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A instituição do parto anônimo

Resumo:


  • O parto anônimo é uma política adotada por alguns países para permitir que pais deixem seus filhos recém-nascidos em hospitais para futura adoção.

  • A análise do parto anônimo através do Código Penal mostra que, em muitos casos, não configura crime, pois não expõe a criança a perigo de vida ou saúde.

  • O Estatuto da Criança e do Adolescente fundamenta a validade do parto anônimo, visando proteger integralmente a criança e garantir seu desenvolvimento físico, mental e social em um ambiente digno.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Sumário: 1 – Parto anônimo; 2 – Análise do parto anônimo através do Código Penal; 2.1 – O artigo 133 do Código Penal; 2.2 – O artigo 134 do Código Penal; 3 – Análise do parto anônimo através do Estatuto da Criança e do Adolescente; 4 – O parto pseudônimo; 5 - Conclusão.


1 – PARTO ANÔNIMO:

"Tudo é incerto neste mundo hediondo, exceto o amor de mãe." Quiséramos que essa frase, de autoria do escritor irlandês James Joyce, fosse irretocável. Entretanto, o mundo dos homens não é perfeito. Longe disso. A maternidade, para a maioria das mulheres, ainda é uma benção, um acontecimento pleno de alegria, felicidade e amor. Para outra parte, por sua vez, a gravidez nada mais é do que um fardo a se carregar. Muitas são as notícias que se vêem nos meios de comunicação de mães (e pais) que se livram dos seus filhos recém-nascidos, jogando-os em córregos, esgotos, rios, latas de lixo, ou até os vendendo. Não pensemos que essa prática é costume dos dias atuais. Há muito que crianças são abandonadas por seus pais biológicos, quaisquer que tenham sido as razões motivadoras do abandono: miséria, gravidez na adolescência, crianças com má formação, gravidez indesejada ou não planejada, distúrbios psicológicos maternos ou necessidades econômicas. Por mais que possa parecer inacreditável, houve época em que esse abandono era até mesmo aceito como prática social comum, como a conhecida roda dos expostos, que surgiu na Itália na Idade Média em que as crianças indesejadas eram deixadas em hospitais públicos.

Nesse contexto, vários países iniciaram uma política de assistência à essas crianças abandonadas no nascimento, através do chamado Parto Anônimo. Por meio desse, os pais que não quiserem, por qualquer razão, estabelecer vínculo com seu filho têm a opção de deixá-lo no hospital em que se deu o parto ou levá-lo ao hospital para que ele possa ser adotado futuramente. E, nessa linha, alguns projetos foram elaborados para que se tentasse a implementação dessa política no país. O Projeto de Lei 2834/2008 propõe a inclusão do parto anônimo no artigo 1638 do Código Civil como causa de perda do poder familiar do pai e da mãe, e conceitua o mesmo como "aquele em que a mãe, assinando termo de responsabilidade, deixará a criança na maternidade, logo após o parto, a qual será encaminhada à Vara da Infância e da Adolescência para adoção". Não nos parece, entretanto, o melhor conceito para o instituto, até mesmo porque exclui o direito do pai opinar e decidir por criar a criança, o que contraria a Constituição, que entende como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. O Código Civil é ainda mais claro ao estabelecer no artigo 1631 que compete o poder familiar aos pais, e na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Cabe lembrar que o poder familiar, como ensina o artigo 1632 do Código Civil, não é vinculado à coabitação dos pais. De outro lado, a menção expressa à perda do pátrio poder na hipótese de parto anônimo é despicienda, visto que a entrega do filho para adoção, expresso no parágrafo 2º do artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que o registro original da criança é cancelado e o pátrio poder não se restabelece. E somente se pode falar em restabelecimento de alguma coisa que foi perdida ou suspensa.


2.– ANÁLISE DO PARTO ANÔNIMO ATRAVÉS DO CÓDIGO PENAL:

Antes de entrarmos em uma análise mais detida do tema, convém esclarecermos o conceito de tipicidade. Considera-se típico o fato que se adéqua perfeitamente à descrição prévia de um crime. É a subsunção da conduta aos elementos descritivos desse crime. O fato praticado, portanto, não seria típico caso não correspondesse integralmente ao previamente descrito em lei. É a aplicação do princípio da legalidade, que na esfera penal se extrai do brocardo jurídico "nullum crimen, nulla poena sine praevia lege".

