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O garantismo penal integral.

Enfim, uma proposta de revisão do fetiche individualista

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17/05/2011 às 15:21
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O extremismo na visualização dos preceitos garantistas vem sendo concebido com o notório propósito de servir de escudo para a delinquência econômico-empresarial.

"a Justiça é dura com os pequenos delinquentes porque é mais fácil para a Magistratura proceder contra eles do que se situar contra os poderes fortes."

[01]

Ao referir-se ao movimento iluminista e seus efeitos no campo penal, SCHÜNEMANN [02] o denominou como o "Big Bang intelectual" que permitiu ao homem sair de sua culpável imaturidade. O fundamento de tal afirmação foi a então almejada busca de legitimação do sistema punitivo por meio da limitação do Estado em prol da máxima liberdade individual. Contextualmente, desde o fim da era feudal e durante os primórdios do liberalismo, a organização do Estado assentou-se na tese rousseauniana [03] acerca da existência de uma espécie de contrato social pressuposto, mediante o qual cada indivíduo cederia parcela de sua autonomia em prol da viabilidade da convivência em sociedade, que seria garantida pela autoridade do estatal, detentora, em caráter monopolístico, de potencial punitivo para controle de atividades nocivas aos interesses comunitários.

Destarte, segundo a doutrina do pacto ou contrato social, os indivíduos deixariam seu estado de natureza e passariam a viver, vantajosamente, em estado de sociedade. Isto se daria tão-somente com o fim de viabilizar a manutenção da liberdade inerente ao estado de natureza mediante limitação da vontade individual pelas regras ditadas pela vontade majoritária (pactum societatis) [04]. Fulcrado nestas premissas, Beccaria construiu o argumentos que, mais tarde, viriam a constituir a base de diversos valores arraigados no discurso criminal da atualidade. Refiro-me, especialmente, à proteção de bens jurídicos individuais como finalidade única do Direito Penal e à preservação do princípio da intervenção penal mínima e seus consectários (fragmentariedade e subsidiariedade do direito penal).

Na visão de Beccaria, somente a necessidade de um suporte coletivo para alcançar felicidade e vida digna levou os indivíduos a abrirem mão de parcela de sua liberdade. Ainda assim, isto se daria apenas na medida mínima imprescindível à preservação dos valores sociais mais relevantes, conjuntamente denominados por ele de "depósito de salvação pública". Este seria, portanto, o fundamento legitimador do poder punitivo estatal [05].

Costuma-se atribuir a denominação de Direito Penal liberal a este modelo de estruturação do ordenamento penal vislumbrado a partir do período iluminista, sendo inafastável sua vinculação à concepção política, econômica e social vigente à época [06]. Ocorre que o Direito Penal hodierno tem, sob sua indelegável responsabilidade, a tutela de novos valores e interesses jurídicos decorrentes do mundo contemporâneo, em especial os titulados pela coletividade, sendo destacáveis, dentre estes, os ligados à ordem constitucional econômico-social.

O núcleo do Direito Penal Econômico (protetor da ordem econômico-social constitucionalmente estabelecida) [07] está repleto de tipos delitivos voltados à proteção de valores chamados de difusos, coletivos, metaindividuais ou universais (i.e.: titulados por um número indeterminado e indivisível de pessoas), sendo estes consagrados recentemente, isto em se considerando os peculiares padrões temporais do mundo jurídico. Tais interesses guardam essência completamente distinta em relação aos bens jurídicos individuais resguardados pelo Direito Penal clássico.

Como já visto, os direitos fundamentais ascenderam politicamente nos fins do século XVIII com o advento das revoluções liberais nos EUA e na França, daí porque apareceram no cenário jurídico como esferas impenetráveis de autonomia individual. Modernamente, as liberdades individuais não podem mais ser vistas com tom absoluto ou contraditório para com os demais direitos fundamentais. Portanto, correta é a visão oriunda da doutrina portuguesa segundo a qual a liberdade contida nos direitos fundamentais não corresponde a uma emancipação anárquica, mas sim à auto-responsabilidade na atuação econômica e social. Por isso, também nestes campos os indivíduos não podem se considerar desligados dos valores comunitários, tendo, ao revés, o dever de os respeitar [08].

