Capítulo 2 - A teoria de Poulantzas sobre o Estado capitalista:
2.1) A definição de Poulantzas para o Estado capitalista e sua crítica à visão marxista instrumentalista do referido Estado:
A visão marxista instrumentalista de Estado é definida por Taylor (in Marsh e Stoker, 1995:249) como sendo
"uma visão do Estado como um instrumento da classe dominante que desempenha a função crucial de coordenar seus interesses de longo prazo. Dessa perspectiva, mais comumente associada ao Manifesto Comunista, Marx argumenta que ‘o executivo do Estado moderno é um comitê para administrar os negócios de toda a burguesia’ (Marx, 1973, p.69). Aqui, Marx considera a luta de classes em termos de um simples confronto entre dois opositores, com um número declinante de burgueses e uma explosão no tamanho do proletariado". Ou seja, o Estado é qualificado como mero comitê gestor dos interesses da classe dominante, a burguesia. Os adeptos desta análise não admitem a possibilidade de existência de algum tipo de autonomia do Estado em relação à classe dominante.
Poulantzas (1977:252) considera a existência de autonomia do Estado capitalista em relação às classes dominantes, e critica acidamente a visão marxista instrumentalista de Estado anteriormente referida . Escreve ele:
"Por autonomia relativa deste tipo de Estado, entendo, aqui, não diretamente a relação das suas estruturas com as relações de produção, mas a relação do Estado com o campo da luta de classes, em particular a sua autonomia em relação às classes ou frações de bloco no poder e, por extensão, aos seus aliados ou suportes. (...). Espero, por isso mesmo, marcar nitidamente a distância que separa esta concepção do Estado de uma concepção simplista e vulgarizada, que vê no Estado o utensílio ou o instrumento da classe dominante. Trata-se pois de (...) demonstrar que a concepção do Estado em geral como simples utensílio da classe dominante, errônea na sua própria generalidade, se revela particularmente inapta para apreender o funcionamento do Estado capitalista".
2.2) A unidade política do Estado capitalista:
Inicialmente, convém definir os conceitos de Estado capitalista e de hegemonia para Poulantzas. O Estado capitalista é, para Poulantzas, de acordo com Magalhães (2001:108), a instância que "traduz, no nível político, a relação entre os interesses das classes dominantes com os das classes dominadas, sendo, portanto, o fator de coesão da unidade de formação e também a estrutura na qual se condensam as contradições de diversos níveis da formação. Ele atua, portanto, como um vaso comunicante para onde são repassadas as contradições que se dão nos outros níveis".
No que se refere à hegemonia, Carnoy (1988:132) escreve que "A hegemonia indica, para Poulantzas, (a) como os interesses políticos da classe dominante se constituem como representativos do "interesse geral" do corpo político, e (b) como as frações da classe dominante se compõem num "bloco no poder", que reunifica os capitais concorrentes numa classe dominante e "controla" o Estado." Ambos os entendimentos sobre o conceito de hegemonia têm a ver com a função de unidade política exercida pelo Estado capitalista, de acordo com Poulantzas. Ainda segundo Carnoy (1988:132), a referida unidade consiste, em linhas gerais, no fato de que "O Estado se apresenta como representante do "interesse geral" dos grupos concorrentes – é o Estado nacional – popular de classe", o qual consegue dissimular sua ação política no sentido de favorecer os interesses do bloco burguês no poder, persuadindo as camadas sociais subalternas de que está agindo em prol do bem comum de toda a sociedade.
A função de unidade política das diferentes classes sociais da sociedade capitalista, desempenhada pelo Estado capitalista consiste no fato de este último fazer com que burgueses capitalistas e operários, situados em campos opostos e separados no âmbito das relações sociais de produção, sejam amalgamados, unificados na esfera das instituições públicas do Estado capitalista, que aparenta beneficiar a sociedade como um todo em sua ação política quando, na verdade, favorece as classes dominantes burguesas. O maior exemplo dessa dissimulação é o lema liberal básico de que "todos são iguais perante a lei". Ou seja, no ordenamento jurídico das sociedades capitalistas, em nível político – jurídico, existe igualdade formal quando, na verdade, no âmbito econômico das relações sociais de produção capitalistas, o que prevalece é a desigualdade fundamental entre capitalistas e operários e a relação de exploração promovida pelos primeiros sobre os últimos. É como escreve Magalhães (2001:109): "Segundo Poulantzas, as instituições políticas capitalistas tratam a todos como cidadãos em abstrato – sem identificá-los pela posição que ocupam nas relações de classe -, como indivíduos, e não como capitalistas e trabalhadores".
