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"Nada sobre nós, sem nós": a participação como fundamento nas políticas públicas para pessoas com deficiência

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09/04/2011 às 12:33
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4. MULTICULTURALIDADE NO ESTADO, GLOBALIZAÇÃO E OS DESAFIOS À PARTICIPAÇAO DAS PESSOAS COM DEFICÊNCIA.

Um dos principais componentes da vida em sociedade, senão o ponto de partida é a questão que envolve a cultura, ou a diversidade cultural. No seio do Estado, embora se tenha verificado que o processo histórico em muitos países reconheceu a sociedade diversa e a existência de culturas diferentes, isso traz um novo contexto, que não apenas reconheça a diversidade cultural, mas trate esta diversidade como propulsão no processo para recompor ou fundar o Estado que corresponda à multiculturalidade vista na sociedade.

Como dito, a desconstrução de um Estado neoliberal passa pela ruptura também nas identidades das pessoas que compõem a sociedade. Podemos dizer que há um grau de uniformização que repercute no cotidiano de toda a sociedade e constrói subjetividades. O neoliberalismo tem na globalização a principal ferramenta de construção de subjetividades e, desse modo, há um processo de "pausterização cultural", ou seja, a idéia é que mesmo havendo o reconhecimento de culturas diferentes estas culturas sejam absorvidas a um imperativo inescusável e artificial que dilua a diversidade em um único modelo (supra cultural) uniformizador da sociedade, no caso, com premissas do liberalismo econômico.

Este argumento também condiciona os sujeitos e altera seus processos culturais fazendo crer que o outro é o correto, o avançado e o melhor; argumento este que busca impedir o direito à diferença e ainda impede que se veja que é justamente com o reconhecimento das diferenças que se alcança a unidade.

Há uma falsa premissa de que a unidade se faz com a uniformização, mas unidade é diferente de uniformização. A globalização é mostra de que a padronização (técnica) provocou uma uniformização sem a verdadeira unidade, posto que a cultura não mais se encontra em um lugar, mas em determinado momento (temporal). Enfim, a globalização econômica e material não leva à união pacífica da humanidade como se nos quis fazer acreditar, mas, antes, a uma uniformização perigosa.

A politização das diferenças culturais, e a busca de hegemonia por alguma determinada identidade, por um lado, tem gerado tendências fundamentalistas e radicais, gerando inclusive conflitos armados. Por outro lado, em perspectiva, faz constatar que tal hegemonia e liberalismo econômico mundial já não se sustentam desconsiderando a cultura, religião, enfim a história de cada país.

A tomada de consciência das diferenças culturais pode desencadear também na reivindicação de um diálogo intercultural como base de qualquer nova ordem política. Esta é uma conclusão essencial diante da constatação atual de que as identidades modernas tornam-se mais dissociadas e díspares, o que evidencia que esta modernidade ocidental imposta e a manipulação política do conceito de identidade desconsideram a cultura como diversidade e modos de vida e como conceito intrínseco a Estado.

Sempre houve um propósito de impedir a diversidade e impor a homogeneização, tanto no discurso nacionalista, que dizia não haver nações distintas, ou indígenas, mas somente bolivianos e mesmo no discurso neoliberal, de que a cultura é só folclore e ornamentação para o turismo. Como os modelos de desenvolvimento não são neutros, ao mesmo tempo podem impor determinada perspectiva, inclusive homogeneizante, padronizando e uniformizando as instituições (inclusive estatais) e as identidades culturais, destruindo outras identidades e ameaçando a diversidade cultural.

Contudo, a diversidade cultural representa uma força decisiva para o desenvolvimento, pois somente uma análise especializada do ambiente cultural pode assegurar o êxito de um projeto de desenvolvimento econômico. É dizer, que a história do pensamento reflete o sistema de valores de uma cultura que influi sobre o conjunto da sociedade, o que torna indispensável repensar a relação no universo múltiplo das culturas.

Nesse contexto, é imprescindível conectar e atualizar o tema da diversidade cultural com os desafios postos a toda sociedade, especialmente, para introduzir de vez a multiculturalidade com componente fundamental para uma universalização heterogênea, ou seja, que introduza em todas as esferas sociais, inclusive o Estado, em todas as instituições orgânicas e simbólicas.