Em que pese não se tratar de tema pacificamente resolvido, há razoabilidade na defesa do acolhimento, ainda que implícito [09], do princípio da intervenção mínima do Direito Penal pelo ordenamento jurídico brasileiro. Contudo, mesmo os mais ferrenhos críticos do sistema punitivo do Estado têm se rendido à legitimidade do emprego da tutela penal quanto a valores universais inerentes à ordem econômico-social [10]. É neste contexto que se afirma, com razoabilidade, que o modelo liberal de um Direito Penal genuinamente mínimo somente poderia existir no âmbito de um Estado igualmente mínimo que não existe mais [11].

É em meio a tais circunstâncias que o movimento de cunho filosófico-jurídico conhecido como garantismo penal vem ganhando espaço, sendo, não raras vezes, invocado com ares de panacéia defensiva. Pode-se afirmar, inclusive, que se vivencia no Direito Penal contemporâneo do Brasil um autêntico fetichismo [12] sobre os direitos individuais e, mais especificamente, sobre o direito à liberdade [13]. Por outro lado, a banalização e a promiscuidade com que vem sendo tratada a teoria garantista no Brasil têm contribuído para a deturpação de seu autêntico sentido. Em verdade, o extremismo na visualização dos preceitos garantistas vem sendo concebido com o notório propósito de servir de escudo para a delinquência econômico-empresarial, expressão moderna da criminalidade do colarinho branco vislumbrada a partir terceira década do século passado.

Originalmente, aponta-se que o garantismo penal teria surgido na Europa continental como uma corrente da criminologia crítica. No entanto, a teoria garantista só veio mesmo a ganhar força na Itália, onde constituiu instrumento acadêmico-doutrinário de reação em face do uso flexível do Direito Penal pelo Poder Público. Deve-se esclarecer que, na década de 70, o governo italiano travou intenso combate a grupos políticos que se valeram de práticas tidas como terroristas para tentar emplacar suas ideias e intenções, dentre eles, as "Brigate Rose" (Brigadas Vermelhas) [14]. Na atualidade, o retorno às luzes do pensamento penal proposto na formulação garantista tem por adversários correntes tachadas como hipercriminalizadoras, tais como o movimento da Lei e da Ordem e a política de Tolerância Zero, francamente potencializados pelos ingredientes ideológicos da chamada doutrina da Defesa Social [15].

Portanto, toda a teorização consubstanciada pelo garantismo penal surgiu como esboço de resposta à emergência da legislação antiterrorista editada na Itália e na Espanha. Como bem sintetizou ARAUJO JUNIOR [16], o garantismo defende que o Direito Penal somente se legitima para restringir a liberdade individual se houver um rigoroso controle do poder normativo do Estado com respeito aos princípios da previsibilidade, segurança jurídica, igualdade e proporcionalidade. A exemplo dos iluministas que outrora tentaram limitar os abusos punitivos de governos absolutistas, o movimento garantista tentou, mais recentemente, impor limites às manifestações penais de regimes governamentais com resquícios fascistas.

O italiano Luigi Ferrajoli é tido como o maior expoente ligado à teoria do garantismo penal. Em sua obra intitulada "Diritto e ragione: teoria del garantismo penale", este autor preconizou a necessidade de observância dez princípios básicos - os quais denominou de "axiomas" - para que um determinado sistema normativo-penal venha a ser considerado garantista. Tais axiomas têm a função específica de deslegitimar o exercício absoluto do poder punitivo estatal. Seguindo este diapasão, os três significados básicos do modelo penal garantista foram sintetizados por FERRAJOLI [17] como sendo, simultaneamente, um parâmetro de racionalidade, de justiça e de legitimidade da intervenção punitiva.

