4. DETENÇÃO E PRISÃO CAUTELAR EM FACE DE TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR
Consoante já referenciado, o artigo 5º, inciso LXI da Constituição Federal prevê que: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei." (grifo nosso). Tal disposição, consoante já foi verificado no presente trabalho, autoriza que se cerceie a liberdade dos militares sem a necessidade de ordem de autoridade judiciária, quando do cometimento de transgressões militares.
Entretanto, a Carta Mãe também garante que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal" e "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes" (LIV e LVI do art. 5º CF). Dessa forma, não resta claro sobre a possibilidade de se proceder a pronta intervenção, prendendo disciplinarmente e de forma cautelar o militar das Forças Armadas que transgrediu, em tese, as normas disciplinares militares.
4.1 DEVIDO PROCESSO LEGAL: O CONTRADITÓRIO, A AMPLA DEFESA E OUTRAS GARANTIAS INDIVIDUAIS
A origem das garantias de direitos individuais remonta-se à Carta Magna, com a qual os líderes feudais ousaram entregar a João Sem Terra, rei da Inglaterra, em 1215. De Lá para cá, a revolução de Oliver Crownwel e Thomas Fairfax, em 1642, quando decapitaram o rei Carlos I, porque não queria aceitar as limitações de poder, que, anos mais tarde vimos cristalizar na Revolução Francesa, e na promulgação da Constituição dos Estados Unidos de 1789, com as dez emendas capitaneadas por Thomas Jefferson em 1791.
O devido processo legal não significa apenas a observância do procedimento disciplinado para a realização de determinado ato administrativo, para se evitar sua nulidade. Possui abrangência muito maior, que pode ser traduzida pelas garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, da igualdade das partes, da legalidade das provas, da imparcialidade do julgador, do duplo grau de jurisdição, da presunção de inocência, entre outras.
SILVA (1999, p. 433) ao tratar do direito ao devido processo legal diz que "combinado com o direito de acesso a justiça (art. 5º, XXV) e ao contraditório e a plenitude de defesa (art. 5º LV), fecha o ciclo das garantias processuais.
Por ampla defesa, entende-se o asseguramento que é dado ao réu de condições que lhe permitam trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade, ou mesmo de omitir-se ou calar-se, se entender necessário. O contraditório é a própria exteriorização da ampla defesa, pois a todo ato produzido pela acusação, caberá igual direito de defesa de opor-se-lhe ou dar-lhe a versão que melhor se apresente, ou, ainda, de fornecer uma interpretação jurídica diversa da que foi dada pela outra parte. O princípio do contraditório é decorrência do antigo brocardo latino audiatur et altera pars, que significa que ninguém pode ser acusado sem ser ouvido (ouça-se também a parte contrária). O processo latu sensu, como conjunto de atos, deve ser estruturado contraditoriamente, como imposição ao devido processo legal que é inerente a todo sistema democrático onde os direitos do homem encontrem garantias eficazes e sólidas. Clara manifestação do Estado Democrático de Direito, a garantia do contraditório se traduz na ciência bilateral dos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, possibilidade de atuação das partes na formação da convicção do julgador.
BUENO FILHO (1994, p. 46-47) a esse respeito leciona que:
Portanto, a cláusula due process of law só tem sentido e efetividade se a garantia do processo não for meramente formal, mas real, com uma série de regras assecuratórias da defesa e presidido por um juiz revestido das garantias pré-faladas.
Nesse sentido, traz-se a lume a jurisprudência a seguir:
ADMINISTRATIVO. MILITAR. PUNIÇÃO DISCIPLINAR SEM OBSERVÂNCIA DO DIREITO DO TRANSGRESSOR AO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. ANULAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO. DECRETO Nº 88.545/83, ART. 26.
I – O autor ajuizou ação contra a União, objetivando a anulação do ato administrativo que lhe impôs punição de 10 (dez) dias de prisão simples, em decorrência do desaparecimento de uma embarcação que se encontrava sob sua guarda, quando do exercício das funções de Contra-Mestre.
