4. A Desconstrução da Distinção entre Direito e Moral
Segundo a distinção entre Direito e Moral elaborada pelo jurista brasileiro, a Moral exibiria características díspares das do Direito. Podemos asseverar, com fundamentação em BERGER, BEATTIE e GOFFMAN, que urge uma revisão daqueles critérios da distinção entre as esferas axiológica e normativa, os quais foram formulados por REALE.
4.1. Peter Berger e a Teoria dos Círculos Concêntricos
BERGER, em sua da "Teoria dos Círculos Concêntricos" [50], afirma que a sociedade (assim como o Direito para REALE) possui mecanismos de controle dela mesma. Os mecanismos de controle social não seriam características tão somente do Direito, mas, outrossim, da Moral, a qual também controlaria a sociedade.
Segundo BERGER, "o controle social e a estratificação social" [51] são maneiras que tanto o Direito quanto a Moral dispõem para impor certas atitudes e pensamentos à sociedade. Destarte, todos nós, inclusive o autor do presente texto, estaríamos enquadrados em determinado estrato social ao qual seriam característicos delimitados controles sociais.
A estratificação social refere-se ao modo como cada sociedade organiza-se em camadas ou em estratos. Ela é a base sobre a qual a sociedade há de impor-nos os mecanismos de controle social, os quais variariam de intensidade ou, até mesmo, de constituição ao passarmos de uma classe para outra. Assim, afiança BERGER:
O conceito de estratificação refere-se ao fato de que toda sociedade compõe-se de níveis inter-relacionados em termos de ascendência e subordinação, seja em poder, privilégio ou prestígio. Em outras palavras, estratificação significa que toda sociedade possui um sistema de hierarquia. Alguns estratos, ou camadas sociais, são superiores, outros são inferiores. A soma desses estratos constitui o sistema de estratificação de uma determinada sociedade. [52]
A partir dessa estratificação, BERGER assevera que a sociedade estabelece mecanismos de controle. Esses mecanismos teriam sua gênese tanto no Direito (como os exercidos pelo Estado) como na Moral (como os executados pela família e pelos amigos). Acerca do controle social, escreve BERGER:
Controle social é um dos conceitos mais utilizados em sociologia. Refere-se aos vários meios usados por uma sociedade para "enquadrar" seus membros recalcitrantes. Nenhuma sociedade pode existir sem controle social. Até mesmo um pequeno grupo de pessoas que se encontrem apenas ocasionalmente terá de criar seus mecanismos de controle para que o grupo não se desfaça em muito pouco tempo. É escusado dizer que os instrumentais de controle social variam muitíssimo de uma situação para outra. [...] Os métodos de controle variam de acordo com a finalidade e o caráter do grupo em questão. Em qualquer um dos casos, os mecanismos sociais funcionam de maneira a eliminar membros indesejáveis e (como foi enunciado de maneira clássica pelo Rei Chistophe, o Haiti, quando mandou executar um décimo de seus trabalhadores) ‘para estimular os outros’.
Assim sendo, nota-se que, segundo BERGER, os mecanismos de controle social referem-se aos meios usados por uma sociedade para "enquadrar" seus membros recalcitrantes. Para BERGER, aqueles mecanismos são meios utilizados pela sociedade sem os quais essa não poderia existir e permanecer funcional para controlar os indivíduos que a compõem.
Nesse contexto, as opções de escolha de uma pessoa são limitadas. Não há, portanto, liberdade para agir fora do que é previsto pela norma, seja essa jurídica ou moral. Isso tudo, conforme o autor, ocorre em nossas vidas sem que percebamos que estamos a todo instante sendo censurados e controlados, enquanto imaginamos fazer escolhas e expor nossos gostos.
Em compêndio da estratificação social e dos controles sociais, BERGER formula a Teoria dos Círculos Concêntricos. Segundo essa conjetura: tendo em vista a posição do indivíduo na estratificação social, isto é, em qual estrato ou camada social a pessoa localiza-se, a sociedade impõe controles sociais ao cidadão, o qual, por vezes, nem sequer percebe aqueles controles.