Para Poulantzas esta característica da unidade política do Estado capitalista implica o seguinte: Os indivíduos, na esfera econômica, ao nível da sociedade civil, encontram-se isolados, separados em suas respectivas classes sociais. Os capitalistas proprietários dos meios de produção, integrantes da burguesia, encontram-se em um campo antagônico ao dos operários, proprietários de suas respectivas forças de trabalho, vendidas por estes últimos no mercado capitalista em troca dos salários.
O Estado capitalista consegue promover, em seu interior, a unidade da sociedade capitalista da seguinte forma: ele realiza a reconciliação, em seu âmbito interno, das desigualdades e diferenças sociais, que não são internalizadas em suas instituições, de modo a fazer parecer que a sua ação institucional e política, por meio do exercício do poder político por ele desempenhado, é representativa de toda sociedade, do povo – nação, e não somente do conjunto de frações e classes dominantes burguesas que compõem o bloco no poder e em nome das quais o Estado atua como organizador político. O Estado capitalista, em seu interior, consegue ocultar, mascarar, as relações de classe existentes entre burguesia e proletariado no mercado capitalista, ajudando a legitimar a hegemonia burguesa na sociedade.
A unidade seria o fator que concretizaria a hegemonia burguesa na sociedade capitalista, fazendo parecer que a lei do bloco burguês no poder seria a lei da sociedade como um todo. Ou seja, o poder político institucionalizado emanado do Estado capitalista, de orientação única e unificada, atuaria no sentido de favorecer os interesses do bloco burguês no poder de maneira dissimulada, fazendo com que as classes dominadas acreditassem que os interesses defendidos pelo Estado capitalista seriam os da sociedade como um todo, e não os do bloco burguês no poder.
Nas palavras de Poulantzas (1977:274): "O poder de Estado constitui uma unidade própria, na medida em que as suas instituições são organizadas como constitutivas da unidade do povo e da nação. O Estado, estabelecido como lugar do "universal", da vontade geral, do público, é tido como representando não estes ou aqueles interesses privados e constelações econômico-sociais, ou a sua soma, mas o conjunto político unitário do povo-nação".
Em outra passagem (Ibidem:272), o autor nos revela
"o segredo do Estado-nacional-popular de classe: o poder institucionalizado do Estado capitalista de classe apresenta uma unidade própria de classe, precisamente na medida em que se pode apresentar como um Estado nacional-popular, como um Estado que não representa o poder de uma classe ou de classes determinadas, mas sim a unidade política de agentes privados, entregues a antagonismos econômicos, os quais o Estado se apresenta com a função de ultrapassar, unificando esses agentes em um corpo "nacional popular"". Em suma, o papel da unidade do Estado capitalista é o de legitimar a hegemonia social do bloco burguês no poder, fazendo com que a ação do poder político institucionalizado seja encarada como sendo executada em benefício dos interesses do conjunto das classes sociais, e não em defesa dos interesses do bloco burguês no poder. Isto é viabilizado pelo fato de o caráter de classe estar ausente das instituições estatais, neutralizando, em seu interior, as clivagens sociais.
Ainda sobre a questão da unidade política do Estado capitalista, é importante ressaltar que o poder institucionalizado unificado exercido pelo referido Estado é direcionado à defesa da classe ou fração hegemônica do bloco burguês no poder. As demais frações burguesas não têm seus interesses diretamente defendidos, como ocorre com a classe ou fração dominante. Não há "parcelamento" da ação do Estado capitalista, no sentido de contemplar todas as frações burguesas componentes do bloco no poder, devido, justamente, à unidade política que caracteriza a referida ação. O autor (Ibidem: 294) escreve que:
"Em outras palavras, se a concepção de um poder de Estado dividido em parcelas não é válida para as relações classes dominantes - classes dominadas, (...), também não o é para as relações entre classes e frações que constituem o bloco no poder. (...). Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica significa, assim, unidade do poder de Estado, na sua correspondência com os interesses específicos desta classe ou fração".
