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A inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória

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13/04/2011 às 17:46
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CAPÍTULO II – Normas jurídicas vedatórias: produção, validade, sentido e alcance.

2.1. Uma breve análise da ratio legis dos diplomas que vedam a liberdade provisória

As leis especiais que vedam a concessão de liberdade provisória são, a saber: lei do crime organizado (9.034/95) nos termos do seu art. 7º; lei da lavagem de capitais (9.613/98), conforme o seu art. 3º. Destacamos ainda a nova lei de drogas (11.343/06), que em seu art. 44 veda o benefício, mas que, contudo, perdeu efeito com a edição da lei 11.464/07, que modificou a lei dos crimes hediondos, apesar do dissenso da jurisprudência sobre tal revogação, matéria que versaremos mais a frente. Por fim, cite-se o estatuto do desarmamento (10.826/03), cujas disposições vedatórias à liberdade provisória foram declaradas inconstitucionais pela suprema corte em sede de controle concentrado, cuja análise será procedida no capítulo III deste trabalho.

Percebe-se que todos os referidos diplomas legais visam o combate de atividades extremamente perniciosas, tutelando bens jurídicos de valor transindividual. O crime organizado e a lavagem de capitais põem em risco a segurança pública e ensejam a movimentação financeira do produto do crime organizado e de outras atividades ilícitas, que muito provavelmente serão vertidas para o fomento de novas atividades antijurídicas, numa rota cíclica.

Independentemente da vigência de suas disposições vedatórias, analisemos também os crimes de tráfico de entorpecentes além das figuras típicas dos artigos 14, 15 e 21 do estatuto do desarmamento, visto que inicialmente impuseram tal limitação ao direito à liberdade. O tráfico de entorpecentes, por expressa disposição constitucional, constitui crime equiparado a hediondo, exigindo enérgica reprimenda estatal pelos notáveis males que dissemina, recrudescendo a violência e a despesa com saude pública para o atendimento dos dependentes químicos e especialmente por propiciar o desenvolvimento do crime organizado, que se estabelece como uma espécie de poder paralelo.

Por sua vez, o Estatuto do desarmamento veio a lume com o fim de tutelar o bem jurídico incolumidade pública, cuja definição nos é oferecida com muita propriedade por CAPEZ (2005; p. 159): "delitos que atentam contra a vida, o patrimônio, a segurança, a saude da sociedade como um todo, ou seja, de um número indeterminado de pessoas." No entanto, o Supremo Tribunal Federal, por conduto do voto do Ministro relator Ricardo Lewandowski, considerou a prisão ex lege atentatória a diversos princípios constitucionais bem como desproporcional no tocante a lei 10.826/03, visto que vedação recaia sobre crimes de mera conduta (porte e posse ilegal de arma), ofendendo também em seu art. 21 a presunção de inocência e o devido processo legal.

A necessidade de o Estado resguardar os bens jurídicos mais importantes, censurando os atos atentatórios contra eles com uma previsão punitiva mais severa não pode redundar na aplicação compulsória de instrumentos cautelares, tal como se fosse um consectário lógico, sob pena de ofensa ao sistema de garantias consagrado na Constituição. O sustentáculo jurídico em que se escudam os defensores da proibição legal à concessão de liberdade provisória está incrustado no próprio texto constitucional, precisamente em seu art. 5º, inciso XLIII, que preconiza:

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

A fim de melhor ilustrar o raciocínio expendido por tal corrente, observemos os lúcidos apontamentos feitos por um jurista do escol de Nucci (2009; p. 635):

O constituinte originário, ao inserir no título dos direitos e garantias fundamentais, uma expressa recomendação para que a lei considere determinados tipos de delitos mais graves, tratando-os com mais rigor, teve a preocupação de salvaguardar com evidente zelo certos bens jurídicos, como a vida, a saude pública, a dignidade humana e sexual, entre outros. Assim raciocinando, deve-se buscar dar às vedações estipuladas acerca da ‘inafiançabilidade’ e de ‘insuscetibilidade de perdão do Estado’, uma interpretação extensiva, chegando à conclusão de que o acusado por crime hediondo não pode ter sua pena perdoada ou comutada de qualquer modo. A partir desse entendimento, é natural supor que as leis, cuidando de tortura, do terrorismo, de tráfico ilícito de entorpecentes e dos delitos hediondos devem ser rígidas, podendo trazer outras vedações compatíveis com o espírito constitucional nessa visão apresentado.