II – O autor foi punido sem que fosse instaurada sindicância e/ou inquérito para apuração dos fatos, como determina o art. 26 do Decreto 88.545/83, e sem que lhe tenha sido facultado o contraditório e a ampla defesa.
III – Correta a sentença que anulou a punição aplicada pela autoridade militar.
IV – Descabida a condenação da União em danos morais, no caso, visto que com a anulação do ato administrativo e o conseqüente cancelamento das anotações nos assentamentos funcionais do autor, teve ele restabelecida a sua imagem perante a Corporação Militar. Demais disso, o autor não nega os fatos, sendo certo que a anulação do ato administrativo deu-se em face de irregularidade formal.
V – Votos divergentes: um entendendo que seria cabível indenização por danos morais, no caso; outro entendendo que a competência para apreciar a ilegalidade do ato punitivo seria da Justiça Militar.
VI – Apelação da União e remessa necessária improvidas. Apelação do autor improvida.
(TRF/2 – AC 350.176/RJ, T5, DJ 26.08.2008, p. 223)
Parte da doutrina entende que qualquer disposição normativa que restrinja o devido processo legal e seus corolários do contraditório e da ampla defesa caracteriza a verdade sabida e que, portanto estaria eivada pela inconstitucionalidade.
Para LAZZARINI (2000, p. 16), a verdade sabida está extirpada de nosso ordenamento jurídico, conforme explica:
Predomina, hoje, o entendimento, entre os estudiosos do poder disciplinar, de estar vedado a aplicação de sanção disciplinar pela ‘verdade sabida’, diante da norma constitucional do art. 5.º, inciso LV, da Constituição da República que assegura e exige que, nos processos administrativos, ao acusado em geral seja deferido o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, com o que se desnaturou, por completo, a "verdade sabida".
Conceitualmente, a verdade sabida indica o conhecimento de fato ilícito notório por quem seja competente para julgar o caso e aplicar a punição correspondente, pela evidência, dispense qualquer outra apuração.
Entretanto, não é demais lembrar que o STF tem se manifestado, constantemente no sentido de que as garantias de direitos individuais não são absolutas, mas sim, relativas, dependendo do momento em que colidem com outros interesses maiores da nação. Nenhum direito constitucional é absoluto, pois tem que conviver com os demais. Nesse sentido:
Os direitos e garantias individuais não têm caráter absoluto. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros." (MS n.° 23.452, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 12/05/00).
4.2 PRISÃO CAUTELAR
Nas lições de RANGEL (2004, p. 581), a "prisão cautelar é uma espécie de medida cautelar, ou seja, é aquela que recai sobre o indivíduo, privando-o de sua liberdade de locomoção, mesmo sem sentença definitiva" Assegura ainda, o mesmo mestre que "a prisão provisória ou cautelar não pode ser vista como um reconhecimento antecipado da culpa, pois o juízo que se faz, ao decretá-la, é de periculosidade e não de culpabilidade".
Para LACERDA (1998, p. 15):
A finalidade do processo cautelar consiste em obter segurança que torne útil e possível a prestação jurisdicional de conhecimento ou de execução. Nesta perspectiva, três necessidades podem surgir: a de garantir-se a prova, a de assegurar-se a execução quanto aos bens e a de outorgar-se desde logo a antecipação provisória e necessária.
MARQUES (1965, p. 23) preleciona que:
A prisão cautelar tem por objeto a garantia imediata da tutela de um bem jurídico para evitar as conseqüências do ‘periculum in mora’. Prende-se para garantir a execução ulterior da pena, o cumprimento de futura sentença condenatória. Assenta-se ela num juízo de probabilidade; se não houver probabilidade de condenação, a providência cautelar é decretada a fim de que não se frustrem a sua execução e seu cumprimento.
CAPEZ (1999, p. 227/228) ensina que esta modalidade de prisão, de natureza cautelar, é "destinada a assegurar o bom desempenho da investigação criminal, do processo penal ou da execução da pena, ou ainda a impedir que, solto, o sujeito continue praticando delitos. Depende do preenchimento do periculum in mora e do fumus boni iuris."
