RESUMO
A presente pesquisa traz uma análise crítica ao reconhecimento dos efeitos jurídicos das relações extraconjugais no âmbito do Poder Judiciário. Apesar da Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional não contemplarem ditas relações na condição de entidades familiares protegidas pelo Estado, a relativização do princípio da monogamia em favor da dignidade da pessoa humana e da vedação ao enriquecimento sem causa tem favorecido a construção de instrumentos doutrinários e jurisprudenciais para conferir direitos as uniões paralelas ao casamento. Todavia, tendo em vista a não regulamentação legal da matéria, inexiste norteamento para a atuação jurisdicional no sentido de evitar a instalação de uma insegurança jurídica na sociedade pela ameaça à família tradicional. De modo que se trata de uma reflexão necessária ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito, focada em um tema atual e complexo, envolto de divergências oriundas de convicções éticas e morais.
Palavras-Chave: Família. Relação extraconjugal. Relativização da monogamia. Dignidade da pessoa humana. Insegurança jurídica.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1 OS NOVOS HORIZONTES DO DIREITO DAS FAMÍLIAS. 1.1 O casamento monogâmico deixa de ser elemento identificador da família brasileira. 1.2 A dignidade da pessoa humana e seu papel na reetruturação da família à luz da Constituição Federal de 1988. 1.3 A afetividade como pressuposto de formação da família contemporânea. 2 UNIÕES AFETIVAS – A REVOLUÇÃO DOS COSTUMES . 2.1 Evolução da família: novos valores para um novo tempo. 2.2 Da União estável e do concubinato. 2.3 Da (im) possibilidade de incidência das regras do direito de família nas relações extraconjugais. 3 ASPECTOS GERAIS DAS RELAÇÕES EXTRACONJUGAIS: HISTÓRICO, CONCEITO E REPERCUSSÃO JURÍDICA. 3.1 Antecedentes históricos do concubinato. 3.1.1 Antiguidade. 3.1.2 Período Medieval e Idade Moderna. 3.1.3 Brasil. 3.2 Efeitos jurídicos ao concubinato adulterino: a relativização da monogamia. 3.3 Concubinato: entidade familiar ou sociedade de fato?. 4 REGULAMENTAÇÃO DO CONCUBINATO COMO CONDIÇÃO DE SEGURANÇA JURÍDICA. 4.1 Divergências doutrinárias e jurisprudenciais quanto aos efeitos jurídicos das relações extraconjugais. 4.2 Da inafastabilidade da tutela jurisdicional aos amantes. 4.2.1 Das possibilidades de efeitos da tutela. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
Inúmeras são as influências do ambiente social para a formação da personalidade humana. Inegavelmente, a família é a mais importante de todas. É uma organização na qual a pessoa humana encontra amparo irrestrito, fonte da sua própria felicidade. De sorte que, a família é base de sustentação do corpo social, recebendo, portanto, especial proteção do Estado.
Sua concepção está interligada com os rumos e desvios da história, com as características morais, culturais e sociais de cada época, sendo, portanto, uma estrutura mutável na medida em que se modificam as estruturas e a arquitetura da própria história no decorrer do tempo. Trata-se, em verdade, da célula mater da sociedade, onde os valores evoluem de modo a garantir a adequada formação do indivíduo.
Neste diapasão, tendo em vista a dinamicidade das relações humanas no mundo pós-moderno, cujos valores e princípios foram flexibilizados, descortinando uma multiplicidade de modelos familiares, o Direito brasileiro necessita redesenhar a concepção de família, atendendo ao desafio de considerar e regulamentar as situações nascentes na sociedade, que se encontram à margem da tutela jurisdicional.
A família ingressa numa fase de evolução jurídica em que o casamento monogâmico deixa de ser seu elemento identificador, tendo em vista a valorização das uniões de fato, em que vigoram requisitos não formais. A célula da sociedade modifica sua estrutura para legitimar a existência de novas realidades.