Como é sabido por todos, a afiançabilidade é espécie do gênero liberdade provisória, que por seu turno, também comporta a liberdade sem a prestação de garantia pecuniária, por opção do mesmo constituinte originário que recepcionou expressamente o instituto escalonado nessas espécies. Vale ressaltar ainda que a opção do constituinte originário foi absolutamente consciente, pois o desprestígio da fiança data de mais de uma década antes do advento da atual Constituição, visto que o parágrafo único do art. 310 do CPP foi editado pela lei 6.416/77. Portanto, a própria Constituição de 1988 agasalhou a modalidade de liberdade provisória sem fiança e atribuiu-lhe o condão de escape para garantia do direito fundamental à liberdade.

O argumento de imprecisão legislativa quanto à expressão inafiançabilidade, como sinônimo de liberdade provisória enquanto gênero, não se revela suficiente em virtude da possibilidade da liberdade provisória ser concedida com a imposição de uma série de medidas instrumentais diversas de dinheiro, e por certo mais eficazes. A nosso sentir, o constituinte originário apenas delimitou a atuação do legislador ordinário para não cominar uma sanção aquém do que merecem tais delitos, visto que no assimétrico sistema de liberdade provisória então existente e chancelado pela Constituição de 1988, crimes mais brandos preveem o pagamento de fiança, enquanto os crimes mais complexos não. Nesse diapasão, calha expor o escólio de Oliveira (2009; p. 475):

O fato de a liberdade com fiança não ser permitida para determinados crimes, daí serem inafiançáveis, não poderá significar nunca a impossibilidade da aplicação da liberdade provisória sem fiança, tal como admitida no próprio texto constitucional (art. 5º, LXVI), porque isso implicaria a interpretação da norma constitucional a partir da legislação ordinária, o que é absolutamente inadmissível e mesmo impensável.

Ademais, a vedação de graça, anistia e indulto não colide nem resvala em direitos fundamentais porque se referem a benesses declinatórias do jus puniendi concedidas pelo Estado. De fato seria ilógico arrochar a pretensão punitiva e oportunizar uma brecha para a clemência estatal, ao alvedrio do Presidente da República ou do Congresso Nacional a depender da espécie do benefício. Contudo, a par do sistema de garantias e valores propugnados pela Constituição Federal, como uma medida de natureza instrumental, afeita ao processo, pode ser decidida pelo legislador? Mais, se os delitos de formação de organização criminosa e lavagem de capitais não estão inscritos no rol dos crimes hediondos nem foram nominados pela Constituição no art. 5º, inciso XLIII, com que legitimidade se prestam a vedar compulsoriamente a concessão de liberdade provisória?

Como assinalado por Eugênio Pacelli de Oliveira na citação anterior, a liberdade provisória sem fiança foi recepcionada pela atual Constituição com a mesma envergadura que a liberdade mediante o arbitramento de fiança. A dicção do inciso XLIII art. 5º é curial para a correta compreensão do tema, todavia, não pode ser interpretada dissociadamente dos incisos LXI e LXVI, que lhe são complementares no tema da liberdade e suas hipóteses restritivas. Portanto, a inafiançabilidade para crimes hediondos e assemelhados não inviabiliza a sua concessão sem o pagamento de fiança, como reza atualmente a lei dos crimes hediondos.

A hipótese de a Constituição outorgar ao legislador ordinário a incumbência de restringir direitos individuais, quando a própria estabelece que tais medidas carecem de motivação idônea ante o caso em exame, a ser aferida por autoridade judiciária competente, se opõe drasticamente aos fins colimados além de gerar gargalos insuperáveis, capazes de semear insegurança jurídica na resolução prática das lides penais.Para tanto, utilizemos dois exemplos ilustrativos:

1) O Ministério Público propõe denúncia contra determinada pessoa pela suposta prática de um crime em que a liberdade provisória é vedada, e preenchidos os requisitos do art. 44 do CPP, o juiz recebe a denúncia, mas não vislumbra elementos que indiquem a necessidade de prisão cautelar. Terá então o juiz o seu livre convencimento motivado suprimido, atuando apenas como boca da lei? Sigamos adiante. Após o pedido de liberdade provisória da defesa, com base na jurisprudência atual das Cortes Superiores, a mera citação do dispositivo legal proibitivo constitui fundamento idôneo a justificar a manutenção da custódia cautelar?