Sobre a questão da unidade política do Estado capitalista, Magalhães (2001:109) escreve que
"A contribuição especial de Poulantzas às teorias do Estado está posta quando ele mostra como o Estado capitalista fornece o quadro para as lutas entre frações da classe dominante e reintegra a classe operária, como indivíduos separados dos meios de produção e de sua classe, numa nação e num conjunto unificado de regras e instituições. Ao mesmo tempo, o Estado fornece o espaço político para a luta de classes. É ele que reintegra os trabalhadores e os burgueses num todo unificado que será reproduzido como sociedade capitalista – como uma estrutura de classes – através do tempo".
Ainda sobre o mesmo assunto, George Taylor (in Marsh e Stoker,1995:257) escreve sobre o papel da legislação burguesa na questão da unidade política:
"Nesta estrutura teórica, a legislação burguesa desempenha uma dupla função de legitimar a separação do trabalhador dos meios de produção e reunificar sistematicamente o sujeito sob a égide do Estado-nação. Para Poulantzas, o Estado é ativamente envolvido na construção tanto da unidade quanto da separação. Ele reproduz indivíduos atomizados como sujeitos jurídicos (prevenindo a unidade que emerge em relações de produção baseadas em classe), e reconstrói a unidade sob a égide do conceito de Estado-nação (Poulantzas, 1978, pp. 93-120)".
Isto significa que o Estado capitalista, mediante a aplicação da legislação burguesa, legitima e consolida a separação dos trabalhadores em relação aos meios de produção que operam, no âmbito das relações sociais de produção, na esfera econômica. Entretanto, este mesmo Estado, no âmbito político, não reproduz em seu interior a divisão de classes presente no aspecto econômico da sociedade capitalista, e, também por intermédio da legislação burguesa, estabelece direitos e deveres políticos e cívicos iguais para todos os cidadãos, independentemente de sua classe social. Ou seja, burgueses capitalistas e operários têm as mesmas prerrogativas e obrigações, sem distinção, todos tendo igualmente direito a votar e ser votado, sendo, dessa forma, unificados no âmbito político pelo Estado capitalista. Este último legitima, consolida e respalda a discriminação econômica, e mascara seu caráter de classe concedendo igualdade jurídica aos cidadãos, sejam eles burgueses ou proletários.
2.3) A autonomia relativa do Estado capitalista em relação às classes sociais, inclusive as dominantes:
A não internalização dos conflitos sociais nas instituições estatais, nas estruturas institucionais do Estado, permite ao Estado capitalista ser autônomo em relação às classes sociais e às suas frações, inclusive às do bloco no poder. A razão da autonomia do Estado capitalista em relação ao bloco burguês no poder reside no fato de a burguesia ser incapaz de, mediante a ação de seus próprios partidos políticos, se erigir ao nível hegemônico da sociedade capitalista. Esta incapacidade é conseqüência, principalmente, de a burguesia não ser capaz de promover a sua própria unidade política, devido à luta de suas frações internas.
A autonomia consiste no fato de o Estado capitalista ser independente para contrariar os interesses de curto prazo das classes e frações de classes burguesas dominantes do bloco no poder, adotando algumas providências para favorecer as classes dominadas e subalternas, contribuindo assim para reduzir seu potencial revolucionário e procedendo desta maneira como estratégia para garantir os interesses burgueses e assegurar a hegemonia social burguesa no longo prazo.
Com referência à autonomia, Poulantzas (1977:281) informa que o Estado capitalista
"toma, de algum modo, a seu cargo o interesse político da burguesia, entendida como o bloco burguês no poder, que realiza por sua conta a função de hegemonia política que aquela não pode preencher. Para o fazer, contudo, o Estado capitalista assume uma autonomia relativa face à burguesia: (...). Essa autonomia relativa permite-lhe precisamente intervir, não somente com vistas a realizar compromissos em relação às classes dominadas, que, a longo prazo se mostram úteis para os próprios interesses das classes e frações dominantes, mas também intervir, de acordo com a conjuntura concreta, contra os interesses a longo prazo desta ou daquela fração da classe dominante: compromissos e sacrifícios por vezes necessários para a realização do interesse político de classe. Basta mencionar o exemplo das chamadas "funções sociais" do Estado, que atualmente assumem uma importância crescente."
