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"Easy rider": a difícil escolha pela advocacia

03/05/2011 às 09:44
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Não vos aconselho o trabalho, mas a luta.

Não vos aconselho a paz, mas a vitória.

Seja o vosso trabalho uma luta!

Seja a vossa paz uma vitória!"

Assim Falou Zaratustra – Friedrich Nietzsche

Uma das principais discussões que rondam as cátedras dos discentes do curso de direito é justamente saber qual caminho cada um deve seguir. Essa discussão sempre foi fomentada pela eterna dialética existente entre a diferenciação do exercício de um cargo público e o da advocacia. Evidentemente que essa discussão não comporta vencedores e vencidos, eis que cada um tem convicções pessoais e profissionais que fundamentam qualquer opção escolhida.

Dentro desse cenário, é importante observar alguns aspectos que demarcam a posição do advogado perante juízos e tribunais, o que pode ser objeto de importantes reflexões pessoais. Esses aspectos são facilmente observados a partir da escolha da própria profissão, o que terá suma importante na atuação forense. Trata-se do destino profissional que foi escolhido em face dos seus verdadeiros objetivos ou vocações.

Não se quer dizer que uma escolha errada seja o fator preponderante para qualificar ou desqualificar qualquer profissional, mas servirá apenas de parâmetro na atuação do indivíduo perante o foro, ou seja, um parâmetro para o temperamento e disposição do profissional em face de sua atuação em juízo ou fora dele. Para ilustrar essa idiossincrasia e como esta terá reflexo na vida do profissional do direito, é necessário recorrer a uma analogia muito singela, porém bastante contundente.

Suponha-se tratar de um juiz e um advogado atuando em suas respectivas carreiras. A carreira profissional pode ser comparada a uma longa estrada, cheia de percalços, curvas sinuosas, buracos e todas as intempéries da vida. O juiz percorreria essa estrada da maneira mais branda possível, de acordo com as suas possibilidades, em um automóvel de luxo. Seria como se entrasse em seu carro e seguisse rumo à sua vocação ou seus objetivos pessoais.

Andar nesse automóvel seria muito confortante, haja vista que estaria em seu favor o ar-condicionado de última geração, a direção hidráulica, vidros e retrovisores elétricos, teto-solar, moderno aparelho de som e todo aparato tecnológico referente a um bom automóvel. Passar por cima de um buraco nessa imensa estrada profissional seria apenas um pequeno esforço para quem tem um bom carro nas mãos. A atitude de seguir em frente, passando pelas curvas da insegurança previdenciária, dos dias fechados de uma eventual incerteza contratual e das noites obscuras da profissão, é um beneplácito de quem optar por seu cômodo assento em direção aos seus objetivos.

Vale ressaltar que não cabe criticar o caminho jurídico escolhido pelo indivíduo. A escolha de estar guiando este automóvel é tão louvável quanto difícil, pois exercer a magistratura necessita, sobretudo, de muita paciência e constância diante de todos os fatos que são opostos diariamente em juízo.

Já o advogado percorreria este caminho profissional pilotando uma motocicleta, com todos os incidentes que possam decorrer desta escolha. Assim, a carreira profissional do advogado estaria sujeita à mesma estrada em que o juiz passou com seu automóvel, mas os percalços seriam totalmente potencializados. Os buracos encontrados na estrada profissional de um advogado seriam muito mais perigosos, fazendo-o ir ao chão se não forem bem contornados. Uma pedra poderia ser um obstáculo demasiadamente temerário e qualquer chuva seria inevitável.

A analogia assenta-se nas diferenças da profissão da advocacia e da magistratura como forma de se chegar ao fim colimado pela justiça. A escolha da profissão incide na ideia do conhecimento de todos os percalços que se poderá encontrar em cada área jurídica escolhida, bem como as respectivas prerrogativas e benefícios. As profissões, no âmbito jurídico, têm suas diferenças bem definidas, a começar pelo cunho institucional e chegando, por fim, na função social de cada uma. A analogia supracitada visa fazer um paralelo entre as diferenças das profissões do juiz e do advogado, sendo uma forma de demarcar a posição de cada um no foro e estabelecer a sua respectiva função social.