Para aquela teoria, o indivíduo acha-se no centro, ou seja, no ponto de maior pressão dum conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social. Tais controles, por sua vez, podem apresentar características relativas à Moral ou caracteres atinentes ao Direito. Sobre a Teoria dos Círculos Concêntricos, afirma BERGER:
Se voltarmos à imagem de um indivíduo localizado no centro de um conjunto de círculos concêntricos, cada um dos quais representa um sistema de controle social, podemos compreender um pouco melhor que situar-se na sociedade significa situar-se em relação a muitas forças repressoras e coercitivas. [53]
São exemplos desses mecanismos de controle social: "a violência física" [54]; "a influência inibidora da disponibilidade de violência" [55]; "o ridículo e a difamação, o opróbrio e o ostracismo sistemáticos" [56]; e também "a pré-definição por nossos predecessores" [57]. Poderíamos alcunhar esse último mecanismo de controle social como o "poder do passado ou da tradição".
Diante disso, conclui-se que a Moral, enquanto promotora de determinados controles sociais, não é incoercível nem é, absolutamente, autônoma. Essa apresenta a possibilidade da coerção e da heteronomia. Um exemplo: não é legalmente proibido ir à aula com, por exemplo, um terno cor-de-rosa, no entanto, até hoje, não se registra que tenha havido tal ocorrência.
4.2. John Beattie e sua Classificação das Sanções
BEATTIE faz uma distinção entre o que significaria a norma e o que exprimiria a sanção. Para esse autor, a norma é o elemento que prescreve ou descreve uma determinada conduta; já a sanção é algo que a sociedade impõe às pessoas que cumpriram ou descumpriram o comportamento previsto e determinado.
Norma e sanção corroboram para o controle social. Esse conjunto resumido pelo termo controle social é, na ótica daquele antropólogo, uma condição sine qua non para a manutenção da boa harmonia das relações sociais, assim, confirmando a perspectiva de BERGER. BEATTIE batiza norma e sanção:
Distingui acima entre normas e sanções: isto é, entre modos institucionalizados de fazer coisas que, em si mesmas, têm certas implicações para a manutenção da paz e boa ordem numa sociedade, e as conseqüências, elas próprias mais ou menos institucionalizadas, que podem resultar de contravenções do comportamento aprovado, normativo. [58]
De tal modo, entendendo sanção social como, resumidamente, qualquer instituição cuja conseqüência é inclinar as pessoas que ocupam certos papéis a se adaptarem às normas e expressões associadas àqueles papéis, BEATTIE elabora uma classificação das sanções, a qual será, a posteriori, versada em profundidade.
No entanto, antes de tratarmos, neste trabalho, do ponto referente à norma, faz-se mister uma breve discussão acerca do confuso tema relativo às normas. Para muitos, as normas podem ser entendidas tão somente como as leis, que nas sociedades modernas remeter-nos-iam à figura do legislador com o Estado Moderno.
No entanto, não obstante a lei também se configure numa norma social, ela não é, indubitavelmente, a única. "Assim, o jurista Roscoe Pound sugere que o termo ‘lei’ é mais bem restrito ao ‘controle social, através da aplicação sistemática da força pela sociedade politicamente organizada’." [59] Assim sendo, compreende-se que a lei encontra-se dentro da sanção.
Com base nesse entendimento, BEATTIE desenvolve sua classificação das sanções, a qual já fora, inicialmente, antecipada pelo antropólogo RADCLIFFE-BROWN. A priori, as sanções são classificadas como positivas e negativas, as positivas seriam recompensas por boas atitudes; já as sanções negativas seriam punições por comportamentos depreciados. Afinal:
Se um comportamento é aprovado, então a sansão é positiva; se é desaprovado, é negativa. Exemplo de sanções positivas são prêmios, títulos, fama, condecorações por serviço público e a boa opinião dos vizinhos de alguém. Elas substituem o se deve fazer. E sempre se vinculam à idéia de que algo desagradável acontecerá, tal como a imposição de uma penalidade de algum tipo, se se fizer o que não se deve. [60]
Para RADCLIFFE-BROWN, a sanção social é "uma reação por parte de uma sociedade ou de um número considerável de seus membros a um modo de comportamento que é, desse modo, aprovado ou desaprovado" [61]. BEATTIE, tendo em vista a tal conceituação, além de classificar as sanções em positivas ou negativas, outrossim, divide as negativas.
Segundo BEATTIE, as sanções negativas podem ser discernidas em organizadas e difusas. Baseado em RADCLIFFE-BROWN, BEATTIE afirma que sanções organizadas [62] são procedimentos definidos, regulamentados e reconhecidamente dirigidos contra pessoas cujo comportamento é, socialmente, desaprovado.