Isto corresponde ao conceito de "revolução passiva" de Gramsci (entregar os anéis para não perder os dedos). O Estado capitalista exerce esta autonomia sempre com o propósito de defender os interesses políticos burgueses. Ou seja, o referido Estado atua como organizador político do bloco burguês no poder.
Magalhães (2001:110) se refere a essa incapacidade de unificação da burguesia da seguinte forma: "Isso ocorre porque os interesses econômicos dividem a burguesia. Os burgueses são incapazes de agir coletivamente, dado que a reprodução do capitalismo é do interesse da burguesia, mas não dos capitalistas individuais: (...).Isso posto, a tarefa de garantir a reprodução do capitalismo não pode ser assumida pela burguesia: ela (a tarefa) só pode ser realizada pelo Estado que age contra as objeções das firmas individuais". Sobre a questão da autonomia, o mesmo autor (Ibidem:110) escreve que "Para manter o capitalismo, o Estado precisa ser independente da influência dos capitalistas – essa é a teoria da autonomia relativa do Estado, de Poulantzas".
Parece contraditório o Estado ser ao mesmo tempo responsável pela unidade política da sociedade capitalista em seu âmbito interno, apresentando-se como representativo do interesse geral do povo quando na verdade favorece o bloco burguês no poder, e, ao mesmo tempo, ser autônomo relativamente a este último. Sobre isso, Poulantzas (1977:284) escreve que:
"O caráter paradoxal dessa relação reside no fato de esse Estado assumir uma autonomia relativa face a essas classes precisamente na medida em que constitui um poder unívoco e exclusivo daquelas. Por outras palavras, essa autonomia em relação às classes politicamente dominantes, inscrita no jogo institucional do Estado capitalista, de forma alguma autoriza uma participação efetiva das classes dominadas no poder político, ou uma cessão a essas classes de "parcelas" de poder institucionalizado".
Acerca da questão da autonomia relativa, George Taylor (in Marsh e Stoker, 1995:255 e 256) escreve que
"Adotando o conceito de Althusser de autonomia relativa, Poulantzas argumenta que para o Estado capitalista funcionar a contento como um Estado de classe, agindo a longo prazo em favor dos interesses da burguesia, então ele tem que ter algum grau de autonomia em relação à classe dominante. Como afirma Jessop, a exclusão de qualquer viés de classe habilita o Estado capitalista a apresentar-se não como um Estado de classe, um Estado para defender interesses particulares, mas um Estado operando para os interesses da sociedade em geral (Estado-Nação) (Jessop, 1985, p.68).
Conforme Poulantzas destaca, no processo de assegurar a hegemonia de classe, o Estado ‘age num equilíbrio instável’ de compromissos entre as classes dominantes e as dominadas ‘e como tal pode adotar algumas medidas que são positivas para as massas’ (Poulantzas, 1978, pp.31)".
2.4) Explicação de Poulantzas sobre a leitura histórica de Marx acerca da França de Luís Napoleão (meados do século XIX) como exemplo concreto dos conceitos de unidade política e autonomia do Estado capitalista:
Poulantzas constrói sua teoria sobre a unidade política e a autonomia relativa do Estado capitalista com base nas análises políticas concretas feitas por Marx sobre a situação da França na metade do século XIX, época de Luís Bonaparte, o Napoleão III. Ou seja, Poulantzas formaliza teoricamente as análises feitas por Marx acerca da situação política concreta da França no referido período.
Sobre o assunto, Poulantzas (1977:254), citando um trecho de uma carta de Engels a Marx, escreve que "Vejo cada vez mais que a burguesia não foi feita para reinar diretamente; por conseqüência (...), uma semi-ditadura bonapartista torna-se a forma normal; ela toma nas suas mãos...os grandes interesses da burguesia (contra a burguesia, se necessário), mas não lhe deixa parte alguma na dominação". Prosseguindo, o mesmo autor escreve que "Marx nos diz, neste sentido, (...), que o bonapartismo se explica pelo momento em que a " burguesia já tinha perdido, e a classe operária ainda não adquirido, a faculdade de governar a nação"(Ibidem:255). Ou seja, trata-se de um momento de crise da hegemonia burguesa.