Neste contexto histórico, surge a abordagem das relações extraconjugais, aquelas estabelecidas paralelas ao casamento. O adultério é prática disseminada desde a sociedade colonial brasileira, apesar das sanções à época impostas pela Igreja Católica. Punível ou não, trata-se de uma das crises a serem enfrentadas pelos estudiosos do Direito.
Por questões de ordem cultural, religiosa ou política, o Brasil adotou o princípio da monogamia do matrimônio, punindo inclusive a prática da bigamia. No entanto, constata-se que apesar da ínfima violação de tal premissa, homens e mulheres transgridem deliberadamente o dever de fidelidade, de lealdade, de respeito e de consideração mútuos, ditados pelo Diploma Civil Substantivo Pátrio. Constroem-se, muitas vezes, lares extraconjugais e massa patrimonial.
Diante dos acontecimentos, o legislador reserva-se ao direito de permanecer inerte. Possivelmente, amedrontado pela provável reação social diante da agressão à família natural. Os estudiosos do Direito, por sua vez, buscam interpretar a Constituição Federal e a legislação infraconstitucional disponível no escopo de prestar efetiva assistência jurídica à população. Doutrina e Jurisprudência nascem em todo o país, reconhecendo ou não efeitos jurídicos às relações concubinárias.
Perplexa, a sociedade vê a insegurança como característica da nossa era. Há decisões que avançam e outras que voltam ao passado. Não se encontram limites ou fronteiras. Erros e acertos, convergências e divergências, convivem paradoxalmente no fantástico mundo jurídico brasileiro.
1.OS NOVOS HORIZONTES DOS DIREITOS DAS FAMÍLIAS.
1.1.O Casamento Monogâmico deixa de ser Elemento Identificador da Família Brasileira.
A família surgiu como um fato natural, posto que não é da natureza humana o isolamento. Famílias foram sendo constituídas pelo instituto sexual e para a conservação da prole por elas gerada, como de modo semelhante acontece no mundo animal, surgindo com o tempo a evolução dos modelos de convívio e de interação das sociedades afetivas, até o matrimônio ao lado da união informal. (MADALENO, 2008).
Virgílio de Sá Pereira (2008, p.51-56), se afasta das convenções sociais e jurídicas para vislumbrar na realidade a legítima formação da família, que assumiu nova feição:
A família é um fato natural. Não a cria o homem, mas a natureza. (...) O legislador não cria família, como o jardineiro não cria a primavera. (...) Fenômeno natural, ela antecede necessariamente ao casamento, que é fenômeno legal. (...) Agora, dizei-me: que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com sua lei, ou o padre, com seu sacramento? Que importa isto? (...) Não é do casamento, portanto, que resulta o parentesco, mas da paternidade e da maternidade, e assim, corria ao legislador o dever de considerar as uniões ilegítimas, para resguardo dos direitos da prole. (...) De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta; soberano não é o legislador, soberana é a vida.
O casamento foi, durante um largo período da história, uma das instituições jurídicas mais importantes, sendo reconhecido como única forma de constituição de família. O entendimento perdurou, ultrapassando séculos de modernidade, sustentado pela histórica imposição religiosa de um ato santificado, fruto da visão do mundo medieval que não reconhecia outra união aos olhos de Deus e da Igreja. O enraizamento desta cultura religiosa terminou por influenciar as legislações civis de maneira a condicionar o matrimônio a um ato solene, celebrado na forma da lei, sem o qual não decorreriam efeitos jurídicos. Paulo Lins e Silva (2009, p. 123), relata muito bem a importância desse instituto, que desde o início de nossa história até meados do século XX foi o bem mais desejado pelas mulheres, independentemente de sua origem social:
Herdeiros da cultura européia tradicional e religiosa, os brasileiros adotaram a visão de que a mulher deveria ser mãe, esposa e dona de casa. Assim, nada mais desesperador a uma família que ver sua filha adentrar a puberdade sem vislumbrar para ela um bom casamento.
