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Princípios do Direito da Energia

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21/06/2011 às 16:05
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7 Segurança no aprovisionamento energético

Esse princípio estabelece uma abertura ecológica do direito. Parte do suposto de que assegurar o aprovisionamento energético pressupõe continuidade das operações autopoiéticas de cada sistema social implicado. E continuidade autopoiética só se assegura mediante sustentabilidade ambiental. Do ponto de vista interno do sistema jurídico, muitos recursos energéticos são escassos na natureza e a sua utilização é fonte de poluição. Nessa perspectiva, o princípio da segurança no aprovisionamento energético aponta para a necessidade de planejamento das decisões sobre política energética, tendo em conta o cumprimento das condições necessárias para uma autonomia energética. Isso significa, em outras palavras, planejar a autonomia energética para evitar a dependência de uma matriz de aprovisionamento às flutuações econômicas, políticas e militares da sociedade mundial.

Em outras palavras, esse princípio nos diz, normativamente, que apesar de todas as inconstâncias e descontinuidades políticas, econômicas, militares, tecnológicas, regionais e etc., as decisões da sociedade a respeito da energia "devem" levar em consideração o longo prazo, a solidez do desenvolvimento, os vínculos com o futuro, enfim, a sustentabilidade. A pergunta-chave para verificar o cumprimento ou descumprimento desse princípio é: quais são os prováveis impactos energéticos da decisão no futuro? Quais são seus possíveis efeitos colaterais? Ou ainda, em uma perspectiva luhmanniana (1996), o que os decisores observam como "risco" (que merece ser enfrentado para não se perder oportunidades irreversíveis) que os afetados observam como "perigo" (para o qual se está submetido e que, por isso, não vale a pena)?

Na conjuntura atual, esse princípio corresponde à exigência de não se depender exclusivamente de poucas fontes de energia. Tanto a diversificação de fornecedores, quanto a diversificação das fontes naturais e, principalmente, a diversificação tecnológica, são estratégias que se inserem no contexto normativo que decorre desse princípio da segurança no aprovisionamento energético. Diversificar as fontes energéticas significa aumentar o número de alternativas possíveis. Isso permite não apenas uma garantia de escolha emergencial entre as possibilidades energéticas, com também permite uma maior autonomia do consumidor em face das pressões tecnológicas e financeiras de alguns detentores das tecnologias ou de recursos naturais relacionados ao fornecimento de energia. Essa relação é fácil de ser compreendida: quando um país depende, por exemplo, da energia produzida somente pelo país vizinho, ele não tem outra alternativa senão submeter-se as suas exigências e aos humores do seu mercado. Como também um país que possui recursos energéticos naturais, mas que depende, por exemplo, da tecnologia de produção de energia disponibilizada apenas por poucos países, situação na qual a relação de dependência se confirma mediante a submissão, face a inexistência de outras alternativas, às condições de licenciamento para uso da tecnologia mediante o pagamento de royalites.

No âmbito da União Europeia, esse princípio aparece sob a forma da "Segurança a longo prazo do abastecimento energético" (Europa, 2007), cujo conteúdo normativo está na exigência de "não depender excessivamente de um pequeno número de países para o aprovisionamento ou compensar tal dependência com uma cooperação estreita com países como a Rússia (uma fonte importante de combustíveis fósseis e, potencialmente, de electricidade) e os países da região do Golfo em matéria de investimento e transferência tecnológica" (Europa, 2007). Isso implica no planejamento do próprio mercado de energia, de modo a garantir juridicamente mais concorrência para beneficiar os consumidores e planejamentos baseados em áreas geográficas ou em setores julgados como estratégicos para a alocação de recursos.

Além desse aspecto de sustentabilidade mercadológica da energia, o princípio da segurança no aprovisionamento energético aponta também para uma sustentabilidade ambiental. A preocupação com um planejamento mercadológico do aprovisionamento energético não é suficiente: o princípio exige também uma diminuição progressiva da emissão de CO2, através da substituição dos combustíveis fósseis por alternativas mais limpas. Naturalmente, "Isto pressupõe uma mudança ambiciosa no sentido das energias eólica (especialmente ao largo), hídrica, solar e de biomassa e dos biocombustíveis obtidos a partir de matéria orgânica. O passo seguinte poderá ser tornar-se uma economia baseada no hidrogênio" (Europa, 2007).