Uma melhor exemplificação do que é estar guiando um automóvel (o juiz) e pilotando uma motocicleta (o advogado) é dada pelo grande jurista Piero Calamandrei, quando explicita a função de cada qual no foro.

"Quando a corte entra, todo sussurro se cala. Seu trabalho (o juiz) se desenrola longe dos tumultos, sem imprevistos e sem precipitações; você ignora a ansiedade do improviso, as surpresas de última hora; não precisa quebrar a cabeça para encontrar argumentos, porque deve apenas escolher entre os que foram encontrados por nós, advogados, que realizamos para você o duro trabalho de escavação; e, para melhor meditar sobre a sua escolha, tem o dever de sentar-se em sua cômoda poltrona, enquanto os outros homens sentam-se para descansar, para você, o período de maior trabalho." [01]

O juiz, tal como qualquer outro servidor público, tem a sua função estritamente atrelada aos dogmas estatais, com suas prerrogativas e benefícios instituídos previamente. Seria como guiar o automóvel acima aduzido, uns com o luxo e outros sem, mas com a mesma perspectiva de segurança e, sobretudo, com a repetição de atos já estabelecidos, como quem fica indiferente se o dia chove ou faz sol. Guiar este automóvel estatal significaria seguir na mesma linha de pensamento e de procedimentos diários, a exemplo de quem faz as mesmas sentenças, despachos e demais atos correlatos todos os dias.

Para muitas pessoas, este pode ser um objetivo de vida, um ideal que se perfaz ao simplesmente guiar um automóvel nas mesmas ocasiões. A segurança oferecida pelo automóvel estatal pode questionar os motivos pelos quais tantos "insanos" profissionais escolhem a "insensatez" de pilotar a motocicleta da advocacia, tal como o Easy Rider (Sem Destino), um clássico filme de 1969.

Pilotar a motocicleta da advocacia na estrada profissional da vida não é nada fácil, principalmente se considerarmos a sensação de insegurança da motocicleta em face do caminho a seguir. O advogado, enquanto piloto de motocicleta, sempre estará à mercê de chuvas torrenciais ou dilúvios homéricos, ficando sempre no olho do furacão. Ou seja, se um contrato de prestação de serviços advocatícios estiver à mercê de uma eventual condição e se esta não se perfizer por razões alheias às vontades do advogado, este terá o seu reconhecimento e esforço execrados, refletindo em causas futuras. Enquanto isso, o juiz guiará o seu automóvel, longe de qualquer eventual chuva.

Porém, a sensação de insegurança da motocicleta advocatícia é contrastada com a sensação de certa liberdade proporcionada. Nada mais reconfortante do que imaginar o vento sacudindo os cabelos e as roupas. A chuva também poderia ser vista não tanto como uma intempérie perversa, mas como uma benesse para esfriar os dias quentes, como quem jamais esperaria sair vitorioso em um difícil pleito.

A liberdade da motocicleta advocatícia faz com que o advogado não se atrele somente a um caminho diariamente, o que não quer dizer que fuja a normas e convenções sociais. É a liberdade de não ter que se atrelar a uma só linha de pensamento, com a possibilidade de criar novos caminhos jurisprudenciais. É a liberdade de escolher procedimentos adequados para cada fato, a liberdade de fazer chover a cântaros inesperados de contratos profissionais, a liberdade de abdicar um pleito temerário diante dos buracos encontrados no caminho e a liberdade de arriscar nas inovações.

O advogado, enquanto piloto desta motocicleta, escolhe o melhor caminho a seguir, sempre com prudência, em razão de estar mais exposto aos percalços da vereda profissional. São teses e antíteses da advocacia, a liberdade em contraste com a insegurança, o que torna perene a consciência do desiderato da profissão.

Cada carreira jurídica escolhida tem o seu louvável préstimo para a sociedade, sendo a eterna busca da justiça o maior objetivo perseguido. Em relação à analogia supra referida, é perfeitamente compreensível e louvável que o juiz, ou qualquer outro servidor público, guie o seu respectivo automóvel, bem como o advogado possa pilotar a sua motocicleta. A diferença na forma em que se caminha na estrada jurídica é equacionada para um único fim, qual seja, a justiça e, consequentemente, a paz social.

