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Sobre a dupla valoração do dolo no conceito estratificado de crime, a partir da nova concepção complexa de culpabilidade, e seu reflexo na compreensão do erro sobre pressuposto de fato de causa de justificação.

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01/04/2011 às 17:39
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5. As concepções de culpabilidade

Cada um dos modelos antes demonstrados tem seu próprio entendimento acerca dos elementos que vão compor os diversos estratos da infração penal. Não seria diferente com a culpabilidade!

No modelo causal clássico, a culpabilidade é vista como a parte subjetiva do delito, separada do injusto, que é objetiva. Assim, o elemento anímico, psicológico, encontra-se totalmente na culpabilidade, constituída do dolo e da negligência. Por isso, se convencionou chamar esse modelo de culpabildade de teoria psicológica, isto porque, nesse momento, a culpabilidade é tida como o vínculo subjetivo, psicológico, que prende ao resultado o autor. Se ao injusto se prende a causação externa, a culpabilidade contém a causação interna e dolo e negligência são a própria culpabilidade, como suas espécies.

Sob a perspectiva neo-clássica, com a inserção de um conceito mais amplo de reprovabilidade na culpabilidade, esta passa a ser, além do aspecto subjetivo da infração penal (agora nem tão estanque assim!), basicamente, reprovabilidade por um comportamento contrário ao Direito. Neste momento, há um conjugar de elementos subjetivos e normativos dentro da culpabilidade. Até por isso, convencionou chamar esse viés téorico de psicológico-normativo.

Pela visão do finalismo, depurou-se da culpabilidade o elemento anímico, tornando-a somente normativa. Por isso, convencionou-se chamar tal teoria de normativa pura. Isto porque, na culpabilidade, só vão caber elementos valorativos, com base na idéia de reprovação. Pelo padrão finalista, se pode definir a culpabilidade como o juízo de reprovação que incide sobre a conduta de um sujeito que, tendo ciência ao menos potencial da ilicitude de sua conduta, podendo atuar conforme o direito, toma atitude contrária a este.

O modelo que tem prevalecido entre os doutrinadores pátrios é o da culpabilidade normativa, em que, de certa forma, esta ficou depurada de elementos anímicos. Mais especificamente, ficou "livre" do dolo e da negligência, que são integrantes do tipo.

Este modelo doutrinário acaba deixando à culpabilidade a função de ser um juízo de desvalor (reprovação) sobre o injusto. É neste estrato que se valora o nível de desvio da conduta do sujeito, sopesando-se a apenação necessária e proporcional ao nível de reprovação.


6. A dupla valoração do dolo na teoria do delito: teoria complexa da culpabilidade.

De acordo com GOMES (2001), os principais cultores da moderna teoria complexa da culpabilidade são GALLAS, WESSELS, JESCHEK, MAURACH, SCHMIDHÄUSER e BETTIOL. Tal teoria começou a ganhar força a partir dos anos 80 do século passado e tem por fundamento principal o desenvolvimento do conceito de atitude interna do sujeito frente ao bem jurídico violado com sua ação.

Por assim dizer, a culpabilidade, no viés complexo "compreende a capacidade de culpa (imputabilidade), os elementos especiais da culpabilidade, a forma de culpabilidade, a consciência do injusto e a ausência de causas exculpantes." (GOMES, 2001) [sem grifos no original]

A teoria complexa da culpabilidade parte de uma aproximação entre o injusto penal e a culpabilidade. Com esta tese, o dolo passa a ter uma dupla posição, uma dupla valoração dentro da teoria do delito. Fala-se em aproximação já que, conduzida pelo conceito de dolo, há uma interpenetração do objeto da valoração e o juízo de desvalor: injusto e culpabilidade estão alinhados. Quer dizer, todo aquele estancamento que foi promovido pelo causalismo e que foi atenuado pelo finalismo, de certa forma, perde eficácia com a teoria complexa.

Tomando por base a teoria finalista e a pureza conceitual que esta buscou, quando deixou na culpabilidade apenas elementos de cunho normativo, reunidos na idéia central de reprovabilidade, há um deslocamento, como se mostrou, do dolo para o tipo, tornando-se aquele seu elemento subjetivo: o dolo não compõe mais a culpabilidade, como o fazia no causalismo clássico. É o dolo do tipo. E revela uma atitude externa do sujeito frente ao fato que deseja praticar, composto de um momento volitivo e um intelectivo, como já dito.