A família de tempos passados tem sua ênfase colocada em uma visão de mundo em que a religião era o grande ponto de convergência, segundo relatado por Coulanges (1996, p.29-30):
A origem da família antiga não está apenas na geração. (...) O princípio da família não o encontramos tampouco no afeto natural. O direito grego e o direito romano não levavam em consideração esse sentimento. (...) Os historiadores do direito romano, muito justamente, observaram que nem o nascimento nem o afeto formam o fundamento da família romana, julgando, pelo contrário, que devemos encontrar tal fundamento no poder paterno ou no marital. (...) O que uniu, de verdade, a família antiga foi algo mais poderoso que o nascimento, o sentimento ou a força física: na religião do fogo sagrado e dos antepassados se encontra esse poder. A religião fez com que a família formasse um único corpo nesta vida e na do além.
Essa visão de mundo do período medieval deu lugar a uma concepção antropocêntrica a partir do renascimento, em que o homem era a medida de todas as coisas. A revolução desencadeada ainda no século XVIII, o século das luzes, resultou na mutação dos princípios sociais, desmistificando os tabus determinados pela tradição, conforme aponta Lins e Silva (2009, p.123):
A revolução industrial modificou o papel da mulher na sociedade, passando de mãe e dona de casa a trabalhadora.
A partir do final do Século XIX, aos poucos, com a introdução no Brasil do capitalismo e da industrialização e a consequente procura por mão de obra, as mulheres foram pouco a pouco expandindo seus horizontes, e o casamento passou a nao ser mais encarado como a única alternativa digna para suas vidas.
A liberação sexual na metade da década de 1960 foi também marcante, quando teve como parâmetro a igualdade sexual entre homens e mulheres, estas sem o risco da gravidez, diante da descoberta dos anticoncepcionais.
A legislação brasileira, no entanto, até o Código Civil de 1916, não evoluiu a ponto de assimilar tais fatos sociais. Zanetti (2010, p.113) contextualiza o momento:
Havia grupos familiares formados a partir de pessoas que nao se casaram, seja porque, a princípio, o casamento era somente religioso,e os não católicos, ou se convertiam à religião para se casarem, ou não se casavam – seja porque pessoas separadas de fato de seu cônjuge não podiam se casar novamente e passavam a viver informalmente com outra pessoa, seja porque simplesmente decidiram nao se casar seguindo as formalidades legais.
A importância dada ao casamento pela legislação brasileira decorria da forte influência religiosa no Direito Brasileiro, notadamente no direito de família, uma vez que, durante o Império brasileiro, cuja religião oficial era a católica, a Igreja era responsável pela celebração dos casamentos. O casamento, para a religião católica, é considerado algo sagrado, proveniente de Deus, e portanto indissolúvel. A Igreja ainda hoje tem certa resistência em relação à dissolubilidade do casamento.
O Código Civil de 1916, já revogado, controlava a dinâmica social, tentando impor à sociedade um conceito único de família, ao prever que apenas o casamento poderia legitimar a formação deste ente. O legislador se arvorou no papel de guardião dos bons costumes, buscando a preservação de uma moral conservadora e, muitas vezes, preconceituosa, adotando uma postura intimidadora e punitiva, na esperança de gerar comportamentos alinhados com os comandos legais, na perspectiva de desestimular atitudes que se afastassem do parâmetro comportamental reconhecido como aceitável.
Demais disso, o Código, tido como instrumento legislativo de consagração dos valores burgueses típicos do século XIX, ignorando que no direito de família deve haver maior valorização da pessoa humana, deu contornos eminentemente patrimonialistas à família. Por conta disso, tal agrupamento era tratado como um ente de produção de riqueza, perpetuado nas gerações seguintes através do direito das sucessões.
Nesse contexto, vale ressaltar que o casamento tinha finalidades de cunho eminentemente econômico, a exemplo do estabelecimento de vínculos patrimoniais, mútua assistência entendida como um recíproco auxílio patrimonial, e do dever de educar e principalmente manter a prole.