Assim, no corpo do Código Penal, acreditamos que apenas dois artigos poderiam suscitar dúvidas quanto ao entendimento de que o parto anônimo seria um ato penalmente punível. Os artigos 133 e 134.

2.1.– O artigo 133 do Código Penal:

Dispõe o referido artigo:

"Art. 133 - Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono:

Pena - detenção, de seis meses a três anos".

A doutrina majoritária entende que, para a configuração do crime de abandono de incapaz, deve existir, simultaneamente, o dever de cuidado, guarda, vigilância ou autoridade e a ocorrência de situação de perigo para a vida ou saúde provocado por quem tinha esse dever prévio de garantir-lhes a incolumidade pessoal. Assim, a ocorrência de apenas um dos requisitos torna atípico o fato. E, como se denota, o abandono de criança recém-nascida enquadra-se, apenas, na primeira parte do artigo. Cabe à mãe ou ao pai o dever de cuidado com relação ao filho menor, isso não se discute. Outrossim, o parto anônimo, da forma como vem sendo feito nos países em que é legalizado e como é tratado nos projetos de lei, não coloca o recém-nascido, em momento algum, em situação de perigo de vida ou de saúde. Ao contrário, a criança é deixada aos cuidados de profissionais capacitados da área da saúde e em nosocômios equipados para cuidar plenamente de seu bem-estar.

Continuam os doutrinadores que defendem esse ponto-de-vista, que, por ser um crime de perigo concreto, ou seja, aqueles crimes que requerem, para sua verificação, a produção de um resultado, individualmente verificável no caso fático, deve existir real perigo de dano ao objeto protegido pela norma. Para ROXIN [01], nos delitos de perigo concreto "la realización del tipo presupone que el objeto de la acción se haya encontrado realmente em peligro em el caso individual".

Há autores, como Ney Moura Teles, que entendem que existe o crime se o agente, mesmo quando se mantém próximo da vítima, "simplesmente deixa de realizar as ações necessárias à sua proteção" [02]. Respeitando esse posicionamento, entendemos que razão assiste à teoria que preconiza que deve existir real perigo de dano que possa advir da ação ou omissão do agente. Nesse sentido as decisões do TJMG:

"NÚMERO DO PROCESSO: 1.0180.03.009024-5/001(1)

Segundo abalizada doutrina, crime "é uma conduta (ação ou omissão) contrária ao Direito, a que a lei atribui uma pena" (in Manoel Pedro Pimentel, "O crime e a pena na atualidade", São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1983, p. 2).

Assim,

"Para que se possa afirmar que o fato concreto tem tipicidade, é necessário que ele se contenha perfeitamente na descrição legal, ou seja, que haja perfeita adequação do fato concreto ao tipo penal" (in Júlio Fabbrini Mirabete, Manual de Direito Penal, Parte Geral, 18ª ed., Ed. Atlas, p. 101).

De fato, na hipótese sub examine, a conduta praticada pela recorrida é atípica, não se subsumindo àquelas insculpidas nas normas proibitivas em que foi dada como incursa.

Em relação ao crime de abandono de incapaz, colhe-se:

"O delito só é punível a título de dolo, ou seja, a vontade livre e consciente de abandonar o incapaz, expondo a perigo sua vida ou saúde, como decorrência do abandono. (...)" (in CódigoPenal e sua Interpretação Jurisprudencial, Alberto Silva Franco e outros, volume 2, Parte Especial, Editora Revista dos Tribunais, 7ª edição, p. 2.290)".

2.2.– O artigo 134 do Código Penal:

O artigo 134 do Código Penal considera crime expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria. A despeito de, em uma análise superficial, parecer que o tipo penal se enquadraria ao parto anônimo, temos que lembrar que, nesse crime, é necessária a previsão de um dolo específico do autor. Em outras palavras, o tipo penal não só exige que o autor queira a prática do crime como impõe que a ação tenha uma finalidade específica, o intuito de ocultar desonra própria. Nos casos em que se considere, portanto, que o abandono do recém-nascido se deu para ocultar desonra própria, que a doutrina ensina ser apenas a honra sexual, o fato se enquadraria no tipo do artigo 134, sendo que nos demais o fato seria atípico.