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Assim, não se espera que o juiz, o promotor, ou outro servidor público, sejam ligados a qualquer vínculo humano, de simpatia, de amizade ou de aproximação ao povo. Parafraseando Calamandrei, quando se fala de aproximar a justiça do povo, não se pretende, pois, fazer os juízes ou promotores descerem de suas cadeiras e mandá-los passear entre a gente, como peregrinos anunciadores do direito. Essa é a função social reservada essencialmente aos advogados. "O povo pode não conhecer seu juiz, mas deve conhecer seu advogado e ter fé nele, como num amigo livremente escolhido." [02]

Não porque se deva situar advogado como um profissional privilegiado, senão pelo que signifique esse tratamento como fator de êxito da sua missão peculiar – aproximar a justiça do povo. O advogado não é um burocrata imposto aos réus, o que impossibilitaria a compreensão humana que diz respeito à livre eleição das amizades e a confiança do povo na justiça do Estado. O advogado é escolhido livremente, como quem escolhe um amigo para ser irmão e confessor, utilizando-se da doutrina e de sua eloquência para confortar no acompanhamento da dor. Essa é a função social do advogado enquanto consciente da repercussão profissional de sua carreira.

A escolha pela advocacia está estigmatizada na consciência dos deveres, prerrogativas e percalços que cercam a profissão, sendo a obediência a esta consciência a sua função social. Desta feita, quando o advogado assume um pleito, terá obrigatoriamente que assumir a consciência de todas as vicissitudes que rodeiam a profissão, ou seja, passa a tomar consciência de que está pilotando a motocicleta e todos os incidentes que possam decorrer desta escolha.

A escolha da advocacia é a escolha da prudência e da liberdade de pilotar uma motocicleta, como na analogia alhures referida, sendo a consciência desta escolha, ou seja, a consciência da função social da profissão, que será o recurso moral para coibir ou prevenir possíveis desmandos na profissão, aproximar a justiça do povo e, consequentemente, trazer a paz social.

Enfim, a consciência da função social da advocacia será a panacéia ou a cura para todos os males da profissão. Mas, independente da função social da advocacia, cada ente do judiciário deve ter em vista a sua própria função social, para que o destino dos cidadãos não seja obscuro e a Justiça tenha momentos de glória, como dizia o grande jurista Evandro Lins e Silva:

"A Justiça tem seus momentos grandiosos e de glória. E isso depende muito dos homens que a compõem: advogados capazes, promotores com sentido exato dos seus deveres e juízes com a compreensão de que os réus são seres humanos e podem ser inocentes ou vítimas de armadilhas que o destino tece e prepara do modo mais imprevisto e desgraçado." [03]


Notas

  1. . CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um Advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1997, pág. 389.
. CALAMANDREI, Piero. Op. Cit. pág. XLVI.
  • . LINS E SILVA, Evandro. O Salão dos Passos Perdidos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Ed. FGV, 1997, pág. 107.
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    Sobre o autor
    Daniel Cavalcante Silva

    Advogado e sócio do escritório Covac Sociedade de Advogados (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília). Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). MBA em Direito e Política Tributária pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Experiência na área de Direito Tributário e Educacional, com ênfase na área de advocacia empresarial. Membro da Associação Internacional de Jovens Advogados. Vários artigos publicados no país e no exterior. Autor do Livro “O Direito do Advogado em 3D” e "Compliance como boa prática de gestão no ensino superior privado". Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas intitulado: Finanças Públicas no Estado Contemporâneo (GRUFIC). Membro da Comissão do Terceiro Setor da OAB/DF. Professor de Direito Tributário. Laureado com o Prêmio Evandro Lins e Silva, concedido pela Escola Nacional de Advocacia do Conselho Federal da OAB. Indicado como um dos “dez advogados mais admirados no setor de educação, Revista Análise Advocacia 500, 2012 e 2015”. Diversos títulos e prêmios obtidos no país e no exterior.

    Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

    SILVA, Daniel Cavalcante. "Easy rider": a difícil escolha pela advocacia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2862, 3 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19023. Acesso em: 19 abr. 2024.

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