RESUMO. Este artigo examina as peculiares do ministério do sacerdote católico, no âmbito do trabalho realizado no meio religioso. Com essa análise, o trabalho procurará trazer uma contribuição para o estudo da matéria na perspectiva jurídica, de modo especial no que se refere ao direito humanístico do trabalho.
Palavras-chave: ministério cristão, sacerdote, Igreja Católica, trabalho, Direito do Trabalho.
ABSTRACT. This article examines the peculiarities of the Catholic priest's ministry, in the extent of the work accomplished in the religious middle. With that analysis, the work will search to bring a contribution for the study of the matter in the juridical perspective, in a special way in what refers to the humanistic right of the work.
Keywords: Christian ministry, priest, Catholic Church, work, Right of work.
Introdução
Existe robusta Jurisprudência de Tribunais do Trabalho brasileiros afastando a aplicação da legislação trabalhista ao chamado trabalho religioso. Esse posicionamento jurisprudencial influenciou a redação do art. 16, do Acordo entre a Santa Sé e o Estado brasileiro. Na primeira parte daquele artigo, existe a previsão de que o vínculo entre os ministros ordenados ou fiéis consagrados mediante votos e as Dioceses ou Institutos Religiosos é de caráter religioso, não gerando, por si mesmo, relação empregatícia, a não ser que seja provado o desvirtuamento da instituição eclesiástica. A segunda parte, por sua vez, dispõe que as tarefas de índole apostólica, pastoral, litúrgica, catequética, assistencial, de promoção humana e semelhantes poderão ser realizadas a título voluntário, observado o disposto na legislação trabalhista brasileira.
Entre as várias atividades desenvolvidas no âmbito religioso, que compreendem as discriminadas tanto no primeiro quanto no segundo item do referido artigo, merece destaque o trabalho do sacerdote católico. Este ocupa lugar especial no seio da Igreja, exercendo funções relacionadas ao ministério da Palavra e dos sacramentos, além de participar do múnus de educar conferido à Igreja Católica. Por isso, além das exigências espirituais da vida sacerdotal, a Igreja se preocupa com o apoio material ao sustento dos seus padres, incluindo entre seus elementos a justa remuneração, a permissão para o gozo anual de férias, além de acesso à previdência social. Tais benefícios, de acordo com entendimento jurisprudencial largamente aceito, não são considerados típicos direitos trabalhistas, embora guardem certa similitude com eles.
Este trabalho tem como objetivo examinar as peculiaridades do ministério do sacerdote católico, no âmbito do trabalho religioso. Ministério, porque diz respeito ao exercício de funções peculiares a um ministro sagrado, em alguns aspectos, similares, mas em outros, distintos das demais atividades realizadas no meio religioso.
O exame partirá do enfoque sociológico e cultural da religião e do sacerdote, destacando o papel deste no âmbito da esfera religiosa; apresentará o itinerário histórico do sacerdócio cristão, buscando as origens no sacerdócio de Israel e, principalmente no sacerdócio de Cristo, até chegar ao modelo de sacerdócio católico dos nossos dias; abordará o tema do trabalho religioso na perspectiva do Direito brasileiro; por fim, discutirá as peculiaridades do sacerdócio católico no âmbito do trabalho religioso, tendo em vista as semelhanças e diferenças entre o trabalho desenvolvido pelos presbíteros e outros tipos de trabalho religioso, bem como o tratamento jurídico-legal relacionado ao tema.
1 – Aspectos sociológicos e culturais da religião e do sacerdócio
Toda sociedade humana, segundo BERGER (1985, p. 15), representa um projeto de construção do mundo, no qual a religião ocupa lugar de destaque. Pela religião, o ser humano procura o sentido de sua existência, que não pode ser encontrado no caos. Nesse empreendimento, é criado um cosmo sagrado que inclui o próprio ser humano e, ao mesmo tempo, o transcende. Tudo isso implica, em última análise, um processo de fundação do mundo, pois "para viver no Mundo é preciso fundá-lo ? e nenhum mundo pode nascer do ‘caos’ da homogeneidade e da relatividade do espaço profano" (ELIADE: 1992, p. 26).