Os próprios constitucionalistas, a exemplo de Alexandre de Moraes (2006, p.103), já manifestaram-se quanto à validade (em sentido amplo) das prisões cautelares:
A consagração do princípio da inocência, porém, não afasta a constitucionalidade das espécies de prisões provisórias, que continuam sendo, pacificamente, reconhecida pela jurisprudência, por considerar a legitimidade jurídico-constitucional da prisão cautelar, que, não obstante a presunção júris tantum de não-culpabilidade dos réus, pode validamente incidir sobre seu status libertatis. Dessa forma, permanecem válidas as prisões temporárias, preventivas, por pronúncia e por sentenças condenatórias sem trânsito em julgado.
O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, ao proferir sua decisão, ainda em sede de liminar, no Habeas Corpus n. 80.719-SP, que teve como Paciente Antônio Marcos Pimenta Neves, afirmou:
É inquestionável que a antecipação cautelar da prisão –qualquer que seja a modalidade autorizada pelo ordenamento positivo (prisão temporária, prisão preventiva ou prisão decorrente da sentença de pronúncia) - não se revela incompatível com o princípio constitucional da presunção de não-culpabilidade (RTJ 133/280 - RTJ 138/216 -RT 142/855 - RTJ 1421878 - RTJ 148/429 - HC 68.726-DF, Rei. Mm. NÉRI DA SILVEIRA).
Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar - que não se confunde com a prisão penal (carcer ad poenam) - não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar "em beneficio da atividade desenvolvida no processo penal" (BASILEU GARCIA, "Comentários ao Código de Processo Penal", vol. 11117, item n. 1, 1945, Forense).
Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar -considerada a função processual que lhe é inerente - não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da prisão preventiva, daí resultando grave comprometimento do princípio da liberdade.
Essa asserção permite compreender o rigor com que o Supremo Tribunal Federal tem examinado a utilização, por magistrados e Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir a subsistência dessa excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente hipótese que possa justificá-la."(STF, HC n. 80.719-SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ. 23.03.2001).
O Código de Processo Penal Militar (CPPM) contempla três modalidades de prisão provisória: a prisão em flagrante (Art. 243), a detenção do indiciado (Art. 18) e a prisão preventiva (Art. 254).
Por fim, cumpre destacar que o tratamento constitucional dado ao crime propriamente militar e à transgressão disciplinar militar é semelhante em razão da identidade de natureza de ambos os institutos. Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio – ou, no bom vernáculo, onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito. Portanto, não se pode negar a existência de analogia entre o Direito Penal (material e processual) Militar e o Direito Administrativo Disciplinar Militar, uma vez que os princípios que norteiam os primeiros encontram aplicabilidade também nesse último ramo.
4.3 DETENÇÃO E PRISÃO CAUTELAR DISCIPLINAR
A detenção ou prisão cautelar do militar transgressor, medida prevista nos Regulamentos Disciplinares Militares, trata-se, inegavelmente, de questão deveras controvertida em face da nova ordem Jurídica formada pela Constituição Cidadã, e, por isso, suscita discussões apaixonadas entre operadores do Direito Judiciário Militar pátrio.
De acordo com os art. 12 e 35 do Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002 - Regulamento Disciplinar do Exército (R-4 ou RDE) – depreende-se que:
Art. 12. Todo militar que tiver conhecimento de fato contrário à disciplina, deverá participá-lo ao seu chefe imediato, por escrito.
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§ 2º Quando, para preservação da disciplina e do decoro da Instituição, a ocorrência exigir pronta intervenção, mesmo sem possuir ascendência funcional sobre o transgressor, a autoridade militar de maior antigüidade que presenciar ou tiver conhecimento do fato deverá tomar providências imediatas e enérgicas, inclusive prendê-lo "em nome da autoridade competente", dando ciência a esta, pelo meio mais rápido, da ocorrência e das providências em seu nome tomadas.