3.– ANÁLISE DO PARTO ANÔNIMO ATRAVÉS DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:

Vários artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente podem ser colacionados para fundamentar a validade da instituição do parto anônimo. Essa lei tem como intuito a proteção integral da criança e do adolescente, e esclarece no artigo 3º que são assegurados às crianças e aos adolescentes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Seria interessante colocar nesse ponto que a entrega da criança para adoção via hospital no início da vida, a despeito de estar longe do ideal, ao menos tenta preservar um pouco da dignidade do infante. A dignidade que, lembremos, é fundamento da República Federativa do Brasil.

A leitura do artigo 4º nos traz como obrigação solidária da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, entre outras coisas, a efetivação do direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar. Ousamos complementar o preceito afirmando que toda criança tem o direito não apenas à convivência familiar, mas à convivência familiar amorosa e sadia, o que se coaduna mais com a proteção integral da criança. Assim, sendo obrigação solidária, cabe a todos em conjunto a proteção desses direitos. E, não o fazendo a família, devem fazê-lo os demais obrigados. A lei do parto anônimo, assim, ao mesmo tempo em que tenta diminuir os casos de infanticídio, aborto e abandono de recém-nascidos, busca garantir de maneira menos traumática a inserção da criança dentro de um ambiente familiar sadio. Esse o conteúdo do artigo 18, que ensina que é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

O mesmo estatuto abre um capítulo inteiro para o direito à convivência familiar, tão importante na construção da personalidade e do caráter da criança. Vargas, citado por Liana Fortunato Costa e Niva Maria Vasques Campos [03], ao analisar a adoção, esclarece que "o abandono legal não está definido claramente no Estatuto da Criança e do Adolescente - permite respeitar o desejo dos pais de não assumir o filho (agilizando o processo), oferecendo, ao mesmo tempo, possibilidade à criança de ter a segunda melhor chance de construir relações estáveis que são vitais para o seu desenvolvimento". E o parto anônimo, segundo seus defensores, agilizaria esse processo. Por sua vez, Boing e Crepaldi [04] argumentam que "a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua com a mãe ou mãe substituta permanente, ou seja, uma pessoa que desempenha, regular e constantemente, o papel de mãe, mostra-se essencial à saúde mental do bebê. É essa relação complexa, rica e compensadora com a mãe, nos primeiros anos de vida, enriquecida de inúmeras maneiras pelas relações com o pai e familiares, que a comunidade científica julga estar na base do desenvolvimento da personalidade e saúde mental". E acreditamos que esse tipo de relação deva ser, mais que biológica, socioafetiva. A filiação socioafetiva é entendida como sendo a que se constitui na convivência familiar, independentemente da origem do filho. É a relação afetiva próxima e sempre presente, é quem cuida, dá carinho e atenção. É o que ensina Paulo Luiz Netto Lôbo [05], ao ensinar em breves palavras que "Pai é o que cria. Genitor é o que gera". O citado autor [06] esclarece também que "o ponto essencial é que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não; ou seja, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a não-biológica".

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A ONU, ao elaborar a Convenção para os direitos da criança, reconhece, nessa linha, que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão.


4.– O PARTO PSEUDÔNIMO:

Entendemos, ainda, que a terminologia do instituto não é a mais adequada. A palavra anônimo significa sem nome ou sem assinatura. É o antigo método da roda dos expostos ou da atual janela de Moisés da Alemanha, em que os recém-nascidos são deixados em locais próprios para serem recolhidos e levados à adoção posterior sem informação nenhuma dos pais biológicos. E não é o que melhor preserva os direitos futuros da criança, como possível necessidade de conhecimento de dados genéticos, pois os pais biológicos da criança, como o próprio nome diz, seriam desconhecidos. Melhor seria a instituição do parto pseudônimo, sendo a palavra pseudônimo o nome fictício ou falso usado por alguém para esconder ou proteger o nome real.