Em relação à autonomia do Estado capitalista no contexto político francês sob Luís Bonaparte, Poulantzas (Ibidem:276), citando Marx, informa que ""Só sob o segundo Bonaparte é que o Estado parece ter-se tornado completamente independente. A máquina de Estado reforçou-se tanto face à sociedade burguesa. (...) . O Estado é assim apresentado como "libertando completamente a sociedade burguesa da preocupação de se governar a si própria", (...) sob o segundo Império, " a nação abdica de toda a vontade própria e submete-se às ordens de uma vontade estranha, a autoridade"".
Ainda sobre a questão da autonomia e sobre esta inserida no referido contexto político francês, o mesmo autor (Ibidem:282) escreve que
"Vemos, assim, que o Estado capitalista, no cumprimento da sua função política, chega a apoiar-se em classes dominadas, a fazê-las, por vezes, funcionar contra as classes dominantes, face a estas realizando concretamente a autonomia relativa inscrita nas suas instituições: autonomia que lhe permite encontrar-se em relação constante com o seu interesse político. Convém sobretudo não esquecer, com efeito, que o Estado capitalista não se afasta, nesses limites precisos, um único milímetro dos interesses políticos da burguesia: no caso do bonapartismo francês, Marx mostra-nos como Louis Bonaparte, representante "oficial" da pequena burguesia e do campesinato parcelar, não toma nenhuma medida política em favor destes".
Relativamente à questão da unidade política do Estado capitalista, Poulantzas (1977:279) escreve que
"essa característica de unidade do poder institucionalizado corresponde precisamente ao fato de constituir um poder unívoco das classes ou frações dominantes. É sobre este ponto que Marx se debruça ostensivamente. Este Estado relaciona-se, assim, aos interesses políticos, à organização propriamente política das classes ou frações dominantes na sua luta política de classe com as classes dominadas.
Com efeito, o bonapartismo, considerado aqui como tipo de Estado capitalista, como "religião da burguesia", corresponde aos seus interesses políticos, ao seu poder político unívoco de classe. Isto é, aliás, o que acontece com o fenômeno histórico do bonapartismo francês, que serve exclusivamente os interesses políticos da burguesia, enquanto que os camponeses parcelares, representados por Louis Bonaparte, não são, de fato, senão uma classe-apoio que nenhuma influência tem sobre o poder político".
Magalhães (2001) aborda esta questão da autonomia do Estado e da burocracia frente à burguesia em períodos de crise de hegemonia, termo cunhado por Gramsci, que seriam situações de equilíbrio de classes, nas quais nenhuma classe social (nem a burguesia como um todo, nem nenhuma de suas frações, muito menos o operariado) consegue impor seu domínio e arrebatar e conservar o poder político no interior do Estado.
Sobre o assunto, Magalhães (2001:79) escreve o seguinte:
"Em tempos excepcionais, as possibilidades de autonomia podem aumentar, quando a luta de classes é "congelada" pela incapacidade de qualquer classe demonstrar seu poder sobre o Estado. Essa condição histórica excepcional permite que a burocracia amplie sua autonomia frente ao controle de classes, não sendo dominada por nenhuma classe da sociedade civil. O exemplo histórico comentado por Marx seria o bonapartismo, mais precisamente o golpe de Estado de Napoleão III, tema de seu livro "O 18 Brumário de Luís Bonaparte" (1852), onde analisa uma forma de governo onde a burguesia se deixa levar quando se vê na emergência de uma crise.
(...) quando nenhuma classe tem poder suficiente para governar através do Estado, nesses casos, é o próprio Estado que domina".
Em suma, quando há crise de hegemonia, equilíbrio de classes e nenhuma camada social consegue impor seu domínio sobre o Estado, é o próprio Estado, por intermédio da burocracia pública politicamente autônoma em relação à burguesia, que domina e governa a sociedade capitalista. Exemplo: França de Luís Napoleão, por volta de 1850.
2.5) Leitura marxista de Poulantzas sobre a questão do totalitarismo:
Inicialmente, Poulantzas faz referência à visão sobre o totalitarismo de autores como Hanna Arendt , visão esta caracterizada pelo fato de atribuir o fenômeno totalitário a um agigantamento do setor estatal e um conseqüente amesquinhamento da esfera privada. O referido autor (1977:286 e 287) escreve, acerca dessa abordagem, que
"o Estado totalitário decorreria de uma forma de poder institucionalizado cujo princípio de legitimidade seria baseado em uma sociedade de "massa". O Estado, essência alienada dos "átomos massificados" de uma sociedade industrializada, apareceria atualmente em todo o seu antagonismo com a sociedade. Na sociedade e no Estado liberais, os indivíduos possuiriam uma esfera de autonomia privada, resultante em princípio da sua participação no político e favorecida pelas diferenças de classe que impedem essa massificação global. Em contrapartida, assistir-se-ia a transformações radicais: (...), o Estado totalitário, monopolizando totalmente a essência individual através de sua posição antagônica com a sociedade; a um domínio total do poder de Estado em todas as esferas da atividade individual, a uma absorção do domínio privado em todas as esferas do (...) estatal".