§ 3º No caso de prisão, como pronta intervenção para preservar a disciplina e o decoro da Instituição, a autoridade competente em cujo nome for efetuada é aquela à qual está disciplinarmente subordinado o transgressor.
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Art. 35. O julgamento e a aplicação da punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade, para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista o benefício educativo do punido e da coletividade.
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§ 3º O militar poderá ser preso disciplinarmente, por prazo que não ultrapasse setenta e duas horas, se necessário para a preservação do decoro da classe ou houver necessidade de pronta intervenção. (grifos nossos)
No mesmo sentido se conduz o art. 41 do Decreto nº 88.545, de 26 de julho de 1983 - Regulamento Disciplinar da Marinha (RDMar):
Art. 41 - O superior deverá também dar voz de prisão imediata ao contraventor e fazê-lo recolher-se à sua Organização Militar quando a contravenção ou suas circunstâncias assim o exigirem, a bem da ordem pública, da disciplina ou da regularidade do serviço. (grifos nossos)
O art. 34 do Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975 - Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER) – prevê que nenhuma punição será imposta sem ser ouvido o transgressor e sem estarem os fatos devidamente apurados. Entretanto, no mesmo artigo está previsto que:
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2 - Nenhum transgressor será interrogado ou punido enquanto permanecer com suas faculdades mentais restringidas por efeito de doença, acidente ou embriaguez. No caso de embriaguez, porém, poderá ficar desde logo, preso ou detido, em benefício da própria segurança, da disciplina e da manutenção da ordem.
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5 - Os detidos para averiguações podem ser mantidos incomunicáveis para interrogatório da autoridade a cuja disposição se achem. A cessação da incomunicabilidade depende da ultimação das averiguações procedidas com a máxima urgência, não podendo, de qualquer forma, o período de incomunicabilidade ser superior a quatro dias. (grifos nossos)
Entre os que se insurgem contra esta possibilidade de prisão cautelar, destaca-se CUNHA (2004, p. 30), o qual afirma que :
Se se determina a prisão do militar, por que a ocorrência exige pronta intervenção para preservar a disciplina e o decoro, e em sede de processo a posteriori perante a autoridade competente justifica a falta não se terá mais como livrá-lo do dano sofrido.
SANTANA (2006, p. 35), por sua vez, ao explicar o sentido do artigo 5º, inciso LXI, da Carta, a fim de defender a legitimidade das prisões cautelares disciplinares, leciona que:
E tal entendimento vem da certeza de que, se o objetivo da Carta Magna foi acabar com as detenções para averiguações, ou correcionais que autoridades policiais praticavam a torto e a direito, e que agora constituem, no mínimo, crime de abuso de autoridade, quando o assunto for o exercício do poder disciplinar em corporações militares e a apuração de delitos de natureza militar própria, entenderam os constituintes pátrios que a questão merecia maior cuidado, independentemente do fato de que, para a aplicação de qualquer sanção disciplinar, o único meio possível é o processo disciplinar onde sejam assegurados ao infrator a mais ampla defesa e o contraditório, garantias essas, entretanto, que comportam exceções quando o fato exige ação imediata da autoridade, não sendo por isso absolutas, e nem poderiam ser, exceto se se tratar a ressalva constitucional de norma sem sentido, fato inaceitável em qualquer Estado que se diga legal e democrático de direito.