Ademais, o regime matrimonial de bens teve tratamento primordial pelo legislador, pois nada menos que 59 (cinquenta e nove) artigos do Código tratavam da matéria. Os impedimentos matrimoniais estatuídos no art. 183 do Diploma Civil de 1916 também tinham como fundamentos a defesa do patrimônio, e não das pessoas, como nos casos dos incisos XIII, XV e XVI:
Art. 183. Não podem casar:
(...)
XIII – o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
(...)
XV – o tutor ou curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas, salvo permissão paterna ou materna manifestada em escrito autêntico ou em testamento;
XVI – o juiz, ou escrivão e seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com órfão ou viúva, da circunscrição territorial onde um ou outro tiver exercício, salvo licença especial da autoridade judiciária superior.
A escolha do casamento como meio único de constituição da família deu-se por dois motivos essenciais. O primeiro foi o fato de, em decorrência da sociedade brasileira sempre ter tido a propensão de cultivar as tradições cristãs, tal instituto já se encontrar impregnado na cultura nacional. O segundo motivo reside na solenidade e na publicidade inerentes ao rito matrimonial: essas características, por certo, gerariam uma segurança jurídica, a qual era favorável à manutenção do compromisso assumido pelos nubentes.
Face ao aludido modelo uno de família, as relações de fato surgidas fora do casamento não recebiam qualquer reconhecimento jurídico. Não havia família em relações concubinárias, mesmo no denominado concubinato puro (entre pessoas sem impedimentos matrimoniais). Além disso, filhos havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, não podendo ser reconhecidos pelos pais, mesmo que estes quisessem.
Negar reconhecimento a esses filhos tinha finalidade punitiva, visando a impedir a procriação fora dos sagrados laços do matrimônio
Dentro da relação matrimonial da época notou-se uma certa ausência de preocupação com a felicidade dos membros da família, visto que era evidente o desequilíbrio entre os cônjuges, ante a prevalência da figura do marido. Ao varão praticamente só eram conferidos pelo Código privilégios. O rol de seus direitos era extenso, incluindo, por exemplo, a chefia exclusiva da sociedade conjugal, a incumbência de representar a família, de administrar os bens comuns, de autorizar a mulher a realizar determinados atos.
Na realidade, pouco importava se os membros da família estavam felizes ou não com aquela situação. A dignidade deles era um dado secundário. O que, de fato, se tornava relevante era a manutenção da paz doméstica, o equilíbrio, a segurança, a coesão formal da família, mesmo em detrimento da realização pessoal de cada um dos seus integrantes, principalmente a mulher.
A família constituída pelo casamento era concebida como um instituto em prol da própria família, um fim em si mesma, porque o legislador entendia que aquele modelo fechado era o único correto. Como consequência de tudo isso, aquelas pessoas que preferiram viver à margem do Direito, pois não se casaram, receberam designações extremamente discriminatórias, enquanto membros de uma família ilegítima, constituída à margem da lei.
Os filhos provenientes das relações extraconjugais sofriam do mesmo fardo de serem tratados como ilegítimos e, por isso, não recebiam os direitos privativos dos chamados filhos legítimos, frutos do casamento. Nasciam já marcados pelo selo da exclusão social em virtude do status de espúrios, bastardos.
Demais disso, a relação entre pais e filhos era pouco afetiva, sendo o processo educacional rígido, autoritário e unilateral. Mesmo os filhos legítimos não tinham voz nem vez, restando o dever de obedecer sempre, pois o patriarca sabia o que era melhor para sua prole. Não havia espaço para o diálogo, a troca de idéias e de conhecimentos. O pai do início do século XX tinha como seu principal papel nutrir financeiramente seus filhos, e isso bastaria para que fosse proporcionada a felicidade de todos.
Ao considerar como ideal o modelo de família descrito acima, o legislador vedava por absoluto o término definitivo do vínculo matrimonial, não sendo permitido o divórcio, admitindo-se, tão somente, o encerramento da sociedade conjugal, através da separação judicial (desquite), sendo que o culpado por essa separação era duramente punido com a perda automática da guarda judicial dos filhos e dos direitos ao nome de casado e aos alimentos. Manter o casamento após o desquite, ainda que desfeito o vínculo afetivo, negava a realidade da vida, criando uma ficção no escopo de impedir a constituição de novas uniões.