Vistas estas premissas, nota-se que, no cotidiano da jurisdição criminal brasileira, tem ocorrido frequentemente uma cega e mecanizada importação da tese garantista. Pode-se afirmar até mesmo que as ideias embutidas no garantismo penal têm sido muito mais citadas do que efetivamente estudadas e conhecidas a fundo, inclusive pela parcela da jurisprdência dos Tribunais Superiores brasileiros [18] que tem aplaudido e fomentado o denominado "garantismo à brasileira" [19]. No formato em que vem sendo concebido e aplicado por parte da doutrina e jurisprudência brasileiras, esse "garantismo à brasileira" vem a confirmar a assertiva de Massimo BRUTTI [20], direcionando-se predominantemente aos crimes do colarinho branco ao passo que, para os delitos comuns, resta o incremento do rigor penal. A falta do devido aprofundamento teórico se faz sensível, a começar, pela ausência de análise ou mesmo menção sobre o comentado contexto histórico-político de formação da teoria garantista.

Na introdução à aludida obra de Ferrajoli, Norberto BOBBIO [21] já chamava a atenção para a corajosa batalha vivida pelo autor em meio a debates políticos e artigos jornalísticos tidos e havidos no seio da explosão de violência entre o governo italiano e grupos políticos opositores. A batalha de Ferrajoli, citada por Bobbio, acabou por dar origem à sua festejada tese. Portanto, o garantismo penal foi construído no contexto de uma legislação de emergência elaborada em um Estado que buscava reprimir atos terroristas. Mesmo considerando este quadro de exceção, é imprescindível alertar que Ferrajoli jamais defendeu absurdos, tais como o engessamento interpretativo do Poder Judiciário em prol de uma legalidade pétrea [22].Genuinamente, o garantismo penal não tem qualquer relação com o mero legalismo, formalismo ou processualismo. Percebe-se apenas que o modelo normativo garantista preconiza um programa limitativo da intervenção penal a ser centralizado na tutela de direitos individuais [23].

Chama a atenção, por exemplo, a pouca divulgação sobre o fato de Ferrajoli ter reconhecido que, ao lado de uma massiva deflação das proibições legais, um programa de Direito Penal mínimo ou garantista tem também de voltar seus holofotes para a tutela de bens fundamentais, o que implica, necessariamente, em uma "maior penalização de condutas, hoje não adequadamente proibidas nem castigadas" [24]. Portanto, até mesmo o grande artífice da teoria garantista admite que há campos socialmente relevantes nos quais o legislador penal foi omisso ou extremamente brando, o que se faz mais marcante no específico setor dos interesses titulados pela coletividade. Trata-se de realidade inaceitável, haja vista que estes valores não guardam relação de antagonismo ou de subsidiariedade para com os direitos e garantias individuais. Ao contrário, há - ou, ao menos, deveria haver - uma salutar relação de simbiose e complementariedade entre os mesmos [25].

O tradicional garantismo negativo sustenta-se na função clássica do Direito Penal, denominada de função liberal-iluminista, ao passo que a visão mais atual preconiza a existência de um duplo viés (negativo e positivo) na teoria garantista. Este último aspecto é sustentado no neoconstitucionalismo [26] - locus da própria construção da moderna teoria do bem jurídico-penal [27] - e numa nova visão sobre o princípio da proporcionalidade. Neste diapasão, o princípio da proporcionalidade, que orienta a avaliação da compatibilidade constitucional dos atos do Poder Público (sobretudo, os normativos), possui duas interfaces: de um lado, a vedação do excesso e, de outro, a proibição de proteção deficiente. É exatamente o mandamento proibitivo de proteção deficiente [28] que impede que o legislador penal renuncie arbitrariamente ao emprego do Direito Penal e aos efeitos protetores que dele derivam quando diante de bens jurídicos de inquestionável magnitude [29].

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Muitos dos problemas atuais do Direito Penal decorrem da transformação pela qual vem passando a própria criminalidade vivenciada na sociedade contemporânea. Sensatas são as palavras de CARVALHO [30] quanto à constatação de que a criminalidade que se impõe hoje não é mais a velha criminalidade de subsistência que há vinte anos sustentava a seletividade da Justiça Criminal, cabendo concluir que a aludida mutação na questão criminal abrange a emergência de novos agentes (poderes criminais - criminalidade organizada) e novas formas de criminalidade (crimes do poder - criminalidade econômica e financeira), obrigando cientistas e políticos a repensarem radicalmente a efetividade das técnicas de tutela e garantia.