Mas de quais exceções se fala? Lógico que das detenções cautelares de indiciados investigados por crimes militares próprios e das detenções prévias de transgressores da disciplina militar, quando imprescindível sua manutenção nas dependências do quartel até uma avaliação pessoal e preliminar do seu comandante de conduta sua contrária aos regulamentos disciplinares. (grifos no original)
Encontra razão o autor em sua afirmação. Consoante se comprovou no decorrer da pesquisa, os direitos e garantias constitucionais de determinado indivíduo não são absolutos, pois têm que conviver com os demais princípios constitucionais, bem como com os direitos dos demais indivíduos. A detenção/prisão cautelar administrativa, embora seja medida restritiva das prerrogativas individuais ou coletivas, respeita os termos estabelecidos pela própria Constituição, pois resguarda outro interesse maior da nação que é o de garantir o perfeito funcionamento das Forças Castrenses, ao interromper, de forma peremptória e tempestivamente, ação ou omissão que maculem de forma inexpugnável a hierarquia e a disciplina
Outra consideração a se fazer é a de que a prisão processual provisória não restringe o devido processo legal e seus corolários do contraditório e da ampla defesa, nem tampouco caracterizaria a verdade sabida, ou o princípio da inocência, conforme demonstrado. A detenção/prisão cautelar administrativa busca resguardar, assim como as medidas cautelares penais, institutos que jamais podem ser "transacionados", entre delas a honra e a preservação dos princípios de sustentação das Forças Armadas (a hierarquia e a disciplina), em face de suas missões institucionais. A detenção/prisão cautelar disciplinar deve ter o mesmo tratamento que a processual, uma vez que onde se depara razão igual à da lei, ali prevalece a disposição correspondente, da norma referida. Tais hipóteses administrativas restritivas de liberdade, assim como sua assemelhada processual, não objetiva infligir punição ao militar que sofre a sua decretação, mas tão somente fazer cessar a ocorrência exija pronta intervenção, evitando mal maior.
ASSIS (2007, p. 158) entende como perfeitamente possível essa modalidade de prisão administrativa militar de natureza cautelar pelas seguintes razões:
A primeira, segundo a qual a medida cautelar encontra amparo constitucional, exatamente no artigo 5º, LXI, que excepciona da exigência do estado de flagrância e da ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, os casos de transgressão disciplinar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
A segunda, porque a medida se insere dentro do poder disciplinar que é comum às instituições militares e, do dever de ofício que as autoridades militares que presenciam ou tomam conhecimento de infração disciplinar de natureza grave tem, de intervir prontamente e de forma enérgica.
O artigo 5º, LXI da Constituição Federal recepcionou os Regulamentos disciplinares militares, por meio do art. 47 do Estatuto dos Militares. Por esta mesma razão, ficou recepcionado o art. 41 do Decreto nº 88.545, de 26 de julho de 1983 - Regulamento Disciplinar da Marinha (RDMar), o art. 34 do Decreto nº 76.322, de 22 de setembro de 1975 - Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER) e não há também em se falar em inconstitucionalidade dos art. 12 e 35 do Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002 - Regulamento Disciplinar do Exército (R-4 ou RDE), que atua no mesmo sentido dos dois primeiros regramentos.
SANTANA (2008, p. 28-29) ao dissecar cada modalidade das prisões provisórias castrenses, inclui aí a detenção prévia do transgressor. Ao abordar a aplicabilidade da detenção prévia do transgressor, exemplifica:
... volta e meia, fatos novos reacendem a discussão em torno de sua aplicabilidade, a exemplo da decisão tomada por dois oficiais servindo em um batalhão PM da Polícia Militar do Estado da Bahia, e que chegou ao conhecimento do Ministério Público através de "reclamação" que fez um soldado PM, acusando os ditos oficiais de tê-lo deixado detido durante um fim-de-semana no quartel, à disposição do comandante da unidade. O que disse o soldado na Promotoria de Justiça local: "encontrava-se na Sala de Meios do batalhão carregando arma e equipamento para o serviço para o qual estava escalado, quando a graduada responsável pela distribuição do material avisou-o que a escala tinha mudado, e que ele passou para o serviço do policiamento ostensivo motorizado. Inconformado, externou seu descontentamento entabulando uma discussão com a superiora hierárquica. Pela madrugada, ainda em serviço, avisou-o o oficial de operações que ele estava preso, sem explicar as razões, e quando ao fim da jornada se apresentou para devolver o material carregado, ouviu de outro oficial que estava "detido à disposição do comandante da unidade" por ter ofendido uma graduada", recolhendo-o à guarda do quartel onde permaneceu até ser solto por determinação do major subcomandante, que assim procedeu porque entendeu que sua detenção era ilegal e abusiva".