Entendemos negativamente em ambos os casos. Estar-se-ia violando uma prerrogativa constitucionalmente conferida à magistratura, maculando a independência funcional do juiz, enfraquecendo, por conseguinte, as bases do Estado Democrático em que vivemos. Sem mencionar a ofensa ao direito do jurisdicionado de ter deduzidas as razões concretas que restringem sua liberdade, o que viola o princípio do devido processo legal na sua acepção material, que assegura alguma relevância e repercussão prática nas manifestações da parte integrante do pólo passivo da relação jurídica.

2) Em um processo hipotético que apura a prática de crime que veda a concessão de liberdade provisória, constata-se a ocorrência de excesso de prazo para conclusão da instrução processual, para o qual a defesa em nada contribuiu. Continuará o acusado preso aguardando o desenrolar da marcha processual? Terá um Habeas Corpus (HC) liberatório o condão de desfazer tal nó, se mesmo o juiz está legalmente proibido de conhecer tal pleito? (e como a redação é genérica não se pode inferir exceções).

A vedação imposta na abstração normativa, incapaz de alcançar todas as situações de fato, não pode cercear indistintamente um direito individual. Mesmo porque se um direito fundamental de aplicação imediata pudesse ser relativizado pelo poder de arrasto de lei ordinária – o que é impossível, uma ação de natureza constitucional certamente teria aptidão para restituir-lhe a completude.

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Em todo caso, vê-se a necessidade de fugir ao paradigma estanque imposto por tais normas proibitivas para pensar as necessidades processuais de acordo com o caso concreto, como quer a Constituição Federal de 1988.

Assim, conclui-se que a ratio legis das mencionadas leis encontra óbice insuperável na tríade constituída no atual momento histórico-jurídico pela inafastabilidade da jurisdição, pela hermenêutica valorativa (pós positivismo) e pelo ativismo judicial.

2.2. A norma jurídica: uma análise de seus atributos essenciais e aplicação na vedação a direitos fundamentais

Para uma adequada interpretação da norma jurídica, mormente de normas veiculadoras de restrições a direitos sedimentados, é necessário um exame acerca de seus atributos básicos. A norma jurídica é essencialmente dotada de generalidade e abstração em suas disposições, indispensáveis à sua incidência sobre os atos e fatos jurídicos tutelados pelo ordenamento. Deste modo, resta evidente que o legislador não detém uma bola de cristal capaz de jurisdicizar todos os fatos produzidos em sociedade, o que, no entanto, não lhe escusa de prever tanto quanto possível todas as hipóteses factuais compatíveis de serem abrangidas pela incidência da norma a ser produzida a partir da matéria versada.A generalidade e a abstração são as características potencializadoras do direito codificado, pois a primeira torna destinatário da norma todos os cidadãos submetidos a um ordenamento jurídico, enquanto que a segunda, é o atributo que a norma detém para impor uma ação ou abstenção. De modo que a incidência da norma jurídica apresenta-se sempre como geral, abstrata, bilateral e coativa.O cotejo de tais elementos propiciam os meios para interpretação da norma, possibilitando assim a extração de seu sentido e alcance. Ademais, incumbe observar que a validade da norma não se exterioriza apenas com a satisfação dos requisitos de legalidade, apesar de tais requisitos por si só encerrarem a viabilidade do ordenamento jurídico. Importa ainda na sua adequação axiológica ao sistema orgânico que é o ordenamento, e o seu escopo de promover a justiça. Nesse sentido, merecem destaque as palavras de Bobbio (2007; p. 163):

Julgamos que o fato de considerar a generalidade e a abstração como requisitos essenciais da norma jurídica tem uma origem ideológica, e não lógica, ou seja, acreditamos que por trás dessa teoria existe um juízo de valor do seguinte tipo: ‘convém (é desejável) que todas as normas jurídicas sejam gerais e abstratas.’ Em outras palavras, pensamos que generalidade e abstração são requisitos não da norma jurídica como é, mas como deveria ser para corresponder ao ideal de justiça, para o qual todos os homens são iguais, todas as ações são certas; isto é, que são requisitos não tanto da norma jurídica (ou seja, da norma válida num determinado sistema), mas da norma justa.