É importante salientar que se trata de tema que vulnera interesses de grupos poderosos, sendo esta uma circunstância cuja influência não pode ser desconsiderada no âmbito da discussão acadêmica [31]. Ademais, é interessante notar que todo este esforço contrário ao estabelecimento da tutela penal em face dos abusos cometidos no âmbito econômico-empresarial surge, com fachada falsamente garantista, exatamente no momento histórico em que o Direito Penal começa a abordar não só os micro-infratores de outrora (em regra, negros, miseráveis e analfabetos), mas também a macro-delinquência no seio da qual avultam criminosos dotados de grande potencial econômico-político e infrações de larga nocividade social.

Neste aspecto, há que se manifestar concordância com a percepção de MORAES FILHO [32] que, textualmente, asseverou ser curiosa a coincidência temporal entre a exaltação do unidirecional do garantismo penal (e dos chavões corolários: descriminalização, despenalização e desjudicialização) e a fase contemporânea na qual a ciência penal passa por louvável processo de reequilíbrio.

Se o amor extremado a ideologias jamais constituiu fundamento confiável para qualquer teoria, não é menos real o fato de que a recente emergência de um pseudo-garantismo tem o evidente propósito de proteger da incidência da lei penal toda uma classe de agentes que sempre gozou - e, de certa forma, ainda goza - das benesses do aparato punitivo estatal. A teoria garantista parte de uma visão pessimista das relações de poder, onde o Estado figura como entidade intrinsecamente má, o que leva a uma ingênua concepção do homem como "bom selvagem" [33]. Pois é a esta equivocada premissa que se contrapõe a escorreita advertência de BOBBIO, segundo o qual: "não é verdade que o aumento da liberdade seja sempre um bem ou o aumento do poder seja sempre um mal." [34]

Sob todos os aspectos, é lapidar o alerta feito por SCHÜNEMANN [35] de que o Direito Penal foi historicamente concebido com dois objetivos fundamentais: proteger interesses privados individuais e ter por clientela as camadas mais pobres da população. Portanto, há premente necessidade de revisão deste padrão odioso como decorrência das novas demandas da sociedade. No mesmo sentido, é robusta a fundamentação de SARLET [36], segundo o qual, se resumido em sua dimensão meramente negativa, o movimento garantista acaba privilegiando criminosos poderosos, deixando imunes delitos de elevado potencial ofensivo ao interesse público. Seja ele advindo do Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, não há dúvida de que este caminho hermenêutico é inconstitucional à luz da teoria do dever estatal de proteção (eficiente e efetiva) a todos os interesses fundamentais, inclusive os titulados pela coletividade.

Experimenta-se na atualidade a era do Direito Penal Constitucional, sendo certo, portanto, que o sistema punitivo deve ser enxergado sob os ditames da Carta Magna. Neste contexto, não se pode olvidar o acolhimento constitucional de direitos fundamentais de todas as espécies, gerações ou dimensões, e não somente de direitos individuais ligados ao binômio liberdade-propriedade. Não há liberdades ou direitos absolutos e assim ocorre para o bem da subsistência harmoniosa em sociedade [37].

O modelo penal garantista-individualista puro constituiu ideologia jurídica fundada nos pilares do Direito Penal liberal, cuja existência pretendia ser justificada na necessidade de preservação da segurança jurídica do indivíduo e não no interesse do Estado ou da comunidade. O cogente aperfeiçoamento da noção garantista passa pela compatibilização da proteção a todas as gerações de direitos humanos como condição para seu reconhecimento pelo Estado, sob pena de indevida institucionalização de um "garantismo autista" [38]. A conjugação das duas vertentes de proteção aos direitos fundamentais conduzirá à formação de um saudável "garantismo penal integral" [39], o que não só otimizará a proteção do indivíduo contra eventuais irracionalidades punitivas por parte do Estado, mas, com igual vigor, também permitirá o resguardo eficaz dos anseios da sociedade.