Provavelmente teve o órgão local do Ministério Público o mesmo entendimento do subcomandante da unidade PM porque, de imediato, instaurou um Procedimento Administrativo de sua competência para apurar os fatos, concluindo seu feito investigatório acusando os oficiais de prática de rigor excessivo, crime militar próprio, razão da remessa dos seus autos ao órgão do Ministério Público que oficia junto a Justiça Militar Estadual, e uma vez remetido à avaliação do promotor de Justiça Militar, este terminou por requerer seu arquivamento, e o fez mediante o convencimento de que os oficiais em questão, nenhum crime praticaram.
É que, segundo os fundamentos esboçados no seu pedido de arquivamento dirigido ao juiz de Direito Militar, a decisão dos oficiais em manter o soldado "X", um transgressor da disciplina militar, detido à disposição do comandante da unidade, não estava em desalinho com o ordenamento jurídico, já que a detenção prévia do transgressor da disciplina castrense à disposição do comandante, constitui matéria regulada pelo Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, e em razão da sua reserva legal no Direito Administrativo Militar, embora polêmica, tornou-se ela aplicável no caso em análise, particularmente porque a conduta do miliciano "representante" ofendia, gravemente, o respeito hierárquico, atingindo, sem dúvida, os pilares da hierarquia e da disciplina militar, razão mais do que justa para mantê-lo previamente detido à disposição do comandante da unidade.
O pedido foi acatado pelo juiz de Direito Militar, e o Procedimento Administrativo, hoje, jaz nos escaninhos da Auditoria da Justiça Militar baiana. (grifos nossos)
Importante é o pensamento FAGUNDES (2003, p. 354)
Nesse conflito, aliás, entre o crime e a transgressão é sempre preferível aplicar o conceito do in dubio pro reo, isto é, conceder ao suspeito de prática de crime o benefício da dúvida, pendendo para a transgressão. Na suspeita de crime de tipicidade duvidosa, a instauração do IPM é perfeitamente dispensável, pois se trata de um procedimento demorado que altera a rotina da Unidade militar e, fatalmente, não resultará em nada. Ora, se o crime não está devidamente configurado e existe amparo legal para uma punição disciplinar, não há porque apelar para o CPM (Código Penal Militar) de aplicação difícil e duvidosa, quando o Regulamento Disciplinar oferece ao Comandante arsenal jurídico eficaz, até nos casos omissos", mas é necessário, antes, aceitarmos as esferas como independentes. (grifos nossos)
Como foi abordado, a diferença entre o crime militar e a transgressão disciplinar, muitas vezes, está gravada na intensidade do fato delituoso ocorrido. Também ficou patente, no decorrer do trabalho, que a privação cautelar da liberdade individual reveste-se de caráter excepcional, somente devendo ser decretada em situações de absoluta necessidade. Requer, portanto, a presença de dois pressupostos para sua decretação: o fumus boni iuris e o periculum in mora. Ou seja, o chefe militar, ao ordenar o recolhimento peremptório do subordinado transgressor ao "xadrez" (como é comum se falar no jargão militar) como medida cautelar, deve se pautar na plausibilidade do direito invocado (ou a verossimilhança da alegação) e o fundado temor de dano a direito.
Portanto, um fato, para que se amolde nas previsões regulamentares de se determinar a detenção/prisão cautelar administrativa, por certo, estará postado sobre a linha tênue que, em muitos casos, difere o crime e a transgressão disciplinar. Caso não existisse a possibilidade de o superior de decretar a detenção/prisão cautelar administrativa, como medida sublime para preservar os valores institucionais mais caros, não restaria outra saída ao superior, a não ser lavrar o competente auto de prisão em flagrante delito. Tal medida seria bem mais danosa ao infrator que a medida administrativa disciplinar. Certo é que, não se pode transigir com os valores institucionais, por nenhum preço.