A busca por fundar o mundo no espaço do sagrado não é fato novo na história das sociedades humanas. Estudos de Paleontropologia dão conta de incipientes manifestações a que se poderia atribuir significado cultual e mágico-religioso desde os tempos do homo erectus, que viveu entre 1,7 a 0,15 milhões de anos (MARTELLI: 1995, p. 137). Além disso, a experiência de fé e devoção por divindades não se restringe a povos específicos, mas pode ser considerada uma constante de todas as culturas, ainda que não seja cultivada pela totalidade das pessoas de cada sociedade. E é justamente o exercício desse sentimento de fé, na busca de construir e até de reconstruir o mundo, a essência do que denominamos religião.
Religião é palavra de múltiplos significados. É empregada para designar, entre outras coisas, o culto à divindade, a fé na promessa sobrenatural da salvação e os meios para alcançar esta última, o conjunto de dogmas e práticas de uma determinada confissão religiosa, ou ainda, num sentido estrito, "religião pode representar mesmo uma espécie singular de ideologia que ordena a conduta e a vida de um grupo determinado de fiéis segundo uma devoção" (NUNES: 2007, p. 7). Por conta dessa polissemia, talvez seja preferível não enclausurá-la numa única definição, o que certamente não seria condizente com sua exuberante virtualidade conceitual, já presente em sua etimologia.
Segundo Abbagnano (2000, p. 847), etimologicamente o termo religião deve significar obrigação. Cícero, porém, em sua obra De natura teorum (45 a.C), afirmava que a palavra derivou de relegere (reler), sendo os religiosos aqueles que, dedicados ao culto dos deuses, tinham que reler atentamente os livros sagrados. Tal explicação enfatiza o aspecto repetitivo e intelectual do ofício religioso. Posteriormente, Lactâncio (séc. III e IV d.C.) refutou essa explicação, sustentando que a palavra religião origina-se de religare (religar), posição adotada também por Agostinho de Hipona (séc. IV d.C.), sendo realçado, nesse caso, o vínculo que ata (ou reata) o ser humano à divindade. Fala-se ainda na explicação atribuída a Teodósio Macróbio (séc. V d.C.), segundo a qual a origem da palavra estaria ligada a relinquere (deixar por herança), por ser algo que nos é dado pelos antepassados.
Se a religião é relevante para a vida de todas as sociedades, o sacerdote, por sua vez, é um importante protagonista no âmbito da religião. Desde os tempos mais remotos, cada sociedade tem atribuído a determinadas pessoas o encargo de fazer a mediação entre o humano e o sagrado. Essas pessoas, embora recebendo diferentes denominações, exercem, de diferentes formas, o ofício de sacerdote (do Latim sacerdos, -otis, o que realiza as cerimônias sagradas), que compreende as funções relacionadas a realização de sacrifícios, exorcismos e oráculos, presentes tanto nas sociedades ditas primitivas quanto nas consideradas civilizadas.
O sacrifício apresenta-se como uma das formas mais antigas e centrais em diversos cultos. Algumas vezes aparece como sacrifício expiatório, outras como propiciatório, não sendo necessariamente cruento, nem ligado a práticas de magia. Isaías (1,11ss), falando em nome de Iahweh, já condenava a imolação de determinados sacrifícios, que não significassem verdadeiramente o estabelecimento ou restabelecimento da ligação dos ser humano com Deus. O exorcismo, por outro lado, não se limita unicamente a sessões públicas de expulsão de supostas possessões demoníacas ? nos dias de hoje até exibidas pela televisão ?, mas dizem respeito à purificação de todas as formas de mal que possam atingir a pessoa e a sociedade. Por fim, o oráculo não é necessariamente ligado ao dom de predizer o futuro, no sentido corrente de adivinhação. Havia sacerdotes de Israel que pronunciavam oráculos, que não eram videntes nem adivinhos, mas apenas tinham o dom de ler os sinais de Deus na história, do mesmo modo que as profecias da época não eram o equivalente do horóscopo dos dias atuais.