A segurança do aprovisionamento energético também tem relações íntimas com o princípio da continuidade na prestação do serviço público essencial. Na Argentina também se fala de "obligación de suministro" no sentido de manter um serviço sem interrupções e em condições eficientes (Fuente, 1970, p. 9). Por isso a suspensão ou interrupção no fornecimento de energia deve cumprir com condições juridicamente justificadas, como por exemplo um caráter de penalidade por problemas na conduta do consumidor (inadimplemento, utilização de equipamentos perigosos e etc.), bem como um caráter de prevenção ou correção da demanda ou do consumo (como nos casos de racionamento). Assim, no âmbito do Direito da Energia, até para se adequar a essa semântica da segurança no aprovisionamento energético, tem-se que distinguir entre a "suspensão provisória" para consertos e manutenção nas redes de distribuição e a "interrupção" do fornecimento de energia como técnica de punição de participantes do sistema de geração-transmissão-distribuição-consumo de energia.


8 Eficiência energética

Enquanto o princípio da segurança no aprovisionamento energético aponta para uma abertura do direito para referências ecológicas, o princípio da eficiência energética aponta para uma abertura a referências econômicas. Eficiência significa não-desperdício. A "oikonomie" grega já sabia disso. Em algum lugar da história, "oikos" e "nomos" se separaram. Aristóteles já vê essa separação na forma da diferença entre a economia doméstica – ou "economia do lar" – e a ciência das riquezas – ou a "arte de fazer fortuna". E em uma economia de mercado, a "oikos" da economia doméstica grega já não é mais tão importante. A importância dela aparece agora sob o título de "oikologie". Ecologia e economia então encontram, novamente, um ponto de convergência comum: a energia. E por isso a eficiência energética se liga, hologramaticamente, a essas as referências comunicativas da sociedade. Ela se constitui na forma de um meio de comunicação entre referências econômicas e ecológicas, quer dizer, entre referências à lucratividade evitando prejuízos e referências à sustentabilidade evitando a degradação. A predominância na semântica jurídica da energia, contudo, é a econômica. E o seu conteúdo normativo indica uma expectativa de racionamento de energia, de não-desperdício, de aproveitamento ótimo e etc. A qual, do ponto de vista ecológico, aparece sob a forma da redução de gases poluentes da atmosfera, da redução dos impactos ambientais de novas hidrelétricas, da redução dos riscos e perigos da radioatividade das usinas nucleares e etc.

Do ponto de vista das decisões jurídicas, a eficiência energética orienta a se decidir pelas expectativas que procuram meios inovadores de aproveitamento ótimo da energia na relação entre geração, transmissão, distribuição e consumo. Esse princípio nega, portanto, a dotação de validade a decisões que confirmam situações de desperdício de energia. E nessas condições, pode produzir um resultado interessante nas decisões com impactos energéticos: tanto os consumidores podem aprender a economizar energia, como também os geradores não desperdiçarão investimentos em obras supérfluas do ponto de vista da eficiência energética. No campo da energia elétrica isso pode ser facilmente constatado através do fato de que toda a energia produzida é imediatamente consumida, não havendo a possibilidade de estocagem de energia elétrica. Isso significa a exigência de um planejamento energético no sentido do equilíbrio entre produção e consumo de energia, a partir do qual todo excesso é desperdício e toda escassez é motivo para novos planejamentos de eficiência.

Por outro lado – o lado da "tecnologia" da forma "energia/tecnologia" –, a eficiência energética aponta normativamente para a utilização de equipamentos mais eficientes do ponto de vista do consumo de energia e da relação custo/benefício. E não se trata apenas de uma certificação de eficiência energética por órgãos oficiais como, por exemplo, o Inmetro. A eficiência deve ser trabalhada para além dos equipamentos elétricos. Deve ser trabalhada também, por exemplo, no trânsito. Planejar melhor o tráfego. Incentivar o transporte coletivo e a utilização de biocombustíveis são medidas que cumprem com as expectativas normativas generalizadas sob a forma da eficiência energética. A informação do consumidor se torna uma estratégia decisiva para a orientação segundo esse princípio. A certificação do Inmetro no Brasil e o sistema de certificação de eficiência energética da União Europeia são bons exemplos. Mas a eficiência é algo que vai além de aparelhos elétricos, atingindo também veículos automotores, sistemas de transporte, engenharia de tráfego e etc. Do discurso político da necessidade de mais energia para o desenvolvimento – que legitima a assunção de riscos e a submissão a perigos incontroláveis de proporções catastróficas –, o princípio da eficiência energética pergunta pela necessidade de melhor aproveitamento da energia disponível e pela necessidade de tecnologias mais eficientes de geração-transmissão-distribuição-consumo de energia. Por isso que, ao lado do princípio da eficiência energética, pode-se validar também um princípio do não-retrocesso na utilização de tecnologias.