O direito dos indivíduos a uma identidade cultural diferenciada representa um conteúdo fundamental para construção de novas bases universais para consolidação de direitos, a partir do reconhecimento da igualdade que tem como fundamento as diferenças e a diversidade.

É preciso ter em mente os problemas trazidos pela globalização ao fixar alto grau de concentração dos meios de produção e de difusão, o que ameaça esse direito à diferença cultural, traz consigo outro elemento que exige mudanças ou desconstruções da monoculturalidade.

Portanto, nos desafios para superações propostas pelo multiculturalismo, necessariamente há a dimensão cultural nas transformações a serem operadas. Um ponto de partida essencial diz respeito à ruptura com o chamado universalismo que impede a evidência multicultural e as relações interculturais, as quais conservam a diversidade cultural e, desse modo, avançam na universalidade dos direitos na medida em que as lutas pela igualdade passam pelo reconhecimento da diferença. Universalismo combina com diversidade, heterogeneidade e não combina com uniformização.

Desse modo, a participação como componente histórico-social que representasse não só o fato de ser parte de um todo e, ao mesmo tempo, tomar parte nos processos de construção e reconstrução permanente do todo não foi algo natural no Brasil.

Mais precisamente a partir de 1980, quando houve certa mobilização para o Ano Internacional das Pessoas com Deficiência, que teve como lema "Igualdade e Plena Participação", é que se iniciou um processo de visibilidade da temática na esfera governamental, como também a própria compreensão das pessoas com deficiência de seu lugar como sujeito de direitos. A Constituição de 1988, como dito, sobretudo pelo processo de preparação da constituinte, mobilizou o tema nos municípios e Estados, o que resultou na formalização de alguns direitos constitucionais. A partir de então, a concretização disso em ações, projetos e programas que conformem políticas públicas exigiu, e exige a constante mobilização.

Outro fomento importante que repercute na ação do Estado em se tratando de pessoas com deficiência se dá com os avanços na ordem internacional.

A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1982, instituiu o "Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência (PAMPD)", acompanhando a mobilização em torno das celebrações do ano internacional dedicado às pessoas com deficiência, o que pautou os países-membros na convergência para políticas públicas adequadas ao segmento.

Esse percurso institucional e político resultou no que Dworkin (2001) entende que deva ser o desenho institucional de um Estado democrático de direito em que os segmentos sociais recebam igual tratamento e sejam tratados como iguais. Ou seja, que determinado grupo populacional com demandas específicas tenham asseguradas as condições para o devido encaminhamento, de modo que a igualdade seja um princípio universal e o igual tratamento seja o reconhecimento das diferenças como componente multicultural.

Na prática, avaliando o Brasil, em especial sua organização administrativa, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados [01] contribuiu para o desenvolvimento da temática, notadamente com a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e que responde pelas políticas públicas para tal segmento. Dentre outras pautas, estão o Programa Nacional de Acessibilidade e o Programa de Promoção e Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que compõem os referenciais do Executivo para consecução das políticas públicas para este segmento social.

Com isso, se vê avanços na conformação do desenho institucional e político do Estado que, desse modo, passa a transmitir segurança social na realização das políticas para as pessoas com deficiência, em grande medida, pelo desenho institucional de seus órgãos orgânico-administrativos.


5. CONSIDERAÇOES FINAIS: DA INCLUSÃO A PARTICIPAÇÃO.

Ainda na perspectiva reducionista de homegeneização da sociedade como forma de negação da diversidade cultural, e também a pretexto de um mito democrático da participação das pessoas com deficiência nos rumos do Estado, a ideologia da integração fez crer que a igualdade formal preservava todas as diferenças e que este era o limite na atuação do Estado. Mantido este cenário, certamente, não haveria testemunhas do estágio atual de organização social acerca das políticas públicas para pessoas com deficiência.

Evidentemente, é crucial que haja garantias institucionais em todos os poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) a fim de dar segurança jurídica, política e institucional para que se tenha um processo de inclusão e não somente de integração.