2 – Itinerário histórico do sacerdócio cristão
Para compreender o sacerdócio católico dos dias atuais, é importante examinar o itinerário histórico de sua organização, tomando como ponto de partida o sacerdócio em Israel. É na religião dos judeus que se encontram as raízes do catolicismo, o que é reconhecido oficialmente pela própria Igreja Católica. [01] Por isso, nos subitens seguintes, serão examinados aspectos relevantes da estrutura sacerdotal israelita pré e pós-mosaica, destacando ainda a figura do próprio Moisés no contexto da história do sacerdócio israelita. Essa análise será importante para melhor compreensão do sacerdócio-sacrifício de Cristo, que passou a ser o paradigma do sacerdócio ministerial cristão.
2.1 – O sacerdócio israelita
No período pré-mosaico não havia uma organização específica da classe sacerdotal israelita. [02] No relato bíblico, podemos observar que desde Caim e Abel (Gn 4, 3ss) até o tempo dos Juízes, a exemplo de Gedeão (Jz 6,25ss) e de Elcana, pai de Samuel (1Sm 1,3ss), os sacrifícios eram realizados por pessoas que não recebiam uma investidura específica para o sacerdócio. Por se tratar de uma sociedade patriarcal, quem fazia esse papel eram os homens, "cabeças" da família, passando esse encargo para o filho primogênito. Também é importante observar que a Bíblia não se refere a essas pessoas utilizando o termo hebraico kohen nem o grego hiereus, traduzidos como sacerdote, diferente do que acontece, num período posterior, com Jetro, por exemplo, que era chefe de família e sogro de Moisés, chamado várias vezes de sacerdote (kohen) de Madiã. (Ex 2, 16; 3,1; 18,1). Excetua-se a essa regra, com relação aos escritos relacionados ao período pré-mosaico, o sacerdócio de Melquisedec, que aparece já no primeiro livro da Bíblia.
Melquisedec (Gn 14, 18-29) era sacerdote extraordinário. Não há no texto bíblico nenhuma referência a sua genealogia, nem informação sobre seu nascimento e morte. Seu sacerdócio não decorreu de herança nem há menção expressa a seus sucessores. Ele é chamado de sacerdote do Deus Altíssimo, tendo proferido uma bênção a Abraão, que, por sua vez, lhe deu o dízimo de tudo. Há quem diga que os versículos do Gênesis que se reportam a Melquisedec são uma adição posterior ao restante do capítulo, haja vista que aquele sacerdote reflete a imagem do sumo sacerdorte pós-exílico, herdeiro das prerrogativas reais e chefe do sacerdócio, a quem os descendentes de Abraão pagavam o dízimo. Outros, porém, veem em Melquisedec a prefiguração do próprio sacerdócio de Cristo. Essa ideia encontra respaldo na Carta aos Hebreus, em que o escritor sagrado, após afirmar que Jesus entrou no santuário celeste como nosso precursor, feito sumo sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec, explica que este é de fato, sacerdote do Deus Altíssimo, e que seu nome significa Rei da Justiça, Rei de Salém e Rei da Paz. Sem pai, sem mãe, sem genealogia, nem princípio de dias nem fim de vida, é assim que Melquisedec se assemelha ao Filho de Deus, e permanece sacerdote eternamente (Hb 7, 1-4).
Moisés é outra personalidade notável na história do sacerdócio em Israel. Além de liderar a libertação dos judeus da escravidão no Egito, ele se apresenta como o grande mediador do pacto da Aliança entre Iahweh e o povo escolhido. Era o único que tinha o privilégio de subir a montanha para receber as instruções dadas pelo próprio Iahweh e, ao mesmo tempo, relatar a Deus os apelos do povo. Mas não é só. Foi Moisés que trouxe ao mundo o Decálogo, normas gravadas nas Tábuas da Lei pelo próprio dedo de Deus. Por tudo isso, não há dúvida de que a Moisés foram conferidas prerrogativas típicas não só do ministério sacerdotal ? o Salmo 99, v. 6 o chama expressamente de sacerdote ?, como também poderes-deveres especialíssimos, o que o fazia uma espécie de sumo sacerdote-legislador. [03] Tanto que ele foi encarregado de tomar a frente do processo de investidura de Aarão ? irmão de Moisés, e da tribo de Levi ?, bem como dos filhos deste no exercício do sacerdócio (Ex, 29), que passou a ser regido por um conjunto de prescrições específicas, registradas de modo especial no livro do Levítico. Este pode ser visto como um manual litúrgico do sacerdócio levítico, onde se encontram textos legislativos relativos ao culto, como também normas de cunho moral e social destinadas a regulamentar as instituições religiosas judaicas.