Poulantzas se contrapõe a esta visão, atribuindo o totalitarismo à função de unidade política desempenhada pelo Estado capitalista. Poulantzas (1977: 287 e 288) escreve que:
"Em particular, o Estado capitalista extrai, com efeito, o seu princípio de legitimidade do fato de se apresentar como a unidade do povo-nação. (...) . É precisamente nisto, e certos teóricos do fenômeno totalitário justamente o observaram, que ele difere, radicalmente de outras formas de "despotismo", por exemplo do poder político "absoluto", formalmente semelhante, exercido por formas de tirania fundadas na legitimidade divino - sagrada. (...). Por outras palavras, é exatamente o tipo de legitimidade do Estado capitalista, representando a unidade do povo-nação, que permite um funcionamento específico do Estado designado pelo termo de totalitarismo.
(...). Desse modo, o funcionamento do Estado capitalista designado pelo termo de totalitarismo, e que diz efetivamente respeito à relação entre esse Estado e as classes, é tornado possível pela relação entre o princípio de legitimidade desse Estado e o isolamento do econômico, isolamento que, precisamente, por um lado, oculta aos agentes o caráter de classe das suas relações, por outro lado permite a ausência de expressão direta da luta de classes nas instituições desse Estado.
(...) é certo que o funcionamento, designado como "totalitário", do Estado capitalista, se encontra em correlação, não com uma ausência qualquer de interesses opostos de classe ou de associações "mediadoras" entre o "indivíduo" e o "Estado", mas com uma ausência de expressão direta da luta de classes nas instituições do poder político".
Em outras palavras, Poulantzas identifica o componente totalitário presente no Estado capitalista no fato deste último conciliar as diferenças sociais de classe em seu interior por meio do exercício do poder político no qual há a ocultação do caráter de classe do citado Estado, com este último agindo em benefício do bloco burguês no poder e fazendo as outras classes sociais da sociedade capitalista acreditarem que ele está agindo em prol da sociedade como um todo. Para Poulantzas, a natureza totalitária do Estado capitalista consiste no fato deste viabilizar, de forma dissimulada, a hegemonia do bloco burguês no poder, em detrimento das classes subordinadas, principalmente o proletariado.
2.6) O bloco no poder:
Poulantzas (1977:293) define o bloco no poder escrevendo que " (...) o bloco no poder constitui uma unidade contraditória das classes ou frações dominantes, unidade dominada pela classe ou fração hegemônica. Essa unidade do bloco no poder é constituída sob a égide da classe ou frações que dele fazem parte".
Convém salientar novamente que este bloco não implica a partilha do poder político institucionalizado do Estado capitalista, que sempre age no sentido de organizar politicamente o interesse da classe ou fração hegemônica do bloco burguês no poder, que é a verdadeira detentora do poder de Estado.
Sobre a relação entre o bloco no poder, a unidade política do Estado capitalista, sua autonomia relativa e a luta de classes, Poulantzas (1977:294) escreve o seguinte:
"Unidade política do bloco no poder sob a égide da classe ou fração hegemônica significa, assim, unidade do poder de Estado, na sua correspondência com os interesses específicos desta classe ou fração. Esta característica relaciona-se, entre outras coisas, ao jogo interno das instituições do Estado capitalista, à sua própria unidade e à sua autonomia relativa consideradas aqui do ponto de vista da função do Estado com relação ao bloco no poder".