Assim, o nome real não constaria dos registros públicos mas constaria dos registros particulares dos hospitais para posterior consulta. Na França, o parto anônimo, ou accouchement sous X, permite que a mulher que não quer o filho seja atendida de forma gratuita no hospital, durante toda a gravidez, sem que precise fornecer seu nome ou seus dados verdadeiros. Tem a sua identidade mantida em segredo, com um nome fictício, e realiza o parto com todas as condições sanitárias necessárias. Ademais, temos que ressaltar que o sigilo da identidade dos pais seriam devidamente protegidos, pois mesmo a possibilidade de quebra do mesmo teria de ser precedida de pedido judicial.

Portanto, podemos conceituar o parto pseudônimo como aquele em que os pais biológicos, ou apenas um deles, na ausência ou desconhecimento comprovado do outro, se dispõem a, voluntária e graciosamente, abrir mão do poder familiar, entregando o recém-nascido para adoção, protegidos pelo sigilo relativo de identidade e amparados economicamente pelo poder público nos atos e procedimentos preparatórios e procedimentais do parto.


5 – CONCLUSÃO:

De todo o exposto, se vê que o parto anônimo é mais uma tentativa louvável de proteger o direito à vida, à incolumidade e à saúde de tantas crianças e dá-las a chance não só de sobreviver, como de crescer em um ambiente familiar sadio. Mas, apesar de louvável, é paliativa, no sentido de servir apenas para aliviar temporariamente uma situação atual e preocupante. Institucionalizar o parto anônimo, pura e simplesmente, seria atenuar ou adiar a solução do caso. A tentativa é válida, mas como medida emergencial, pois o importante é a (difícil e árdua) conscientização da população sobre a importância do tema. O problema reside, bem como inúmeros outros, na base. O ensino regular e sério de educação sexual nas escolas, o incentivo e a garantia de acesso a métodos contraceptivos, toda e qualquer política pública que possa conscientizar a população. Ademais, existe ainda a questão financeira, pois é complicado pensar que as instituições públicas de saúde, que já fazem malabarismos para funcionar com o orçamento que têm, possam ser capazes de montar um aparato completo e eficaz para cuidar dos casos de parto anônimo. Os artigos 2º e 5º do Projeto de Lei 2747/2008, por exemplo, deixam claro esse aumento na estrutura administrativa e financeira dos hospitais, ao estabelecer que "todas as unidades gestoras do Sistema Único de Saúde, obrigam-se a criar um programa especifico com a finalidade de garantir, em toda sua rede de serviços o acompanhamento e a realização do parto anônimo" e que "os hospitais deverão criar estruturas físicas adequadas que permitam o acesso sigiloso da mãe ao hospital e o acolhimento da criança pelos médicos".

Assim, a tentativa é válida, não se nega, mas dificilmente obterá sucesso se não for seguida de políticas sociais eficazes.


Notas

  1. ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General, Tomo I, p. 336.
  2. TELES, Ney Moura. Direito Penal: parte especial, v. 2. São Paulo: Atlas, 2004, p. 234.
  3. COSTA, Liana Fortunato; CAMPOS, Niva Maria Vasques. A avaliação psicossocial no contexto da adoção: vivências das famílias adotantes. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília: v. 19, n. 3, set-dez 2003.
  4. BÖING, Elisângela; CREPALDI, Maria Aparecida. Os efeitos do abandono para o Desenvolvimento psicológico de bebês e a Maternagem como fator de proteção. Estudos de Psicologia. Campinas, v.21, n.3, p.211-216. Set./dez. 2004.
  5. LÔBO, Paulo Luiz Netto.O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana. Revista Brasileira de Direito de Família, n. 1, p. 72.
  6. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A paternidade Socioafetiva e a verdade real. Revista CEJ. Brasília, n.34, p.15-21, jul./set. 2006.
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Sobre o autor
André Pataro Myrrha de Paula e Silva

Analista Jurídico do Ministério Público de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, André Pataro Myrrha Paula. A instituição do parto anônimo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2811, 13 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18674. Acesso em: 18 dez. 2024.

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