De acordo com essas prescrições, os sacerdotes deveriam permanecer puros para servir a Deus. Não podiam fazer tonsura na cabeça, raspar as extremidades da barba, nem fazer incisões no corpo, práticas comuns entre sacerdotes "pagãos." Além disso, não podiam tomar por esposa mulher prostituta ou desonrada, tampouco repudiada por seu marido. Exigia-se também que o homem fosse saudável e tivesse aparência "normal". Se tivesse defeito físico, não poderia se aproximar do véu nem do altar do tabernáculo para apresentar as oferendas, embora pudesse se servir dos alimentos de seu Deus (Lv 21, 1ss). Esta última prescrição, que hoje pode afigurar-se estranha e discriminatória, justificava-se no contexto cultural da época. Para o povo judeu, muitas doenças eram castigo de Deus. Por isso, o culto realizado por cegos, aleijados ou por pessoas deformadas poderia ser tido como grave irregularidade ou profanação.
Além dos sacerdotes havia outros levitas que trabalham na tenda da reunião. O trabalho deles era árduo, exigindo força muscular, pois tinham que montar, desmontar e transportar a tenda, carregando muitos objetos pesados, como se deduz da leitura dos capítulos 25 e 26 do livro do Êxodo, em que são descritas, com riqueza de detalhes, as prescrições referentes à construção do santuário. O tempo de serviço desses levitas ia dos vinte e cinco até os cinquenta anos de idade, quando tinham uma espécie de aposentadoria, embora pudessem continuar ajudando a garantir a ordem na tenda (Nm 8, 24-26). Acredita-se ainda que entre vinte e cinco e trinta anos, os levitas passavam por um treinamento, hipótese formulada a partir de outras passagens do livro dos Números (cap. 4, versículos 3, 30 e 31), segundo as quais eles só estariam realmente aptos para o serviço na tenda da reunião quando tivessem trinta anos.
Encontramos ainda, no livro dos Números (18, 1ss), normas relacionadas ao sustento dos sacerdotes, bem como dos seus auxiliares. Para Aarão e seus filhos foi concedido, como direito perpétuo, parte das oferendas trazidas pelo povo a Deus. Para os levitas que trabalhavam no templo como auxiliares dos sacerdotes, era destinado o dízimo sobre todos os produtos agrícolas das tribos. Dessa parte devida aos levitas, era separado para os sacerdotes um décimo do que melhor fosse ofertado, como "tributo a Iahweh". Em suma, se os "leigos" viviam dos produtos da terra, os levitas viviam do dízimo, em troca da dedicação exclusiva ao serviço no santuário. Os sacerdotes, por sua vez, tinham direito a 1% do produto nacional, o que se justificava, uma vez que a Aarão e seus filhos foi concedido o sacerdócio como um serviço e como um privilégio (Nm 18,7).
Apesar das prescrições da lei mosaica insistirem na diferenciação entre os sacerdócios considerados pagãos e o sacerdócio de Israel ? o que era fundamental para criar uma identidade própria do sacerdote israelita ?, não há como negar que este último tenha sofrido algumas influências egípcias. O Egito sempre foi uma referência na vida do povo judeu. Se no Egito aquele povo foi escravizado, também foi lá que Moisés se tornou um "príncipe sem coroa", preparando-se para liderar a libertação do seu povo. José, vendido por seus irmãos, terminou como governante no Egito. Com sua arrojada política agrária, livrou da fome não só os egípcios, como a própria família de José. Também não se pode esquecer que quando a vida de Jesus se viu ameaçada, foi para o Egito que José e Maria tiveram que fugir com o Deus-Menino.