O legislador era o grande ditador dessa situação de rigidez legal, que dizia como as pessoas deveriam proceder, impondo pautas de conduta afinadas com a moral vigente. E em razão dessa imposição é que muitas famílias foram mantidas, em prol do reconhecimento do Estado e da própria sociedade hipócrita e preconceituosa, quando no âmago de cada um dos seus membros reinava a insuportabilidade da vida em comum, algo relativamente normal nos relacionamentos humanos, mas terrivelmente evitado pelo legislador infraconstitucional. Some-se ainda a pregação da Igreja Católica de que não seria possível ao homem separar o que Deus uniu.
Ainda assim, novas configurações familiares foram surgindo, instituídas por laços de afeto, respeito e mútua assistência, aversas a formalidades criadas por convenções sociais, mas plenamente capazes de desenvolver a personalidade de seus membros. O casamento deixou de ser a figura central da família, abrindo espaço para o exercício da liberdade pelos indivíduos para escolher a forma de família que pretendem constituir, possuindo a prerrogativa de, se não mais houver amor, colocar fim ao relacionamento, permanecendo íntegros, contudo, os vínculos paterno-filiais. O silêncio da lei não foi suficiente para impedir a busca da felicidade pelo ser humano.
No momento atual, o modelo de família está fundado no poder familiar, que pertence ao casal, e nos valores da afetividade, da solidariedade, da convivência e dos laços criados e não em valores culturais e religiosos. Portanto, inaugurando uma nova fase que reflete mudanças na moral brasileira, a Constituição Federal, promulgada aos cinco dias do mês de outubro de 1988, ao contrário de suas antecessoras, que consideravam apenas o casamento como forma de família legítima, alçou a união estável e a família monoparental à categoria de entidades familiares protegidas pelo Estado, no escopo de preservar a unidade e a sobrevivência social e legitimar a existência dos dois novos agrupamentos:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º. Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
O cenário do direito de família foi modificado para atender aos anseios sociais, alterando radicalmente o paradigma da família.
1.2.A Dignidade da Pessoa Humana e seu Papel na Reestruturação da Família à luz da Constituição Federal de 1988.
Apesar das variadas formas que assume e das transformações sofridas no decorrer dos tempos, a família permanece como condição para a humanização e a socialização das pessoas, constituindo-se em uma constante universal em todas as culturas, como forma de relação social da espécie humana, não só como estratégia de sobrevivência dos grupos, mas como condição para o desenvolvimento e a realização da pessoa.
A família é considerada o berço da sociedade e a formadora dos indivíduos, na qualidade de primeiro sistema social no qual o ser humano é inserido desde o seu nascimento. Nela são atendidas as mais diversas necessidades humanas e sociais, quer para a identidade simbólica do indivíduo, que lhe proporciona experiência no nível psicológico, quer ao oferecer experiências humanas básicas e referenciais que perduram no tempo: paternidade, maternidade e fraternidade.
Cabe à entidade familiar possibilitar o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana e, como consequência, a evolução da sociedade, pois, caso contrário, não é merecedora de proteção. A Constituição Federal de 1988 considera ter sido o Estado criado em função de seu povo e para servir a todos os cidadãos de modo a preservar, manter e garantir sua dignidade. Apenas à guisa de comentário, ressalta-se que o legislador constituinte inseriu o capítulo dos direitos fundamentais antes do capítulo referente à organização do Estado, reforçando a tese de que este foi criado como elemento a garantir a dignidade da população.
Assim sendo, toda e qualquer ação do ente estatal deve ser e estar direcionada à busca da dignidade da pessoa humana, sob pena de suas ações serem consideradas inconstitucionais. Pois o Estado deve, em sua atuação, partir do pressuposto de que cada pessoa é um fim em si, e emprenhar-se na busca e concretização de sua felicidade.