Sobre o Estado capitalista e o bloco no poder, Magalhães (2001:110) escreve que
"Cabe ao Estado unificar os interesses dos capitalistas individuais, na manutenção do sistema, construindo um bloco de poder que venha a agregar as diferentes frações da classe dominante em torno de uma ideologia que legitime o seu domínio. (...) o bloco no poder é a expressão política das diferentes frações da classe dominante. É através do bloco no poder que essas diferentes frações são unificadas para governar; na verdade, sua função (do bloco no poder) é a de traduzir a ideologia dominante em ação concreta que se expressa por uma série de práticas materiais, costumes e valores, as quais agem como cimento na ligação das relações sociais, políticas e econômicas." Em outras palavras, a função do bloco no poder é organizar a hegemonia burguesa no interior do Estado capitalista.
2.7) Leitura marxista de Poulantzas sobre a questão da separação dos poderes e sobre a predominância ou do Executivo ou do Legislativo um sobre o outro:
O entendimento tradicional acerca da separação dos poderes de Montesquieu é de que se trata de uma distinção jurídica formal. Corresponde a uma repartição, multicentrista e equilibrada, do poder interno do Estado. É a idéia liberal clássica dos freios e contrapesos, de poder controlando poder.
Já a interpretação marxista de Poulantzas (1977:300) sobre esta questão é a de que "De fato, a despeito da declaração da separação de poderes, particularmente do poder legislativo – parlamento – e do poder executivo, podemos constatar que o Estado capitalista funciona como unidade centralizada, organizada a partir da dominância de um desses poderes sobre os outros".
Trata-se de "relações precisas entre as forças políticas e as diferenças reais no funcionamento das instituições do Estado. Porém, (...), é sempre possível decifrar a dominância característica de um desses poderes, daquele que constitui a instância principal da unidade do Estado. Essa instância – em regra geral, o legislativo ou o executivo – constitui o ponto nodal em que se concentra, no interior da organização complexa do Estado, o poder institucionalizado unitário; reflete o índice das relações internas de subordinação, por delegação de poder, dos diversos "poderes" do Estado, a esse "poder" dominante, constituindo o princípio de unidade do poder de Estado" Poulantzas (1977:300).
Poulantzas (Ibidem:302) prossegue a sua interpretação:
"(...), a unidade do poder institucionalizado é mantida pela sua concentração em torno do lugar dominante, onde se reflete a classe ou fração hegemônica. Os outros poderes funcionam sobretudo como resistências ao poder dominante: inseridos na função unitária do Estado, contribuem para a organização da hegemonia da classe ou fração que se reflete, como força política, no poder dominante."
Pode-se concluir então que, na opinião de Poulantzas, a referida separação não teria relação com a necessidade de dispersar o poder para evitar sua concentração e eventuais desmandos, conforme prega a visão liberal tradicional acerca da teoria de Montesquieu, e sim teria relação com a luta de classes e com os confrontos sociais objetivando a conquista da hegemonia no interior do bloco no poder.
Sobre a questão do relacionamento executivo e legislativo, o argumento de Poulantzas é, em linhas gerais, o seguinte: o bloco burguês no poder pode exercer sua hegemonia tanto no Parlamento, mediante a ação dos partidos políticos que o representam organizando os interesses políticos do citado bloco, quanto no Executivo. Nesse último caso, isto ocorre devido à incapacidade dos partidos políticos representativos do bloco burguês no poder de organizar a hegemonia burguesa no Legislativo, e, com isso, o próprio aparelho de Estado passa a exercer a função diretiva da organização política do bloco no poder. É a situação de autonomia do Estado capitalista e da burocracia, o que acontece quando as classes sociais se descolam de seus respectivos partidos políticos. Foi o que ocorreu no caso do bonapartismo francês de 1850, aproximadamente. As diversas frações burguesas não estavam mais conseguindo se articular para impor sua hegemonia e, devido a isso, foi adotado o Executivo forte, a semiditadura de Luís Napoleão, que passou a ser a instância organizadora da hegemonia do bloco burguês no poder. Ocorreu o que Poulantzas (Ibidem:308) denomina de "deslocamento da dominância do legislativo para o executivo. Trata-se de transformações das formas burguesas de legitimidade".
2.8) A análise marxista de Poulantzas sobre a questão da burocracia:
Poulantzas (1977:328) menciona dois significados distintos atribuídos pelos marxistas ao termo burocracia. Pode tanto ser o "efeito específico da estrutura regional do Estado sobre os agentes em uma formação social", como "um sistema específico de organização e de funcionamento interno do aparelho de Estado, que manifesta sobretudo o impacto político da ideologia burguesa sobre o Estado: fenômeno este freqüentemente expresso pelo termo particular de burocratismo ou de burocratização."