No caso do sacerdócio, alguns egiptólogos destacam semelhanças na vestimenta dos sacerdotes egípcios e dos israelitas. Mas isso talvez não seja o mais importante, pois poderia ser apenas coincidência de métodos e materiais empregados para a confecção de roupas em diferentes culturas. A grande influência se deu na própria estrutura e funções do sacerdócio [04], ocorrida principalmente a partir do período monárquico da história de Israel, a exemplo da inclusão dos sacerdotes entre os oficiais reais, a limitação das prerrogativas da classe sacerdotal pelo sacerdócio exercido pelo próprio rei, além da proeminência hierárquica da figura do sumo sacerdote.
Merece destaque ainda, no que se refere às raízes históricas do sacerdócio cristão ? de modo especial do presbiterado ?, o papel exercido pelos anciãos de Israel. No texto bíblico, a palavra ancião, traduzida do hebraico zaqen e do grego presbyteros, é empregada para designar pessoa (idosa ou não) que detinha posição venerável na comunidade. No Antigo Testamento, os anciãos apresentam-se como uma classe social específica ou como um colegiado que exerce funções específicas. Eles representam o povo na atividade política e religiosa, aparecendo ao lado do chefe ou como seus companheiros no exercício da autoridade. Moisés, por exemplo, sempre se dirigia a eles, e os levou na comitiva que foi ter com o Faraó (Ex 3, 16-18).
Portanto, os anciãos podem ser vistos como uma instituição importante nos diversos momentos da história de Israel, particularmente por ocasião da diáspora. Mas como pode acontecer com outras instituições, algumas vezes a atuação dos anciãos foi marcada pelo desvirtuamento de sua finalidade. No Antigo Testamento, eles também aparecem como opressores do povo, como denuncia o profeta Isaías (Is 3,14). No Novo Testamento, atuam em oposição a Jesus (Lc 22,66) e como perseguidores dos seus discípulos (At 22,5).
2.2 – Do sacerdócio-sacrifício de Cristo ao ministério do sacerdote cristão
Se levarmos em conta o Jesus histórico ? praticamente impossível de ser separado do Jesus da fé ?, aquele pode ser visto como o que atualmente a Igreja denomina leigo, embora santo, carismático e guiado pelo espírito, e não como sacerdote. Jesus não era descendente da família de Aarão; pertencia à tribo de Judá. Sua missão apresenta traços de natureza fortemente profética, tanto que Ele utiliza a palavra profeta para referir-se a si mesmo (Lc 4,24), e muitos de sua época o reconheceram como tal (Lc 7,16). Há inclusive quem o veja como um profeta escatológico, que não se limitou a proclamar um programa social, mas anunciava a vinda do Reino de Deus, com a necessidade de transformação radical das pessoas e do mundo. E mesmo considerando o Jesus ressuscitado, os textos do Novo Testamento, em quase sua totalidade, não qualificam Jesus Cristo com o título de sacerdote.
Todavia, a Carta (Epístola) [05] aos Hebreus, formula uma primorosa síntese teológica, na qual Jesus Cristo é apresentado como sumo sacerdote. O sacerdócio de Cristo é algo absolutamente novo, não mais vinculado à descendência de Aarão ou à tribo de Levi, mas um sacerdócio à maneira de Melquisedec. Jesus é o sumo sacerdote misericordioso e fiel, que não atribuiu a si mesmo tal honra, mas a recebeu diretamente de Deus.
Contrapondo-se à busca de privilégios e ao distanciamento do povo, que caracterizava a estrutura sacerdotal da época de Jesus, Hebreus aponta um jeito novo e único de alguém se tornar sacerdote, cujo modelo é o sacerdócio de Cristo. Este não buscou distinção honorífica fundada no poder religioso, mas foi solidário à condição humana da maneira mais radical possível, tornando-se, ao mesmo tempo, sacerdote e vítima, com o seu sacrifício único, cumprido de uma só vez e de uma vez por todas. Esse sacerdócio, caracterizado pela misericórdia, pela fidelidade às coisas de Deus e pelo caráter messiânico e universalista, passa a ser o único paradigma tanto para o sacerdócio comum do povo de Deus, quanto para o sacerdócio dos ministros ordenados.
