acima, citamos os principais pontos de como obter da outra parte as informações necessárias para a criação de ganhos mútuos, que serão extremamente relevantes para o desenvolvimento da comunicação entre os parceiros.

Além dos pontos acima mencionados, ressaltamos outros fatores essenciais para o bom fluir da comunicação negocial:

a)Organização dos assuntos – uma coisa é negociar a compra de um kitnet de 60m2; outra bem diferente é negociar a venda de uma empresa com centenas de funcionários e filiais. Portanto, em relações complexas, dividir o assunto em fatias, organizando-os por setores, é bastante apropriado para facilitar a comunicação. Assim as partes conseguirão focar a sua atenção em cada setor da negociação, caminhando passo a passo na estruturação do acordo de vontades;

b)Utilização da técnica do resumo – terminada a discussão de uma fatia da negociação, reputamos importante "resumir esse entendimento, de modo a verificar se sua compreensão está correta, dando ao outro a oportunidade de corrigi-la, caso tenha caminhado por algum rumo equivocado." [114] Desse modo, reafirmar os pontos negociados através da elaboração de uma ata de reunião, por exemplo, ou mesmo por meio da reafirmação verbal do que foi discutido, será de grande valia para evitar desentendimentos;

c)Firmeza na defesa dos interesses – negociar num ambiente de lealdade e confiança não significa dizer que o advogado deixará de ser firme na defesa dos interesses do seu cliente. Desistir da negociação de um ponto controvertido simplesmente para ser "simpático" com a outra parte, é cair na tentação de barganhar posições, o que não se coaduna com a negociação baseada nos interesses, como citado no item 4.5.1. Portanto, "um dos grandes desafios do negociador é conseguir ser empático e firme em situações mais calorosas de conflito, onde chances há de que você perca o controle de suas habilidades." [115]

4.5.5. Alternativas para a solução de impasses – é possível que, mesmo com a aplicação de todas as técnicas de negociação acima descritas, as partes não consigam fechar um acordo. Neste caso, o advogado que atua como agente minimizador de riscos e que desempenha a função de conselheiro de seu cliente, deverá apontar alternativas que auxiliem o seu consulente a alcançar o objetivo almejado, seja com aquele mesmo parceiro contratual, seja com outro.

Segundo Alessandra Gomes do Nascimento Silva [116], "conhecer as suas alternativas e as da outra parte é missão fundamental do negociador antes mesmo de iniciar qualquer transação." Isso porque, toda a negociação a ser realizada com um parceiro contratual, e a avaliação se aquele processo vale mesmo a pena, será baseado no seguinte critério: se o plano A não der certo, qual será o plano B?

Ter em mente este cenário de forma muito clara, fará do advogado um agente importante para que as partes alcancem, por exemplo, a função social daquele contrato que está por vir.

A celebração de um mau acordo, que não atinge sua função social, sem dúvida é um câncer na comunidade, pois gerará descontentamento, inadimplemento, impacto econômico com disputas judiciais, e toda uma cadeia negativa de fatores que consomem tempo, dinheiro e muita, mas muita paciência. Auxiliar o cliente a prevenir esta doença é função do advogado instrumentalizador dos princípios do Código Civil de 2002.

E qual seria a profilaxia neste caso?

Na teoria de negociação na qual baseamos este estudo, fomentar a MASA – Melhor Alternativa Sem Acordo [117], [118], será o caminho ideal para evitar a doença do mau acordo.

Primeiramente, o advogado que já desenvolveu uma boa comunicação com o seu cliente (vide item 4.5.4 acima) deverá discutir com ele quais são as alternativas caso o acordo com a outra parte não seja celebrado.

Ao analisar e esmiuçar a MASA, o advogado terá condições de: (a) orientar seu cliente adequadamente, avaliando quais os riscos, vantagens e desvantagens de prosseguir naquele caminho, "pois é mais fácil interromper as negociações quando se sabe para onde está indo" [119]; (b) mostrar para o parceiro contratual que, caso não seja celebrado com ele um acordo, o seu cliente terá alternativas para atingir seus objetivos. Isso poderá estimular o parceiro contratual a voltar para a mesa de negociações, desenvolvendo novas opções de ganhos mútuos.

Além de conhecer e esmiuçar a MASA do seu cliente (o que demanda realizar a lição de casa de forma adequada), também é importante que o advogado investigue a MASA da outra parte. A negociação é via de mão dupla, motivo pelo qual o teste de "aplicabilidade recíproca" [120] também se encaixa aqui.

Reputamos, assim, que o advogado agregará muito valor a uma negociação contratual, caso atue na trilha da eticidade e socialidade, conforme esmiuçado nos capítulos e itens anteriores.

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Sobre a autora
Karla de Souza Escobar Coachman

Advogada formada pela USP, pós-graduada pela rede UNIDERP/LFG, com título de especialista em contratos pelo CEU, além de diversos cursos de média e curta duração, inclusive pelo GVLAW.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COACHMAN, Karla Souza Escobar. Boa-fé objetiva e função social dos contratos aplicadas à negociação e redação de instrumentos jurídicos paritários. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2806, 8 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18643. Acesso em: 26 abr. 2024.

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