A norma jurídica deve assim expressar valores compatíveis com a promoção da justiça, fim em si mesmo da ciência jurídica. A vontade da lei, para efeitos de interpretação sistemática e integração do ordenamento, deve orientar-se pela essência valorativa revelada pelo texto constitucional (de feição rígida ou semi-rígida), afinal o destino de cada norma abstrata é a aplicação a uma situação individualizada, como observa Camargo (2003; p. 133):

A defesa pela vontade objetiva da lei, por sua vez, abre caminho para o método de interpretação teleológico-axiológico, uma vez que a visão objetiva da lei conduz o intérprete para a busca do fim nela contido, mediante a investigação das condições sociais de seu tempo e valores preponderantes. Afinal, trata-se de encontrar a solução mais adequada e razoável para cada caso.

Com efeito, uma prescrição normativa inserida em uma fórmula geral e abstrata como é a roupagem de uma lei, mostra-se inapta à tarefa de extremar ou suavizar um outro direito, especialmente se tratando do direito fundamental à liberdade, pois a modulação de seus limites é tarefa que se impõe à autoridade judiciária competente, responsável pela construção da norma individual, materializada em uma decisão judicial. De modo que a norma jurídica serve para ser aplicada ao caso concreto e não para automática e indistintamente negar eficácia a outro preceito, ainda mais quando este último atua diretamente na realização da vontade suprema da Constituição.

Verifica-se assim, a impossibilidade de o legislador, por melhor intencionado que esteja, conferir um juízo definitivo acerca de uma medida que só pode ser determinada a partir da análise dos elementos cognitivos específicos do caso concreto.

Mesmo que a vedação legal à concessão de liberdade provisória fosse consagrada pelo art. 5º da Constituição, haveria ainda óbice a ser dirimido, sob pena de flagrante contradição sistemática: a necessidade de fundamentação das medidas acautelatórias. Inicialmente, não restam dúvidas de que a constrição de liberdade deve ser submetida ao crivo da autoridade judiciária para o controle da legalidade e oportunidade do ato. O art. 93 da Constituição, notadamente em seu inciso IX, estatui o dever-poder ao Estado-juiz de arrazoar todas as suas decisões, dentre elas o decreto da custódia cautelar. Vejamos:

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Todavia, os diplomas legais que preconizam a vedação automática à concessão de liberdade provisória excluem do juiz qualquer campo para atuação e interpretação, devendo o mesmo apenas dar fiel cumprimento à disposição legal. Mas, por outro lado, como exige a própria Constituição, o dever de justificar a medida é indeclinável sob pena de nulidade do ato. Ou seja, o fato de a lei ordinária de vedar o benefício da liberdade provisória, a pretexto de efetivar a Constituição, não isenta o juiz do dever de motivar a prisão.E daí surge novamente a problemática apresentada em razão de uma norma hermeticamente fechada: o juiz mesmo não vislumbrando razões acautelatórias que justifiquem a medida instrumental da prisão provisória deve mantê-la. Mas como justificá-la? O juiz não pode se afastar de sua posição equidistante e imparcial entre os sujeitos do contraditório a ele submetido para vasculhar elementos justificadores da segregação cautelar. Malgrado o seu poder inquisitório para determinar a produção das provas que entender convenientes, sua posição exige a colheita de elementos para melhor instruir o caso, e não para favorecer ou prejudicar uma das partes. Cumpre advertir que o ativismo judicial não pode se estender ao ponto de tomar parte no sistema acusatório. Nesta senda, não encontrando elementos aptos a embasar o decreto prisional, a conseqüência que se impõe ao juiz é declinar o dispositivo legal como razão. Assim, ao menos viabilizar-se-ia um rito para atender à prescrição normativa. Ocorre que mesmo que se trate de acusado processado por suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados, fundamento utilizado pelos defensores da constitucionalidade da medida vedatória (art. 5º, XLIII), a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem destacado que a gravidade abstrata do crime imputado não basta à justificação da prisão cautelar. De modo que todo e qualquer automatismo tem sido rechaçado por ofensa ao postulado de proporcionalidade além de vários princípios constitucionais já mencionados ao longo deste trabalho.