Não havendo mais a separação entre sacerdote e vítima, o sacerdócio-sacrifício de Cristo acaba com a distinção entre sacerdote e povo. Por meio de Cristo, toda pessoa passa a ter a possibilidade de chegar ao Pai. O culto, nesse contexto, não pode prescindir da mediação de Cristo, único e verdadeiro sacerdote, e a unicidade de mediação faz nascer outro tipo de sacerdócio, caracterizado não mais como exercício de poder, mas como ministério.
A partir do paradigma de Jesus Cristo, o sacerdócio terá de ser necessariamente ministerial por duas razões básicas. Por um lado, deve estar a serviço do sacerdócio de Cristo, do qual se torna apenas um instrumento. Por outro, deve ser exercido em função do povo de Deus, ou seja, da comunhão eclesial. Em outras palavras, qualquer pessoa só poderá ser sacerdote em nome de Cristo e em benefício da comunidade.
A ideia de sacerdócio ministerial parece não ter sido um grande problema na época dos apóstolos. A missão deles era basicamente o anúncio do querigma de Cristo. Os apóstolos, como testemunhas dos atos e palavras do Mestre, tinham consciência de que os seguidores de Cristo deveriam ser seus ministros (1Cor 4,1). Além disso, os primeiros grupos de cristãos eram compostos por poucas pessoas ? para muitos os primeiros cristãos formavam apenas uma seita judaica sem muita expressão ?, o que, por si só, tornava mais fácil a ação missionária. Todavia, as dificuldades iam surgindo com as novas gerações de seguidores, cronologicamente mais distantes do anúncio original da mensagem cristã e, ao mesmo tempo, devido ao crescimento das comunidades, que se tornavam mais numerosas e complexas.
O capítulo seis dos Atos dos Apóstolos traz um exemplo dessas dificuldades. Com o aumento do número de discípulos, surgiram murmurações dos helenistas contra os hebreus. [06] Isto porque, segundo os primeiros, suas viúvas estariam sendo esquecidas na distribuição diária. Foi então que os Doze convocaram a "multidão" dos discípulos e deliberaram no sentido de que não era conveniente que eles [os Doze] abandonassem a Palavra de Deus para servir às mesas. Por isso, determinaram que os próprios discípulos escolhessem entre si sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, a fim de que os apóstolos os encarregassem da assistência às viúvas.
Essa divisão entre o ministério da Palavra, destinada aos apóstolos, e o ministério do serviço, atribuída aos sete homens ? que hoje poderiam ser chamados diáconos ?, nos dá uma ideia de que já nas primeiras comunidades houve a necessidade de divisão de tarefas e, portanto, de distinção entre ministérios cristãos. O Novo Testamento fala, por exemplo, em apóstolos e presbíteros (ou anciãos), [07] epíscopos e diáconos (Fl 1,1), ou ainda em notáveis (ou autoridades) da Igreja, [08] o que poderia ser visto com embrião de uma estrutura clerical hierarquizada que, na verdade, só foi sendo formada ao longo de séculos da história da Igreja.
A histórica do clero ? assim como de toda a Igreja Católica ? é marcada por altos e baixos. Quando o cristianismo tornou-se a religião oficial de Roma (séc. IV d.C.), aquela igreja escondida e sob perseguição transformou-se num império cristão, com todas as vantagens e mazelas decorrentes dessa transformação: "o direito de propriedade e de herança, o privilégio dos bispos, a função de alicerce espiritual do império são a pedra fundamental do poder temporal da Igreja." (FRÖHLICH: 1987, p. 31).
Se por um lado a Igreja ganhou poder e prestígio, por outro se viu acossada pela ingerência do imperador romano. Constantino foi quem convocou e presidiu o Concílio de Nicéia (325), decidindo quais medidas deveriam ser tomadas contra os heréticos. Tudo isso fez com que o ministério sacerdotal cada vez mais se limitasse ao serviço do altar, em detrimento do cuidado pastoral também inerente a esse ministério. O desvirtuamento de parte do clero atravessou séculos, chegando até o mundo moderno, palco da realização do Concílio de Trento.