A própria validez da tese garantista está em boa parte ligada à reconstrução da referida tese sob as luzes da proporcionalidade em seu duplo viés, de modo a que se possa garantir, na esfera jurídico-penal, respostas adequadas aos avanços da criminalidade atual [40]. A abolição do Direito Penal e tendências assemelhadas jamais integraram a pauta autenticamente garantista. O Estado Democrático de Direito é comprometido com os direitos fundamentais de todas as dimensões e não apenas com a liberdade individual e, muito menos, com o abuso desta. Neste aspecto, é flagrante a atualidade dos ensinamentos de HUNGRIA [41] que, em caráter visionário, assim prenunciou: "(...) a democracia liberal protege os direitos do homem e não os crimes do homem. Maldita seria a democracia liberal, se se prestasse a uma política de cumplicidade com a delinqüência."

Outrossim, deve-se chamar a atenção para o fato de que a teoria do garantismo penal não é majoritária na doutrina estrangeira, rejeição esta que é especialmente sensível nos países da Europa Continental. Ao revés, o garantismo encontrou perfeito ambiente de difusão numa América Latina assolada por governos autoritários que, a partir da década de 60, geraram, em especial no Brasil e na Argentina, vigorosa restrição penal a direitos individuais [42]. Parece razoável defender que o erro anterior não deve justificar um outro atual, de mesmas proporções ou, quiçá, até maiores. Na correta ilustração de MENDONÇA [43], o pêndulo que, na época da ditadura, estava voltado para a suposta proteção do Estado em prejuízo das garantias individuais, não pode oscilar totalmente para o outro lado, descurando do interesse comunitário.

Ao discorrer sobre a necessidade de levar a sério os direitos econômico-sociais fundamentais, CANOTILHO [44] também já advertiu sobre os riscos contidos no "hipergarantismo" que, ao erigir-se como cultura dominante, tem se convertido em ideolologia jurídica de suporte de organizações criminosas. No plano do Direito Penal, as refrações do hipergarantismo explicam também a superlativização da cultura iluminista-liberal centrada na proteção do indivíduo (criminoso) com quase completo desprezo pela vítima que, no caso específico do Direito Penal Econômico, é a própria sociedade [45].

Embora as circunstâncias históricas e político-sociais de sua origem expliquem em parte o paradigma garantista, a exacerbação absoluta das chamadas liberdades burguesas não está imune de severas críticas que, em última análise, colocam em xeque as próprias bases do garantismo penal unidimensional. Faz-se necessária, portanto, a adaptação e atualização desta teoria às demandas da sociedade contemporânea, mais especificamente, em atenção ao caráter intrinsecamente complementar das diversas gerações de direitos humanos [46]. O garantismo penal pode e deve acomodar a proteção de todas as categorias de direitos fundamentais que, em tese, complementam a noção de liberdade, sem que se possa, com isso, cogitar sobre um ilusório prejuízo ao núcleo essencial representado pelas conquistas liberais [47].

Aliás, resta quase esquecido que a necessidade de convivência harmônica entre os direitos fundamentais de cunho individual e coletivo é expressamente prevista no art. 32 do Pacto de São José da Costa Rica [48], que deixa patentes a existência de deveres de solidariedade, isto é, de obrigações do indivíduo para com a comunidade na qual se encontra inserido. Logicamente, isto induz à legitimidade da limitação dos direitos de cada pessoa pelas exigências do bem comum no seio de uma sociedade verdadeiramente democrática.

No fundo, o modelo garantista nada mais expressa senão a firme intenção de levar a sério os direitos fundamentais como um todo e foi esta a razão pela qual Luigi Ferrajoli foi chamado de "fundamentalista dos direitos fundamentais" [49]. No entanto, como visto, a tese deste autor italiano é construída no seio de um contexto peculiar e, por conseguinte, retrata uma concepção específica sobre a teoria dos direitos fundamentais, uma visão unidirecional [50] onde os direitos fundamentais são concebidos apenas com eficácia negativa em relação às funções estatais [51].

O Direito Penal precisa galgar maior efetividade no enfrentamento da criminalidade econômico-empresarial e o caminho para tanto, ao contrário do que prega parcela da doutrina e da jurisprudência, não passa por discursos autoritários, arbitrários, usualmente confundidos com o Direito Penal do inimigo ou coisa que o valha. Tem-se aqui um ranço deixado pela época em que o Direito Penal era visto como a Magna Carta do criminoso [52], ou seja, um ordenamento regrador dos limites do combate à delinquência. Sob todos os aspectos, confundir o estabelecimento da tutela penal sobre os valores mais relevantes da ordem sócio-econômica com tais movimentos configura postura equivocada e constitucionalmente desatualizada [53]. Na contramão da evolução do ordenamento penal-constitucional ao redor do mundo, as recorrentes notícias acerca da resistência jurisprudencial dos Tribunais Superiores quanto à efetividade da jurisdição criminal no âmbito da delinqüência econômico-empresarial permitem vislumbrar a vigência de uma espécie de Era Lochner [54] do Direito Penal Econômico brasileiro.