9 Não-retrocesso na utilização de tecnologias

Talvez um dos mais interessantes princípios do Direito da Energia – e exatamente porque encontra validade nos demais princípios, além de uma especial motivação na semântica ecológica da sociedade – seja o princípio do não-retrocesso na utilização de tecnologias. Esse princípio diz que uma determinada tecnologia de produção-transmissão-distribuição-consumo de energia não pode ser substituída por outra inferior do ponto de vista da eficiência energética. E isso significa que deve ser considerado não apenas a potência da energia, mas também todo o seu ciclo de vida, que passa pela produção de insumos, geração, transmissão, distribuição, consumo e inclusive o descarte de resíduos-gases-efluentes. A justificativa é a de que em cada etapa desse ciclo de vida da circulação da energia há geração de resíduos capazes de comprometer as exigências da semântica ecológica. Pensa-se, por exemplo, no CO2 decorrente do uso de energia fóssil, ou no descarte do urânio, ou ainda dos impactos ambientais das usinas hidrelétricas.

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Não-retrocesso pode significar, portanto, a garantia de um espaço social economicamente viável somente para novas tecnologias capazes de superar as anteriores no aspecto da eficiência energética. E eficiência, como acima observado, não se limita à questão da potência, pois abrange também o consumo, a organização, o planejamento e a sustentabilidade dos processos de produção e consumo de energia. O controle da decisão a respeito do retrocesso ou não-retrocesso, contudo, é algo que somente pode ser realizado no âmbito da ciência. Por isso que esse princípio é o responsável pela institucionalização jurídica de uma mediação comunicativa – uma abertura – entre o direito e a ciência. O direito permite decidir a respeito da entrada de novas tecnologias de produção e consumo de energia no mercado, enquanto que a ciência – pela mediação das perícias técnicas nos procedimentos legais – informa à decisão jurídica a respeito do retrocesso ou não-retrocesso. As perícias, aqui, desempenham a função de acoplamento estrutural entre os sistemas do direito e da ciência (Rocha & Simioni, 2005).

Na práxis das decisões judiciais, o não-retrocesso na utilização de tecnologias orienta a se decidir pela abertura de mercado a tecnologias mais eficientes e, ao mesmo tempo, à imposição de barreiras normativas à manutenção de tecnologias obsoletas do ponto de vista da eficiência energética. Como isso pode ser feito na prática de uma sociedade que não tolera mais uma instância central de controle, trata-se de outro problema. Diga-se de passagem: trata-se do mesmo problema da aplicação do princípio do poluidor-pagador no âmbito do Direito Ambiental, para o qual as soluções propostas giram em torno da institucionalização jurídica de técnicas econômicas de regulação, como por exemplo taxações, tributação, incentivos fiscais, MDL’s do Protocolo de Kyoto e todos os demais recursos jurídicos que, inevitavelmente, apenas geram a alternativa entre assumir ou não o preço da sanção jurídica (Teubner, 1997; Willke, 2007; Simioni, 2006a).

Independente disso, ao menos no plano teórico se pode observar experiências interessantes no campo do licenciamento de produtos tóxicos. Novos agrotóxicos, por exemplo, só são licenciáveis para colocação no mercado de consumo se forem comprovadamente menos tóxicos que os atuais [11]. Uma experiência assim pode orientar a criação de instrumentos não econômicos de seleção das novas tecnologias mais eficientes que, ao mesmo tempo, obrigam as velhas tecnologias menos eficientes a cederem espaço. Quer dizer: só pode juridicamente entrar no mercado da energia uma nova tecnologia comprovadamente mais eficiente que as atuais. Porque senão, como justificar um retrocesso tecnológico se o baixo preço de uma tecnologia menos eficiente pode custar caro a médio e longo prazo? E longo prazo é exatamente o resultado da semântica – que nós indicamos como princípio – da segurança no aprovisionamento energético.

Fecha-se aqui um ciclo de legitimação circular desses princípios. A segurança no aprovisionamento energético justifica-se na necessidade de sustentabilidade do desenvolvimento. A eficiência energética justifica-se na necessidade de otimização energética decorrente das exigências de segurança no aprovisionamento energético. E por fim o não-retrocesso na utilização de tecnologias energéticas justifica-se na própria necessidade de eficiência energética, que se justifica na segurança no aprovisionamento, que se justifica na sustentabilidade do desenvolvimento, que já não precisa mais de justificação. Quer dizer, esses princípios se fundamentam reciprocamente. Cada um deles sustenta os demais. Uma espécie de "tangled hirarchie" (Hofstadter, 1999, p. 686), uma autotranscendência (Dupuy, 1999, p. 109 e 173), uma "lógica do suplemento" (Derrida, 2004, p. 203).

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Sobre o autor
Rafael Lazzarotto Simioni

Doutor em Direito (Unisinos), Mestre em Direito (UCS), professor e pesquisador da FDSM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIMIONI, Rafael Lazzarotto. Princípios do Direito da Energia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2911, 21 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19372. Acesso em: 26 abr. 2024.

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