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Imunidade p´rá lamentar

21/04/1998 às 00:00
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Com o terrível episódio de Ed. Palace II, a sociedade brasileira - diante da justa preocupação com a provável incapacidade do nosso sistema jurídico punir os responsáveis pela tragédia - se mobiliza mais uma vez para dar fim à imunidade parlamentar. No afã de querer ver o Deputado Sérgio Naya receber o merecido castigo pelos seus atos como dirigente da empresa Sersan, é compreensível que o cidadão comum, de uma maneira geral, queira por fim a esse instituto. Contudo, causa-nos espécie a notícia (publicada na coluna Informe JB de 5/3/98) de que o Deputado Carlos Minc e o ex-procurador Antônio Carlos Biscaia estivessem colhendo assinaturas para um documento a ser enviado ao Planalto, pedindo o seu fim. Esses, por dever de ofício, sabem - ou deveriam saber - da sua importância e suas implicações com a democracia. Mas, afinal, o que é a imunidade parlamentar? O que justifica mais esse privilégio dado aos nossos políticos?

A teoria da separação dos poderes - que através da obra De l´espirit des lois, de Montesquieu, se incorporou ao constitucionalismo - foi concebida para assegurar a liberdade aos indivíduos, enfraquecendo o poder do Estado. Ela é formulada de maneira a atribuir cada uma das três funções estatais - a legislativa, a executiva e a judiciária - a órgãos distintos. Assim, "pouvoir arrêt pouvoir", ou seja, o próprio poder constitui um freio para o poder. Essa teoria, ao longo do tempo, se transformou em um dos principais dogmas do Estado Moderno, havendo até mesmo quem sustente a impossibilidade da democracia sem a separação dos poderes. Contudo, não basta distribuir as funções do Estado pelos três poderes para que se tenha uma democracia. É preciso que se dê a cada um desses poderes mecanismos que possam estabelecer e garantir sua independência frente aos demais e assegurar a liberdade de ação para os seus integrantes.

As garantias do Poder Judiciário constituem o chamado autogoverno da magistratura e se realizam através do exercício de atividades normativas e administrativas de auto-organização e auto-regulamentação. A autonomia financeira - através da prerrogativa de elaboração do próprio orçamento - amplia esse conceito. Aos magistrados, são-lhes concedidas garantias que se destinam a tutelar sua independência, inclusive perante os outros órgãos. Quais sejam:

- a vitaliciedade, que significa que o magistrado - após o estágio probatório para o juiz de primeiro grau - não pode perder o cargo a não ser por sentença judiciária;

- a inamovibilidade, pela qual o juiz não pode ser removido contra a sua vontade nem mesmo por promoção; e

- a irredutibilidade de vencimentos, salvo os impostos gerais.

A cada uma das Casas que compõem o Poder Legislativo - como elemento básico de sua independência - cabe elaborar seu regimento interno; dispor sobre a sua organização; funcionamento; polícia; criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços; e fixação da respectiva remuneração, observados apenas os parâmetros estabelecidos na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Dentre as prerrogativas constitucionais dos congressistas, estabelecidas como garantia de sua independência, podemos citar:

- a inviolabilidade, que é a exclusão de cometimento de crime por parte de Deputados e Senadores por suas opiniões, palavras e votos;

- a imunidade, que é uma prerrogativa processual, não exclui o crime mas, tão somente, impede o processo. Envolve ainda a disciplina da prisão e do processo do congressista;

- a limitação ao dever de testemunhar, que desobriga os congressistas de testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, nem sobre as pessoas que lhes confiaram ou deles receberam informações;

- o privilégio de foro, que estabelece - em proteção do mandato - que Deputados e Senadores só serão submetidos a julgamento, em processo penal, pelo Supremo Tribunal Federal; e

- a isenção do serviço militar.

A imunidade parlamentar assegura que os congressistas não poderão ser presos, salvo em casos de flagrante de crime inafiançável, dentro do período que vai desde a sua diplomação até o encerramento definitivo do mandato. Na eventualidade da prisão em flagrante, os autos devem ser remetidos à sua respectiva Casa dentro de vinte e quatro horas para que, pelo voto secreto da maioria absoluta de seus membros, resolva sobre a prisão e autorize - ou não - a formação de culpa. Quanto ao processo, na nossa Constituição a questão é bastante clara. Não interessa a natureza do crime, nem se o mesmo é ou não afiançável, o congressista não poderá ser processado criminalmente sem prévia licença de sua respectiva Casa. Isso faz com que, mesmo nos governos totalitários, o congressista não seja obrigado a se submeter às ameaças do Executivo, garantindo assim um mínimo de democracia.

Entretanto, infelizmente é o mau uso desta prerrogativa que gera revolta em nossa população. Ao abrigar sob o manto da imunidade os crimes cometidos antes do início do mandato parlamentar, assim como aqueles que de forma alguma se relacionam com a atividade do cidadão como Deputado ou Senador, esse importante dispositivo constitucional acaba fazendo com que o nosso Congresso possa servir de esconderijo para assassinos, traficantes, ladrões, falsários e tantos outros criminosos que querem usar o mandato popular como alvará de soltura. No caso em questão, não existe nenhuma relação entre os negócios do Engenheiro Sérgio Naya com as atividades do Deputado Sérgio Naya. Então, por que proteger o engenheiro com uma imunidade privativa do congressista? Portanto, é importante e urgente que as distorções existentes sejam corrigidas e, também, é importante e urgente que se saiba evitar campanhas oportunistas contra os nossos fundamentos democráticos.

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Assim, como podemos perceber, a imunidade parlamentar é um dos mais importantes pilares de sustentação da nossa incipiente democracia. Esta, conseqüentemente, ainda não está fundada em uma estrutura muito sólida. Se não reforçarmos os alicerces democráticos do Brasil - consertando os diversos pilares que apresentam armações aparentes, evitando que um deles, o da imunidade, seja "flambado" - quando houver o desabamento parcial da nossa democracia, só nos restará assistir a materialização da vontade daqueles que, desde já, querem implodir o sistema de governo verdadeiramente democrático. Então, estaremos todos desabrigados...

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Sobre o autor
Alexandre Pouchain de Moraes

advogado no Rio de Janeiro, especialista em Direito do Consumidor pela PUC/RJ, piloto de linha aérea, investigador de acidentes aeronáuticos formado pelo CENIPA, conselheiro fiscal do Sindicato Nacional dos Aeronautas

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAES, Alexandre Pouchain. Imunidade p´rá lamentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 24, 21 abr. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/188. Acesso em: 22 dez. 2024.

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