É nesse contexto constitucional que a entidade familiar passa a ser encarada como uma verdadeira comunidade de afeto e entreajuda, e não mais como uma fonte de produção de riqueza como outrora. É o âmbito familiar o local mais propício para o indivíduo obter a plena realização da sua dignidade enquanto ser humano, porque o elo entre os integrantes da família deixa de ter conotação patrimonial para envolver, sobretudo, o afeto, o carinho, amor e ajuda mútua.
Nesse sentido, as relações familiares se tornam muito mais verdadeiras, porque são construídas e não impostas por quem integra o instituto. O ser, finalmente, supera o ter, fazendo o afeto tornar-se o elemento irradiador da convivência familiar.
O conceito de família desvincula-se de um papel adstrito a consaguinidade e a proteção pelo casamento civil ou religioso. Entretanto, não para fragilizar ou sepultar o núcleo essencial à vida em sociedade, mas na perspectiva de aproximar o direito da realidade e promover o fortalecimento da família através da tutela de todos os seus arranjos vivenciais. Na união estável e na família monoparental não há casamento, mas há família, e o grande fator de união entre as personagens formadoras dessas entidades está no afeto, desdobrando-se, dessa forma, nos fatores de solidariedade, companheirismo e respeito.
A dignidade é tudo aquilo que não tem preço, não pode ser objeto de troca, é inestimável e indisponível. Nas palavras de Kant (1986) é possível delinear uma conceituação adequada de dignidade:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e, portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.
A Constituição, segundo José Afonso da Silva (1993, p. 109):
Abriu as perspectivas de realização social profunda pela prática dos direitos sociais que ela inscreve e pelo exercício dos instrumentos que oferece à cidadania e que possibilita concretizar as exigências de um Estado de justiça social, fundado na dignidade da pessoa humana.
Com efeito, as entidades pós-modernas surgem priorizando os laços de afetividade que unem seus membros, não sendo mais a família sinônimo de casamento. A tutela jurídica não é mais concedida à instituição em si mesma, como portadora de um interesse superior ou supra-individual, mas à família como um grupo social, como o ambiente no qual seus membros possam, individualmente, melhor se desenvolverem. E essa visão sociológica das relações familiares é de importância cabal, pois reflete a evolução contínua por que passa o instituto familiar na atualidade.
O relacionamento entre os familiares também ganhou nova roupagem, passando a ser muito mais aberto, democrático e plural, permitindo que cada indivíduo venha a obter, de fato, a realização da sua felicidade particular. Isso porque, se a Constituição consagrou a dignidade da pessoa humana como super princípio, assim o fez por ter encontrado na família contemporânea um forte meio de sua propagação, pois é no âmbito familiar que o indivíduo cresce e adquire suas habilidades para a convivência social.
Moreira Alves apud Gustavo Tepedino (2007, p. 140), proclama:
A maior preocupação da atualidade é com a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que disciplinam o direito de família, regulando as relações mais íntimas e intensas do indíviduo no social.
Desse modo, entende-se que a família advinda da Constituição Federal de 1988 tem o papel único e específico de fazer valer a dignidade de seus integrantes como forma de garantir a felicidade pessoal de cada um deles. A construção de sonhos, a realização do amor, a partilha do sofrimento, enfim, os sentimentos humanos devem ser compartilhados nesse verdadeiro lar, um lugar de afetividade, afeto e respeito.
1.3.A Afetividade como Pressuposto de Formação da Família Contemporânea.
O princípio da afetividade não está previsto de forma expressa no ordenamento jurídico, mas a Constituição Federal, ao estabelecer a pluralidade das entidades familiares, reconhece a afetividade como base da família.
Não importa a posição do indivíduo na família, ou qual a espécie de grupamento familiar a que ele pertence, importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, valores e se sentir, por isso, a caminho da realização do seu projeto de felicidade (DIAS, 2006).
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade pós-moderna traz um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado. O escopo precípuo da família parece ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regida pelo afeto, como mola propulsora.