Para a teoria complexa da culpabilidade, além de ser elemento subjetivo geral do tipo, o dolo vai também servir para a censura da culpabilidade, revelando uma atitude interna do sujeito face ao bem jurídico ofendido por sua conduta. Ou seja, esta atitude interna de ânimo do sujeito deve ser levada em consideração para a reprovação de sua conduta.

Por isso é que se disse, alhures, que o dolo ocuparia uma dupla posição no conceito estratificado de delito. No tipo, representa a forma da conduta – dolosa ou negligente – e compreende a relação psíquica do autor com o acontecimento. Realização consciente e voluntária dos elementos do tipo. Na culpabilidade: representa forma desta; vem como portador do desvalor do ânimo, da atitude interna do sujeito.

Diz GOMES (2001):

do dolo configurador do fato típico (consciência e vontade de realizar os requisitos objetivos do tipo) sobressai uma especial atitude interior de menosprezo ou indiferença à violação ao bem jurídico; da culpa decorre uma atitude de descuido, de leviandade.

Por isso, mais uma vez, é que se pode falar em uma aproximação entre injusto e culpabilidade.

Necessário esclarecer, até por ter sido esta uma das críticas levantadas à teoria complexa, que não há uma dupla colocação do dolo em instâncias diversas do conceito de crime. Jorge de Figueiredo Dias, disseca o sistema dizendo que

Não é o dolo e a negligência que sofrem uma dupla valoração no sistema, uma em sede de tipo de ilícito e outra em sede de tipo de culpabilidade; é, sim, a dupla valoração do ilícito e da culpabilidade que intervém na completa modelação do dolo e da negligência. (GOMES, 2001)

Assim, não é que o dolo esteja em dois lugares diversos, compondo dois estratos do delito. Mas sim que, para sua completa modelação, é necessária uma dupla valoração de si. E é essa idéia de dupla função do dolo que gera a teoria complexa da culpabilidade. Complexa porque não vê na culpabilidade apenas elementos normativos, como queria o finalismo; mas insere nela, no sentido de juízo de reprovação, uma valoração sobre a atitude de ânimo do sujeito frente ao bem jurídico ofendido.

Disse ROXIN:

sobre se o dolo ‘pertence’ ao tipo ou à culpabilidade, é, portanto, um problema aparente. O dolo é essencial para o tipo, porque sem ele não se pode precisar na forma que exige o estado de Direito a descrição legal do delito; porém, é igualmente relevante para a culpabilidade, porque deve delimitar a forma mais grave da culpabilidade da mais leve (a imprudência) e por isso deve configurar-se seu conteúdo de acordo com os princípios valorativos destas categorias. (GOMES, 2001)

É próximo daquilo a que já se referiu GRAF ZU DOHNA quando observou que o injusto penal é o objeto de valoração, enquanto que a culpabilidade é o juízo de valoração. Ou seja, o dolo vai compor o tipo de injusto como elemento subjetivo formador do objeto valorado; na culpabilidade, vai formar uma espécie de culpabilidade, reveladora de um certo estado de ânimo, que reverbera no injusto, como juízo de valor, de desvalor desse mesmo estado de ânimo, revelando uma atitude interna de contradição com ordenamento jurídico, com o bem jurídico protegido, merecendo maior ou menor censura.

Cumpre mencionar, para que se evitem confusões conceituais, que as posturas do sujeito frente ao bem jurídico e ao ordenamento jurídico conformam institutos diversos. E a culpabilidade complexa os comporta a ambos: consciência do injusto e formas de culpabilidade (dolosa e negligente).

Ter consciência da ilicitude, conforme já se disse,

significa compreender a natureza do fato praticado, e compreender é internalizar o significado deste fato, o que ironicamente demonstra que na maioria dos crimes ou o autor não compreendeu de verdade a natureza ilícita da sua conduta – pois se tivesse compreendido não teria transgredido a lei -, ou na opinião que merece ser considerada, caso tenha reconhecido, não a aceitou e resolveu por um ato de vontade violá-la. (RODRIGUES, 2004, 63)

Assim, quando se fala em ciência da ilicitude, que no finalismo é potencial, toca-se a idéia de que o sujeito tem ou deve ter capacidade de entender que sua conduta contraria a ordem jurídica como um todo. Seu comportamento é, na culpabilidade, desvalorado face a sua antijuridicidade. Em outras palavras, o juízo de reprovação da culpabilidade, amparado na ciência da ilicitude, diz respeito à conformação de uma vontade que, podendo ser acorde com o ordenamento, se distancia desse. É a reprovação do sujeito em função do seu desrespeito ao ordenamento jurídico, quando, violando uma norma de dever (GOLDSCHMIDT), na normalidade das condições (FRANK), podia comportar-se de maneira adequada, sendo-lhe exigido este comportamento (FREUDENTHAL).