Como acentuam BEDÊ JÚNIOR e SENNA [55], a preconceituosa oposição à modernização dos ideais garantistas acaba por gerar uma espécie de "síndrome de Alice", como se, assim como a citada personagem, estivéssemos no país das maravilhas, onde não existem indivíduos movidos por cabal descaso para com os valores sociais, nem organizações empresariais criminosas com poder suficiente para comprometer a estrutura do Estado e o bem-estar da coletividade [56].

Ao criticar o radicalismo individualista de alguns quanto à compreensão da teoria garantista, FISCHER [57] asseverou que a tarefa do moderno Direito Penal consiste em que sejam adotados todos os mecanismos para garantir que as funções sociais se mostrem eficazes na garantia do bom convívio comunitário. Este mesmo autor proferiu certeira afirmação [58] no sentido de que, à luz de uma ordem constitucional com feições democráticas e sociais, fator este exponenciado pelo princípio da solidariedade, é fundamental superar-se a análise do Direito Penal pelo ângulo puramente individual, estando em voga delitos econômicos que atingem frontal e intensamente interesses da coletividade.O novo paradigma normativo que aqui se defende decorre da assunção definitiva de que os direitos fundamentais não mais se resumem a escudos frente ao poder estatal, mas estendem-se à demanda pela proteção do Estado em face de ataques a bens jurídicos socialmente fundamentais oriundos de quaisquer pessoas.

O que foi dito sobre o movimento garantista leva à conclusão de que o Direito Penal não deve restringir-se à preservação dos dez axiomas proclamados pela particular visão de Luigi Ferrajoli sobre os direitos fundamentais. No contexto da vigente Constituição de 1988 e do Estado Democrático de Direito por ela sustentado, a função do Direito Penal ultrapassa estes limites para o fim de abranger, sempre que se fizer necessário, o resguardo de todas as categorias de direitos fundamentais, qualquer que seja sua geração ou dimensão. Na perspectiva da moderna hermenêutica dos direitos fundamentais e dos textos normativos a eles concernentes (constitucionais, legais e convencionais), não cabe afastar as tradições em bloco, mas também não se deve aceitá-las acriticamente, referendando seus vícios e distorções [59].

Por todo o exposto, não se está aqui a atacar pura e simplesmente o modelo garantista de Direito Penal, mas tão-somente defendendo-se a necessidade de que se promova, nos âmbitos científico e pragmático, um "processo de desfetichização" [60] a fim de que a proposta garantista seja finalmente enxergada e aplicada em sua integralidade, num contexto constitucionalmente atualizado no qual é legítima a tutela penal de interesses metaindividuais. Faz-se impositiva uma releitura ampliativa do sistema garantista de modo a que se atinja o citado garantismo integral. Filio-me ao entendimento [61] que inclui, no campo os bens jurídicos dignos de tutela penal, valores ligados à ordem constitucional econômico-social não vinculados diretamente a pessoas determinadas, mas sim à toda a coletividade (v.g.: a higidez da ordem tributária e previdenciária, a preservação do meio ambiente e do equilíbrio do mercado de capitais). Em essência, tais interesses jurídicos guardam liame estreito com os princípios mais importantes da vigente Constituição da República e o menosprezo destes pelo Estado, a pretexto de atender aos reclamos de um "garantismo hiperbólico monocular" [62], descumpre o princípio da proporcionalidade em seu aspecto de vedação à proteção deficiente dos direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Vlamir Costa Magalhães

juiz federal no Rio de Janeiro, professor de Direito Constitucional

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Vlamir Costa. O garantismo penal integral.: Enfim, uma proposta de revisão do fetiche individualista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2876, 17 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19127. Acesso em: 22 dez. 2024.

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