A fim de corroborar esse posicionamento, a título ilustrativo, destacamos os seguintes precedentes da Suprema Corte: HC 80.064/SP, Rel. p/ o acórdão Min. Sepúlveda Pertence; HC 92.299/SP, Rel. Min. Marco Aurélio; HC 92824/SC, Rel. Min. Joaquim Barbosa; HC 93.427/PB, Rel. Min. Eros Grau; HC n. 97.976/MG, Rel. Min. Celso de Mello; RHC 71.954/PA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RHC 79.200/BA, Rel. Min. Sepúlveda Pertence;

Destarte, está cabalmente demonstrada a impossibilidade da norma jurídica, a par dos seus atributos, subordinar a atuação concreta de sua aplicação, especialmente ao restringir outra norma de índole superior, porque a aferição de proporcionalidade de sua incidência no caso concreto é tarefa mesma do intérprete e do seu aplicador, pois a Constituição de 1988 não fraqueou tal poder extensivo ao legislador que lhe deu vida.

2.3 A revogação da vedação legal à liberdade provisória nos crimes hediondos

Se a mina explorada pelos cultores da possibilidade abstrata de proibição à liberdade provisória reside precisamente no art. 5º, XLIII da Carta Magna, há que se dizer que tal concepção sofreu um revés considerável, dessa vez no plano normativo. O retrocitado dispositivo constitucional refere-se a crimes hediondos e equiparados, os quais foram disciplinados na lei 8.072/90. Esta, por sua vez, com o advento da lei 11.464/07, afastou a vedação absoluta à liberdade provisória, mantendo apenas a restrição a concessão de fiança para os delitos nela compreendidos. Assim, o legislador mostrou querer reparar um instrumento normativo utilizado até então de forma lesiva aos direitos fundamentais, aclarando ainda qualquer suspicácia pendente, malgrado consagrada doutrina vaticinar há muito tempo que a interpretação conferida ao citado dispositivo constitucional não poderia autorizar tamanha restrição, como aduz Gomes (2009; s/n):

Lendo (e relendo) o art. 5°, inc. XLIII, da CF/88, não se encontra (nem implicitamente) a vedação da liberdade provisória nos crimes hediondos. Isso foi criação (inconstitucional) do legislador ordinário. Este, por força da Lei 8.072/1990, em sua redação original, proibiu, para os autores desses crimes (e equiparados), a concessão do referido benefício (liberdade que é concedida ao agente preso em flagrante, quando desnecessária a prisão cautelar).

De fato, as modificações recentes na lei dos crimes hediondos se prestaram a corrigir as incompatibilidades materiais de sua redação original para amoldar-se à simetria principiológica-valorativa da Constituição, dentre as quais, destaca-se a possibilidade de progressão de regime, a fixação de lapso temporal diferenciado para progressão de regime em relação aos crimes comuns e a possibilidade de concessão de liberdade provisória, como destacado.O art. 2º do citado diploma legal preceituava que os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo eram insuscetíveis de fiança e liberdade provisória. Agora, a lei só restringe a concessão de fiança. Prova-se assim que o legislador sempre diferiu fiança de liberdade provisória; mesmo não se valendo de uma conceituação estritamente técnica; a concessão de liberdade vinculada ao processo sempre foi possível, na medida em que o nosso sistema de liberdade provisória sempre foi de natureza dúplice, prescrevendo a inafiançabilidade de determinados crimes para atender à norma constitucional, que se limitou em conferir especial relevância dos delitos hediondos e equiparados sem abarcar questões pendentes de avaliação judicial..Hodiernamente, em sede jurisprudencial, discute-se extensão dos efeitos da lei 11.464/07 à lei 11.343/06, nova lei de repressão às drogas, apesar da ampla maioria já se posicionar em favor da admissibilidade. Os que se posicionam contrários a tal extensão aduzem a existência de conflito de normas.A fim de externamos tal corrente, reportamo-nos aos termos precisos da decisão monocrática proferida no HC 81.241/GO, da lavra do Ministro Felix Fischer do Superior Tribunal de Justiça, que entendeu que apesar da inovação promovida pela lei 11.464/07, agregada à lei dos crimes hediondos, a mesma não alcança a nova lei de tóxicos, porquanto seja esta última uma lei especial, enquanto que aquela se afigura como lei geral. Tal interpretação, contudo, não pode prosperar por razões basilares do direito. Vejamos:

Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 da nova lei de tóxicos ‘são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos’ (art. 44 da Lei nº 11.343/06). Embora tenha a lei 11.464/07 suprimido do texto legal do art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90 a vedação à concessão de liberdade provisória aos acusados por crimes hediondos e equiparados, remanesce a proibição tendo em vista a especialidade da nova lei de tóxicos. Além do mais, o art. 5º, inciso XLIII, da Carta Magna, proibindo a concessão de fiança, evidencia que a liberdade provisória pretendida não pode ser concedida. Nessa linha os seguintes precedentes do Pretório Excelso (AgReg no HC 85711-6/ES, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86814-2/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa; HC 86703-1/ES, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 89183-7/MS, 1ª Turma, Rel. Ministro Sepúlveda Pertence; HC 86118-1/DF, 1ª Turma, Rel. Ministro Cezar Peluso; HC 79386-0/AP, 2ª Turma, Rel. Ministro Maurício Corrêa; HC 83468-0/ES, 1ª Turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; HC 82695-4/RJ, 2ª Turma, Rel. Ministro Carlos Velloso). Denego, pois, a liminar. Solicitem-se informações ao e. Tribunal a quo. Após, vista ao MPF. P. e I.

O eminente relator vislumbrou um conflito de normas inexistente. A lei dos crimes hediondos dota de eficácia um preceito magno (art. 5º, inciso XLIII) carente de regulamentação para produção de efeitos concretizadores. Sendo assim, não há como se questionar o fato de que sua disciplina normativa se aplica a todos os crimes inscritos em seu bojo, de modo diferenciado das demais normas penais constantes no ordenamento. No universo das normas penais, a lei dos crimes hediondos é de natureza especial, devido às peculiaridades de suas disposições. Com efeito, a nova lei de tóxicos também exsurge como lei especial perante as demais normas penais. Nesse diapasão, observe-se que a referida é de 2006 e preconiza em seu art. 44 a vedação absoluta e apriorística à liberdade provisória. Em contrapartida, a lei 11.464 data de 2007: é mais recente, tem a mesma natureza jurídica e regula a mesma matéria em sentido diametralmente oposto. Logo, a norma posterior ab-rogou a anterior que dispunha em sentido incompatível ao seu teor. Ademais, permitir que a liberdade provisória para todos os crimes hediondos e equiparados e excetuá-la apenas o crime de tráfico ilícito de entorpecentes solapa o princípio o princípio da isonomia, pois, desde o direito romano consagrou-se que, onde há a mesma razão, deve haver o mesmo direito (ubi eadem ratio, ubi eadem jus). Portanto, o fenômeno ocorrido foi a sucessão de leis penais no tempo, ao invés de um conflito aparente entre normas.Para que a nova lei de tóxicos pudesse ser considerada especial em relação à lei dos crimes hediondos, exigir-se-ia que apresentasse um elemento qualificador, um plus em relação a matéria singelamente versada na lei geral. Os preceitos de igual envergadura contidos em normas distintas obedecem aos critérios ordinários insculpidos no art. 2º da Lei de Introdução ao Código Civil. Neste sentido, calha observar os proficientes apontamentos de Diniz (2009; p. 41):

Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva e subjetiva, denominados especializantes. a norma especial acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando -se assim o bis in idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também previsto no geral.

Deste modo, para admitíssemos a existência de conflito aparente de leis seria curial pressupor a existência contemporânea de duas normas válidas, sem as quais não há qualquer antinomia, como é o caso em exame. De fato, o ordenamento jurídico não tolera contradições entre seus preceitos. Entretanto, não há conflito há ser dirimido neste caso, pois como não se tratam de normas hierarquicamente díspares nem de cunho especializante, consideradas uma em razão da outra, equaciona-se o problema com a adoção do critério mais simples, que é o cronológico, prestigiando assim o princípio da posteridade.

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Sobre o autor
Eduardo Henrique Costa

Advogado. Graduado em Direito e Pós-graduado em Direito Processual pelo CESMAC (Centro de Estudos Superiores de Maceió)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Eduardo Henrique. A inconstitucionalidade da vedação absoluta à concessão de liberdade provisória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2842, 13 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18895. Acesso em: 19 abr. 2024.

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