A integração pressupõe apenas a admissão por parte das pessoas sem deficiência que existem as pessoas com deficiência e a estes é permitido que busquem por is mesmo a integração, a adaptação à esta normalidade social. Assim, se vê como resultante a igualdade formal.

Ao revés, a inclusão avança na compreensão da igualdade, tanto formal e material, mas destacadamente, no reconhecimento, na expressão, na explicitação das diferenças enquanto conteúdo multicultural. É dizer que incluir é integrar com garantia, isto é, incluir é não excluir e isso implica em uma ação positiva de criar as condições para uma integração qualificada.

A compreensão da participação antecipa a luta por questões e políticas mais específicas como emprego, educação, assistência, previdência, acessibilidade, mas é um componente inerente aos processos de produção legislativa, de políticas executivas, e como parâmetros principiológicos que repercutem no Judiciário de modo a conformar toda uma compreensão intelectual. Por isso, a exploração da participação como um princípio, ou seja, um parâmetro interpretativo e aplicativo nas instituições estatais contribuem para conformação de uma nova gramática democrática e para o processo epistemológico que redefine os paradigmas adequando-os a realidade.

No caso das pessoas com deficiência, saindo da invisibilidade, passando pela negação e pela descaracterização, ainda pelo mito da integração sem inclusão, alcançar espaço político nas instâncias de um Poder que sempre oprimiu o diferente é, antes de tudo, inaugurar práticas, sempre negadas ou reprimidas.

Assim, medidas declaratórias de direitos, assecuratórias de garantias e definidoras de reconhecimento, tanto na ordem interna como na ordem internacional, somente reforçam o argumento da multiculturalidade que contempla a compreensão do diferente como elemento da igualdade no Estado. Ao contrário do que significa idêntico (de origem no idem), que remete ao mesmo, igual não é o antônimo de diferente. Logo, a diferença é conteúdo da igualdade, pois pressupõe um processo que decorre da construção comparativa de igualdade pela diversidade dos envolvidos, ou seja, só se pode pleitear igualdade quem não é idêntico, quem traz o diverso para as arenas políticas de ação democrática.

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A participação, portanto, além do instrumento viabilizador dos processos democráticos que se reproduzem nas instituições administrativas, políticas e judiciárias, também é mecanismo ou dispositivo que compõe cada etapa do processo de socialização e inclusão das pessoas. Assim, não se cria espaços para garantir a participação; a participação é que resultou na criação de espaços e assim a participação é um componente e não um produto.

Para as pessoas com deficiência, os processos participativos representam não somente desdobramentos de lutas e conquistas sociais empreendidas, sobretudo, pelos movimentos sociais, mas significa a própria construção identitária de suas representações, seus modos de vida, sua composição enquanto agentes sociais. A participação das pessoas com deficiência compõe a própria expressão da diversidade cultural vista na sociedade, mas agrega um fator distinto que, no caso, a participação deste segmento remonta a expressão do corpo, e não sua opressão, como também evidencia as barreiras de ordem política antes criadas e, agora evidenciadas e combatidas com a conquista da participação plena.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

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Notas

01 A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada pelo Brasil em março de 2007, em Nova Iorque, na sede da ONU e ganhou status de Emenda Constitucional pela aprovação no Congresso Nacional do Decreto Legislativo N.º 186 de julho de 2008 e pelo Decreto do Poder Executivo N.º 6.949 de agosto de 2009, como exige o procedimento constitucional do § 3º do art. 5º CF/1988.

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Sobre o autor
Braulio de Magalhães Santos

Advogado, especialista em Direitos Humanos, Mestre em Gestão de cidades- Ciências Sociais, doutorando em Direito Público Internacional,Professor no Centro Universitário de Sete Lagoas - UNIFEMM, Conselheiro do Movimento Nacional de Direitos Humanos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Braulio Magalhães. "Nada sobre nós, sem nós": a participação como fundamento nas políticas públicas para pessoas com deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2838, 9 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18867. Acesso em: 29 mar. 2024.

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