Conforme WELZEL,

Objeto da censura da culpabilidade é a vontade antijurídica de ação, seja no dolo adequado ao tipo ou na lesão não-dolosa de negligência; em ambos os casos, é um elemento da ação antijurídica. Esta dolosa ou não-diligente vontade de ação é censurada ao autor, na medida em que pôde chegar ao seu conhecimento a antijuridicidade da ação, e converter-se em contramotivo que determina o sentido. (WELZEL, 2003, 248-249)

No que tange às formas de culpabilidade, dolosa e negligente, estas tocam a atitude interna do sujeito frente ao bem jurídico protegido pela lei penal, como já mencionado algures.

Não é a desconformidade do atuar com o ordenamento jurídico, mas o descuido, o menosprezo ou a indiferença do agente para com aquele interesse que viola, revelando um determinado estado de ânimo, que também se reprova, fundamentando uma resposta dolosa ou negligente por parte da lei.

Enfim, embora sejam baseados na mesma idéia de reprovação – que inspira o sentido de culpabilidade – a consciência do injusto é reprovação pela conformação de uma vontade contrária à norma; e as formas de culpabilidade são reprovação pela atitude interna de ânimo do sujeito frente aos bens jurídicos especialmente tutelados pela lei Penal.

E, com tudo isso, o mesmo dolo que fundamenta a tipicidade dolosa compõe uma reprovação dolosa, e assim fica conformado completamente.

Em síntese, nas palavras de JESCHEK:

No injusto, o dolo é portador do sentido de contraposição da ação com respeito à norma jurídica, na culpabilidade, portador do desvalor da atitude interna que o fato expressa. Esta dupla posição do dolo se corresponde com a dupla situação, na esfera da antijuridicidade e da culpabilidade, que caracteriza a imprudência. (GOMES, 2001)

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De forma que, com base nesse entendimento, se poderia falar em duas formas de culpabilidade: uma dolosa e outra culposa, por isso se mencionaram essas formas quando da definição da culpabilidade complexa. Ou seja, quando o sujeito forma a sua vontade livre e conscientemente para a realização de uma finalidade, atua dolosamente, com o chamado dolo do tipo. A sua atitude com relação ao fato é dolosa. No entanto, para o juízo de reprovação da culpabilidade, necessário avaliar sua atitude interna com relação ao bem jurídico visado ou atingido, de forma a compor-se uma culpabilidade dolosa ou negligente, conforme se possa verificar por parte do sujeito menosprezo (dolo direto), indiferença (dolo eventual) ou descuido (culpa), com relação ao bem jurídico.

O dolo, então, não revela só a vontade livre e consciente de realizar os elementos do tipo: revela também uma atitude interna de menosprezo pelo bem jurídico, atuando como forma de reprovação:

O dolo, sintetiza Wessels, como tipo de culpabilidade, é a adversa ou indiferente posição do autor em face das normas de conduta do Direito" marcante para a culpabilidade por negligência, por outro lado, é a desatenta ou descuidada posição do autor em face das exigências de cuidado da ordem pública. (GOMES, 2001)

Face isso, há uma relação indiciária entre a tipicidade dolosa e a culpabilidade dolosa, ou melhor, entre o injusto típico doloso e a culpabilidade dolosa. Só que, como referido, essa relação é meramente indiciária, podendo haver razão a modificar esse vínculo e possibilitar um injusto doloso com uma culpabilidade culposa, bastante mais aproximada do que está disciplinado no art. 20, §1º, do CP e do que o finalismo consegue explicar.


7. Conseqüência no entendimento do erro

Se todo o edifício do Direito Penal foi construído sobre a conduta humana e como o equívoco é algo imanente ao ser humano, o Direito Penal não poderia descurar, como já disse GOMES (2001), de um estudo aprofundado do erro jurídico-penal. De maneira que, desde sempre, as legislações cuidaram da possibilidade de o ser humano atuar em falsa compreensão dos fatos ou faltando-lhe completamente esse entendimento.