Sendo a constituição da família um fato natural, não podendo submeter-se a idéias estáticas, presas a valores de um passado distante, constata-se que a formação dos agrupamentos humanos atuais se dá, em primeiro lugar, pelo estabelecimento de laços de afeto. Decorre uma mutabilidade inexorável na feição da família, apresentando-se sob tantas e diversas formas quantas forem as possibilidades de se relacionar (ou talvez, de expressar o amor). A família, enfim, não traz consigo a pretensão da inalterabilidade conceitual. Ao revés, seus elementos fundantes variam de acordo com os valores e ideais predominantes em cada momento histórico.
Costa (2010) trata com clareza sobre o processo de evolução e transformação do núcleo familiar:
A família foi, é, e continuará sendo o núcleo básico e essencial da formação e estruturação dos sujeitos, e, consequentemente, do Estado. Desta forma, é uma construção que está estruturada no afeto, no amor, na compreensão, nas atitudes solidárias e no reconhecimento.
Essa idéia de família nada mais é do que o reflexo do fim das famílias patriarcais de 1916, daquela família fundada pelos laços de sangue e comandada pelo pai poder. Ainda, são reflexos das transformações da sociedade, dos grandes avanços e das conquistas de longos anos, que hoje são comemoradas por todos os operadores do Direito.
Assim, família se constitui por diversos fatores e é capaz de ter múltiplos envolvidos, pois hoje existe uma estrutura multifacetada, quando tratamos de famílias uniparentais, homoafetivas, pluriparentais, etc., demonstrando o caráter eudemonista, presente na nossa atualidade e justificada exclusivamente na busca da felicidade e na realização pessoal de seus indivíduos.
A sociedade brasileira vive hoje o fenômeno das famílias recompostas e reconstituídas, formadas, justamente, por pessoas que estão ligadas pelo amor.
Esses fatores somados, que constituem a família, é que garantem o desenvolvimento da esfera familiar. Assim, a presença do afeto, do carinho, da compreensão, da atenção, da disponibilidade, do cuidado, do alimento, é que são capazes de dar ensejo a presença de uma estrutura familiar propriamente dita, independentemente de quem são, e de quantos são, os indivíduos envolvidos.
A partir do momento em que as pessoas passaram a se casar por amor, a família foi deixando de ser, essencialmente, um núcleo econômico e reprodutivo. Assim se fez a "desconstrução" da família patriarcal, tradicional e hierarquizada. E foi, então, que o afeto tornou-se um valor jurídico.
Nesse sentido, o amor e a autonomia privada tem sido fonte de ampliação dos horizontes, pois nunca se demonstrou tanta preocupação com o outro e o seu bem-estar como nas sociedades atuais.
A Família, afinal, é lugar privilegiado da realização da pessoa, pois é aí que se inicia e se desenvolve todo o processo de formação da personalidade do sujeito. A Família deixou, portanto, de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser o espaço do amor e do afeto.
A busca pela institucionalização da família no modelo ultrapassado de matrimônio, baseado na união religiosa e civil entre homem e mulher, já não é regra na sociedade do tempo presente. Afinal, o mundo está experimentando o novo padrão das sociedades familiares construídas não somente entre sexos opostos, mas também por pares do mesmo sexo nas uniões homoafetivas. Mais importante, pois, revela-se o afeto dos entes que se unem para satisfazer o desejo da aproximação.
Um dos fulcros constitucionais que albergam o princípio da afetividade encontra-se no art. 226, parágrafo 8, da Constituição Federal, no momento em que assimila o marco ora tratado da nova família, com contornos diferenciados, pois prioriza a necessidade da realização da personalidade dos seus membros, ou seja, a família-função, em que subsiste a afetividade que, por sua vez, justifica a permanência da entidade familiar (COSTA, 2010).
A eliminação das fronteiras arquitetadas pelo sistema sócio jurídico clássico dá lugar à família contemporânea, suscetível às influências da nova sociedade, trazendo o afeto como eixo fundamental, deixando de ser compreendida como núcleo econômico e reprodutivo. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo.
A entidade familiar deve ser entendida, hoje, como grupo social fundado, essencialmente, por laços de afetividade, pois à outra conclusão não se pode chegar à luz do texto constitucional.