Enquanto as sanções negativas difusas seriam espontâneas, desorganizadas e, usualmente, expressariam a desaprovação geral da comunidade ou de uma parte significativa dela. As sanções difusas teriam origem na reciprocidade de MALINOWSKI, que BEATTIE explica como sendo a igualdade de ações entre os homens: agiu mal, será recompensado com maldade.
Assim sendo, conclui-se que a Moral pode ser classificada como organizada (quando vier de corporações, igreja, clubes, grupos profissionais) ou como difusa (quando expressar apenas a opinião pública). A Moral, portanto, assim como o Direito, seria positiva, uma vez que pode ser organizada, e coercível, posto que ela também seria sanção.
Depreende-se, de tal guisa, que BEATTIE, assim como já fizera BERGER, apresenta-se, contrariamente, à distinção entre Direito e Moral explicitada por REALE. Isso, porque, como já fora visto, a Moral, ao estabelecer-se como sanção, constitui uma entidade com objetividade, posto que pode ser organizada, e ainda um artifício com coercibilidade, afinal, é também sanção.
4.3. Erving Goffman e sua Pesquisa sobre a Estigmatização: o Descompasso entre as Identidades Real e Virtual
GOFFMAN, em Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada, faz uma pesquisa acerca da estigmatização. Tal estigmatização, a qual se refere à "evidência de alguma coisa de extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os apresentava" [63], vem de encontro à distinção proposta por REALE, que assegura que a Moral é incoercível e autônoma.
Cumpre avisar, antes de discutirmos a questão concernente ao estigma em GOFFMAN, que, para esse autor, é aconselhável o uso do termo identidade à utilização do vocábulo status. Isso, porque o elemento do estigma constitui algo bastante abrangente. Abrangência essa que unicamente encontramos na identidade social. Conforme se pode observar:
"Identidade social" – para usar um termo melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como "honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação". [64]
Nesse ínterim, em GOFFMAN, o estigma surge de uma relação social não correspondida. A sociedade possui uma imagem pré-formada do papel que todos os atores sociais têm que desempenhar: uma identidade social virtual. Quando essa identidade não é confirmada pelo comportamento do indivíduo, aparece o processo de estigmatização.
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixemos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem – e constitui uma discrepância específica entre a identidade social virtual e identidade social real. [65]
Assim sendo, percebe-se que, quando um indivíduo comporta-se de maneira incongruente com o estereótipo que criamos para um determinado tipo como ele, emerge o estigma. Do descompasso entre a identidade social real e a identidade social virtual, aparece o estigma: "um atributo profundamente depreciativo" [66].
GOFFMAN classificou, fundamentalmente, três tipos básicos de estigma: os com gênese em marcas físicas que a pessoa carrega; os oriundos de condutas comportamentais individuais percebidas como culposas; finalmente, os com origem em caracterizações grupais de condutas de comportamento. GOFFMAN assevera:
Podem-se mencionar três tipos de estigma nitidamente diferentes. Em primeiro lugar, há as abominações do corpo – as várias deformidades físicas. Em segundo, as culpas de caráter individual, percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio e comportamento político radical. Finalmente, há os estigmas tribais de raça, nação e religião, que podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. [67]
Não obstante tais processos de estigmatização sejam, notoriamente, diversos entre si, há uma coisa que permanece constante. Tal cláusula pétrea do estigma é uma característica sociológica: "um indivíduo que poderia ter sido facilmente recebido na relação quotidiana possui um traço que pode-se impor à atenção e afastar aqueles que ele encontra" [68].
Diante disso, conclui-se que o estigma, embora se altere ao longo do processo de estigmatização, apresenta um caráter imutável: "um estigma é uma característica diferente da que havíamos previsto" [69]. Nesse ponto, encontramos aquela qualidade da Moral que vai de encontro ao pensamento de REALE e ao encontro com as proposições de BERGER e BEATTIE.
Remata-se, destarte, que a Moral exporia, conforme o Direito, a característica da coercibilidade, haja vista que a estigmatização, oriunda da deterioração do status moral, seria a Moral posta com coerção. Ademais, outrossim, como o Direito, a Moral exibiria heteronomia, porque o processo de estigmatização baseia-se no modelo - o estereótipo - que a sociedade mostra-nos.