Para o presente estudo, embora não seja assunto de menor importância, não se abordarão as bases científico-doutrinárias que, em seu desenvolvimento conceitual, culminaram com a formulação do erro de tipo e do erro de proibição, com a conseqüência do afastamento, nos casos de inevitabilidade.

Basta, para que se chegue à conclusão que se deseja, fincar os seguintes alicerces: a) os dois grandes blocos de conceitos sobre os quais incidem os erros jurídico-penais são o dolo e a consciência da ilicitude, que estão, ao menos atualmente, em instâncias segregadas no conceito estratificado de crime; b) o erro de tipo incide sobre o tipo objetivo e afasta o dolo. Se este é a vontade de realizar aquele, o erro de tipo vicia essa vontade, afastando, portanto, a ciência plena das circunstâncias que envolvem o fato, maculando, identicamente, a vontade do sujeito. Assim, nesta hipótese de erro, o dolo estaria excluído, quando fosse invencível, permitindo a lei a punição a título de negligência, nos casos de erro vencível, se houver a modalidade prevista; c) o erro de proibição incide sobre a ciência da ilicitude, que é potencial e faz parte da culpabilidade. Portanto, se o sujeito atua sem a plena consciência de que sua conduta ofende o ordenamento jurídico, estaria afastada a reprovação, não havendo punição, se o erro for invencível; ou, sendo o erro vencível, a reprimenda seria reduzida de uma quantidade legalmente estabelecida.

De sorte que, partindo das idéias basilares antes externadas, ou o erro incide sobre o dolo ou sobre a ciência da ilicitude, produzindo o afastamento do crime pela ausência do elemento subjetivo ou por não ser reprovável ao sujeito a conduta (ambos em caso de erro invencível, tomado como regra, aqui).

Há, no entanto, outra espécie de erro, prevista no art. 20, §1º, do CP, chamado por este de descriminante putativa. De acordo com aquele dispositivo,

É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

Importante verificar o que ficou expresso na exposição de motivos da Nova Parte Geral (Lei 7.209/84), sem destaques no original

Definiu-se a evitabilidade do erro em função da consciência potencial da ilicitude (parágrafo único do art. 21), mantendo-se no tocante às descriminantes putativas a tradição brasileira, que admite a forma culposa, em sintonia com a denominada "teoria limitada da culpabilidade". (...)

Pertinente a observação de BITENCOURT (2004, 420):

Como se percebe, o nosso Código Penal ao regular o erro de tipo permissivo (art. 20, §1°) não estabelece que a sua conseqüência é a exclusão do dolo, como o faz em relação ao erro de tipo incriminador, prevendo, simplesmente, a isenção de pena. E, como é sabido de todos, no Direito brasileiro, excluir o dolo e isentar de pena não significam a mesma coisa. A expressão "isentar de pena" é concebida, tradicionalmente pela doutrina brasileira, como referente à culpabilidade e não à tipicidade ou ilicitude.

Ou seja, embora, pelos termos utilizados pelo legislador, a questão se trate de exclusão da culpabilidade, por falta do potencial conhecimento da ilicitude, fato que inspirou a mudança da lei, esta, "estranhamente", permite a punição a título de negligência, se o erro é vencível.

Sobre a grande dificuldade em se entender esta espécie de erro, BITENCOURT (2004, 420), externou sua posição:

Tratar-se de erro de tipo ou erro de proibição não é o aspecto mais relevante da questão. Relevante, na verdade, são as conseqüências que tal erro produz. Afetará o dolo e, conseqüentemente, a tipicidade, como o erro de tipo, ou afetará a culpabilidade, como o erro de proibição? A resposta a essa interrogação será encontrada na comparação das conseqüências do erro que incide sobre os elementos constitutivos do tipo, isto é, erro de tipo incriminador, com as conseqüências do erro que incide sobre os pressupostos fáticos das discriminantes, isto é, erro de tipo permissivo.

Isto é, num caso típico de erro sobre o potencial conhecimento da ilicitude que, de regra, afasta a punição ou lhe diminui o patamar, a lei permitiu fosse o sujeito apenado a título de crime negligente, se o erro não fosse desculpável nas circunstâncias. Como dito, isso é conseqüência direta da adoção da teoria limitada da culpabilidade.