O referido autor não considera a burocracia nem como classe social nem como fração de classe. Para Poulantzas (1977:329), o que a especifica é "a sua relação particular com o poder institucionalizado e o fato de pertencer ao aparelho de Estado, ela não pode ser mais que o efeito da relação do Estado com as estruturas econômicas por um lado, e com as classes sociais e frações de classe, por outro".
Sobre a burocracia, Poulantzas (Ibidem:331) escreve que "ela constitui uma categoria específica. Quer isto dizer que o seu funcionamento particular, aquilo que a especifica como categoria, não é diretamente determinado pela sua atribuição de classe, pelo funcionamento político das classes ou frações de que saiu: depende, antes, do funcionamento concreto do aparelho de Estado, a saber do lugar do Estado no conjunto de uma formação e das suas relações complexas com as diversas classes e frações." O que Poulantzas quer dizer é que a dinâmica de funcionamento da burocracia não está associada nem às classes sociais das quais são provenientes a maioria dos burocratas, a "classe detentora do Estado", nem à classe ou fração hegemônica do bloco no poder, a qual detém o poder de Estado. A dinâmica de funcionamento da burocracia está relacionada ao funcionamento concreto do aparelho de Estado, no contexto de uma formação sócio-econômica na qual o referido aparelho se relaciona com as diferentes classes sociais.
A respeito da classe detentora do Estado, Poulantzas (Ibidem:331) escreve que
"A importância dessa classe ou fração em que são recrutadas as "cúpulas" da burocracia, assinalaram-na Marx e Engels, através de um conceito específico, o da classe detentora do Estado. Este conceito pareceu-lhes indispensável a fim de indicar que essa classe ou fração pode identificar-se, mas também não se identificar, com a classe ou fração hegemônica do bloco no poder, aquela que habitualmente se designa, embora impropriamente, como classe ou fração politicamente dominante. Em suma, essas cúpulas da burocracia podem provir de uma classe ou fração politicamente dominante, que faz parte do bloco no poder, mas que não é a classe ou fração hegemônica desse bloco".
Com referência a esse assunto, qual seja, o fato de que a camada da qual é oriunda a maior parte dos integrantes da burocracia poder não ser a classe ou a fração de classe hegemônica do bloco no poder, Poulantzas (Ibidem:332) considera que, ocorrendo a situação anteriormente enunciada, a burocracia exercerá o poder de Estado representando os interesses da classe ou fração de classe hegemônica no bloco no poder, e não representando a classe ou fração de classedetentora do Estado.
Por fim, Poulantzas (Ibidem: passim, 342-345) destaca dois aspectos importantes: primeiro o fato de a burocracia ser o elemento que operacionaliza a hegemonia do bloco burguês no poder, já que é por seu intermédio que o Estado capitalista exerce suas funções estruturais essenciais de unidade política e autonomia relativa; e, segundo, o fato de o caráter político, e, portanto, a maior ou menor importância da burocracia no modo de produção capitalista, depender de o Estado ser ou não uma alternativa importante de emprego para a pequena burguesia e o campesinato parcelar.
Em relação ao primeiro aspecto, Poulantzas (1977:344) considera que a ação da burocracia retira o caráter de classe das instituições estatais, além de encarnar a unidade política do povo-nação, ocultando o caráter de classe do Estado capitalista e transmitindo, exitosamente, a falsa idéia, para as classes subalternas, de que age em favor do conjunto da sociedade, e não da classe ou fração de classe hegemônica do bloco no poder. Deste fato é derivada a idéia de neutralidade da burocracia, desenvolvida por Weber. Isso ocorre pelo lado da unidade política. No que se refere à autonomia relativa, Poulantzas considera que, em momentos de crise de hegemonia, a burocracia governa de forma independente das classes sociais, embora, a longo prazo, garanta a hegemonia da fração de classe ou classe preponderante no bloco burguês no poder. Relativamente ao segundo aspecto, Poulantzas (Ibidem:342) considera que, pelo fato de o Estado ser uma alternativa relevante de emprego para a pequena burguesia e para o campesinato parcelar na França, e não o ser na Grã-Bretanha, a burocracia se fortaleceu na primeira e permaneceu fraca na segunda.