O Concílio de Trento (séc. XVI), ficou muito preso à formulação de respostas às teses levantadas por Lutero, o que se justificava diante do contexto da Reforma Protestante. Por isso, com uma postura excessivamente defensiva e apologética, faltou-lhe um discurso eclesiológico propício à implementação das reformas almejadas por muitos segmentos no interior da própria Igreja Católica, que consideravam prioritário o restabelecimento da unidade eclesial. Esta, aliás, era a primeira finalidade do concílio, e foi sua maior frustração.
Contudo, não seria justo dizer que os resultados daquele concílio foram somente negativos. No âmbito dogmático, se a unidade da fé não foi restabelecida, ao menos a doutrina católica foi elucidada e consolidada. No aspecto disciplinar e pastoral, foi instaurado um programa de renovação do povo e do clero. Na época, não eram poucos os padres sem qualquer ministério ou atividade missionária, satisfazendo-se com as missas privadas e a recitação do breviário. Além disso, o nível intelectual de grande parte deles era deplorável:
A praga do clero no século XVI era a ignorância. Que grande sedução não deveria representar um livro como a Instituição Cristã de Calvino sobre os espíritos desgostosos com o charlatanismo dos pregadores da época! Clérigos giróvagos, sem bispo, clérigos incapazes de pronunciar as fórmulas de validação de um sacramento ? o concílio de Trento havia deplorado essas tristezas. Uma condição essencial de reforma clerical, portanto, era uma sólida formação intelectual e espiritual dos futuros pastores ? conseqüentemente, dos futuros bispos ? nos seminários e nas universidades (PIERRARD: 1982, p. 190).
Verificando essa situação do clero, e reconhecendo que, em grande parte, a crise da Reforma tinha a ver com tal situação, um decreto tridentino determinava que cada igreja-catedral deveria manter um seminário. Este, na visão do concílio, tinha como objetivo formar os futuros sacerdotes, sendo perenes sementeiras [09] dos ministros de Deus. Todavia, a determinação contida no referido decreto demorou muito tempo para se efetivar, devido a fatores que iam desde a carência de professores à oposição de instituições de ensino tradicionais. Por outro lado, a renovação da identidade católica, projetada pelo programa tridentino de reforma da Igreja, só ganhou uma dimensão mais ampla séculos depois, quando da realização do Concílio Ecumênico Vaticano II.
O Vaticano II (1962-1965) é, sem dúvida, um divisor de águas na história recente da Igreja Católica. Convocado pelo Papa João XIII, que presidiu a sessão de abertura, e concluído sob o Pontificado do Papa Paulo VI, o Concílio Vaticano II tinha objetivos arrojados, entre os quais o incremento da fé cristã, a renovação dos costumes, a adaptação da Igreja aos novos tempos e o revigoramento do ardor missionário. Para alcançar essas finalidades, a Igreja precisava voltar às fontes e natureza originais e, ao mesmo tempo, abrir-se para outras religiões (cristãs ou não cristãs), buscar um diálogo com o mundo moderno, e renovar-se a si mesma, em sintonia com os "sinais dos tempos."
O trabalho realizado naquele concílio resultou na aprovação de dezesseis documentos, de três tipos: Constituições, cujo conteúdo é predominantemente doutrinário; Decretos, em que se enunciam determinações da Igreja Católica, e Declarações, onde são apresentadas opiniões da Igreja sobre temas específicos. No que se refere ao ministério dos sacerdotes, temos dois Decretos conciliares: o Optatam totius, sobre a formação sacerdotal, e o Presbyterorum ordinis, sobre o ministério e a vida sacerdotal. O Código de Direito Canônico acolheu e disciplinou algumas das determinações contidas nesses documentos, que serão explicitadas mais adiante, quando for tratada a questão das peculiaridades do trabalho do sacerdote católico no âmbito do trabalho religioso.