Diz RODRIGUES (2004), com propriedade

a Teoria Limitada [03] ao definir o erro de tipo permissivo somente utiliza-se do conceito de que as causas de justificação são normas não incriminadoras permissivas, logo tipos permissivos, e, fazendo uma analogia às conseqüências do erro de tipo incriminador, afirma que também o erro quanto a um elemento constitutivo de um tipo permissivo deve ter como conseqüência o afastamento do dolo e da culpa se invencível, ou excluir o dolo e manter a punição pela modalidade culposa do crime (se houver), quando o erro for vencível.

O ponto nodal está em que, mesmo com todo o esforço de tal teoria, o sujeito, efetivamente, atua com dolo. Isto é, atua com vontade livre e consciente de realizar o tipo objetivo. Como, então, se pode, a bem da racionalidade do Direito Penal, permitir que haja punição a título de negligência, já que sua ação não foi ordenada por ausência do cuidado objetivo? Em termos simplistas: há a intenção de realizar o tipo objetivo, as forças do sujeito se dirigem para isso; há a obtenção do resultado pretendido, mas a resposta penal é a punição por crime negligente.

Talvez a situação fique mais clara com um exemplo. Imagine-se a hipótese de o sujeito [04] que, no meio da noite, com seu automóvel parado no sinal e percebe a aproximação de um estranho, em situação aparentemente suspeita. Impingindo pelas circunstâncias do momento, o sujeito, que está armado, dispara três vezes contra o transeunte que, em verdade, tratava-se de pedinte, que lhe pleitearia um óbolo qualquer. Imagine-se também que, com um pouco mais de cautela, qualquer pessoa, naquela situação, seria capaz de verificar o equívoco da compreensão apressada, e atuar conforme o direito.

O sujeito quis o resultado morte, previu sua possibilidade, dirigiu sua ação finalisticamente a este resultado e agiu sabendo o que fazia. Ou seja, com relação à realização do tipo, seu atuar é doloso.

Neste exemplo, por mais que seja pueril e que lhe falte a originalidade, é possível verificar que o erro do sujeito não se baseou nem na existência nem nos limites de uma causa de justificação. Nas circunstâncias antes mencionadas, o agente imaginou uma injusta agressão iminente (elemento normativo do tipo permissivo da legítima defesa) que, de fato, não ocorreu. Ou seja, o erro incide sobre pressuposto de fato de causa de justificação. Amolda-se ao que está insculpido no artigo 20, §1º, tantas vezes mencionado no decorrer destas linhas.

Qual seria, no entanto, a resposta dada pela lei? Punição a título de homicídio culposo, já que este é previsto no art. 121, §3º, do Código Penal brasileiro.

O tratamento, portanto, dado pelo Código Penal, no que concerne ao art. 20, §1º, no que tange ao erro nas discriminantes putativas, mais topicamente quando este incidir sobre elementos objetivos (normativos e descritivos) de uma causa de justificação, aproxima essa espécie de erro ao erro de tipo. Até por isso, costuma-se nomeá-lo erro de tipo permissivo.

Fala-se em tipo permissivo usando-se de um raciocínio por aproximação do tipo incriminador. Se os crimes são definidos por elementos objetivos, normativos e subjetivos e a realização do ilícito pressupõe a subsunção do ato a esses elementos, as causas de justificação se constituem em tipos, compostos dos mesmos elementos, só que permissivos, isto é, justificantes.

Isto porque, quando o equívoco do sujeito recair sobre um desses elementos constitutivos do tipo permissivo, a lei, tratando-se de erro invencível, exclui a possibilidade de punição, isentando de pena, excluindo a culpabilidade. No entanto, em havendo erro vencível, ou seja, inescusável, permite o Código, embora exclua a punição a título de dolo, a reprimenda baseada na negligência, se e quando houver a previsão legal daquele crime na forma negligente (tipicidade negligente).

É do próprio JESCHEK o raciocínio acerca da constituição do erro previsto no art. 20, §1°, do Código Penal, como uma terceira espécie de erro, com semelhanças e diferenças quando cotejado com o erro de tipo ou o erro de proibição:

(...) sua similitude com o erro de tipo reside na sua estrutura, na medida em que também se refere a elementos normativos e descritivos de uma proposição jurídica. Ao passo que a sua semelhança com o erro de proibição indireto situa-se na sua conseqüência: o conhecimento do tipo não sofre nenhum prejuízo. O erro se constitui somente na crença do autor de que a norma proibitiva é afastada, excepcionalmente, diante de uma proposição permissiva. Em síntese, trata-se de um "erro sui generis", que estruturalmente se parece mais com o erro de tipo do que com o erro de proibição, mas que também se assemelha a um erro de proibição, porque a causa de justificação exclui a antijuridicidade – sua conseqüência – e não a tipicidade do fato. (BITENCOURT, 2004, 421)

Quando se traz para a legislação brasileira, por força do art. 20, §1º e do art. 59, ambos do Código Penal, os fundamentos da teoria complexa da culpabilidade conforme antes esclarecida, vê-se que sua utilização pode tornar a interpretação do erro sobre elementos de fato de descriminante putativa mais racional.

Isto porque, aceitando que a culpabilidade se compõe, além dos elementos já assentados pelo finalismo, também da atitude interna do sujeito, conformando seu estado de ânimo frente ao bem jurídico ofendido por sua ação, constantes daquilo que se chamou espécies de culpabilidade, dolosa ou negligente, é absolutamente plausível o afastamento da culpabilidade dolosa, mantendo-se a negligente quando incidir a espécie do erro previsto no citado dispositivo legal.

Como dito, a existência do dolo no tipo é somente indício de uma culpabilidade dolosa, conforme o nível de reprovação do sujeito, constante da culpabilidade, que vai do menosprezo ao descuido, como já mencionado alhures.

Assim, a relação do sujeito com o seu fato, consubstanciada no dolo ou na negligência, no tipo, pode não corresponder a uma atitude interna do sujeito para com o bem jurídico violado, permitindo-se o que há no erro sobre circunstâncias de fato de uma discriminante putativa, conforme a lei: o sujeito atua com dolo de realizar o tipo objetivo, mas, por erro, sua postura em relação o com o bem jurídico atingido não é o de maior reprovação, ou seja, não é o de uma culpabilidade dolosa, mais reprovável, mas de uma culpabilidade negligente, menos reprovável.

Conclusiva a manifestação de RODRIGUES (2004, 159) [05]

Desta forma, de acordo com a Teoria Complexa, nas hipóteses de erro de tipo permissivo, pelo fato de o autor não possuir animosidade contrária ao Direito, ou seja, "culpabilidade dolosa", mas tão-somente uma falta de cuidado na sua valoração dos fatos, caracteriza-se uma "culpabilidade culposa", o que possibilita então somente uma punição pela modalidade negligente do crime praticado.

No exemplo dado, o sujeito agiu com o dolo do tipo, ou seja, com vontade livre e consciente de realizar os elementos do tipo de homicídio e, de fato, matou alguém. No entanto, por supor situação de fato que não existia, agiu em erro sobre um elemento do tipo permissivo, o que faz com que sua atitude interna frente ao bem jurídico não seja de descaso, de menosprezo, o que fundamentaria uma reprimenda a título de dolo; mas é uma ação descuidada, revelando uma culpabilidade negligente.

Com esse raciocínio, que partiu da idéia da estrutura proposta pela teoria complexa da culpabilidade, que insere na mesma as formas de culpabilidade dolosa e negligente, não se opera mais a quebra de racionalidade que se vislumbra na adoção pura e simples da culpabilidade normativa e da teoria limitada da culpabilidade.

E, por fim, se realiza o intento deste estudo: apresentar a teoria complexa da culpabilidade, com sua dupla valoração do dolo, a partir do conceito estratificado de delito, como uma nova via para o entendimento do erro de tipo permissivo.

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Sobre o autor
André de Abreu Costa

Graduado pela Universidade Federal de Ouro Preto/MG. Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas.Professor de Direito no Instituto Metodista Izabela Hendrix. Professor de Direito da Faculdade de Pedro Leopoldo. Professor da pós graduação em Direito Público da UNIFEMM. Advogado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, André Abreu. Sobre a dupla valoração do dolo no conceito estratificado de crime, a partir da nova concepção complexa de culpabilidade, e seu reflexo na compreensão do erro sobre pressuposto de fato de causa de justificação.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2830, 1 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18809. Acesso em: 23 abr. 2024.

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