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A tutela jurídica do trabalho da criança e do adolescente: dos primórdios à doutrina de proteção especial

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28/06/2011 às 16:50
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2.O TRABALHO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL

2.1.Notícias Históricas

A gênese histórica do trabalho da criança e do adolescente no Brasil encontra-se ligada de forma direta ao estudo da evolução da legislação pátria, o que será realizado em tópico posterior. Contudo, proceder-se-á neste momento a breves lineamentos acerca da situação, principalmente nos períodos colonial e imperial, onde as leis ainda não faziam parte do contexto.

Discorrer acerca das primeiras informações sobre o trabalho de crianças e adolescentes no Brasil é voltar ao início da colonização do país, em anos que se aproximam de 1500. Crianças e adolescentes embarcavam em naus portuguesas rumo às terras brasileiras, trabalhando como pajens ou grumetes, submetendo-se a toda sorte de abusos, suportando desde a exploração exaustiva de suas forças físicas na realização dos piores trabalhos, privação de suas alimentações, chegando a sevícias sexuais. Do que pode se concluir que os pequenos eram considerados pouco mais que animais (PESTANA, apud MINHARRO, 2003, p.21).

Ao lado da exploração dos filhos dos portugueses já nas embarcações, é possível afirmar, sem qualquer medo de errar, que os pequenos nativos também sofreram tais abusos.

À época da escravidão, os filhos dos escravos recebiam o mesmo tratamento de seus pais, não lhes sendo permitido, na maioria das ocasiões, nem o amparo materno em sua infância.

Com a abolição da escravatura, já no século XX, deu-se início ao emprego da mão-de-obra de crianças e adolescentes nas fábricas, seguindo um pouco mais tardiamente, a ausência total de direitos, nos moldes daquilo que a Europa já havia presenciado com a sua Revolução Industrial.

Somente com a chegada da República, em 1889, a preocupação com a regulamentação do trabalho envolvendo os menores tomou algum corpo. A partir deste marco, os diplomas legais ganham espaço na história brasileira, em algumas das vezes sem efetividade, conforme será visto a seguir.

2.2.Evolução da Legislação Brasileira

O Decreto n.º 1313 de 1891, primeiro instrumento legislativo com vistas a regulamentar o labor de menores no Brasil, possuía medidas tendentes à disciplinar a atividade de crianças e adolescentes nas fábricas, proibindo o trabalho infantil na maquinação e em faxinas, e vetando a admissão dos menores de doze anos, ressalvando a aprendizagem para aqueles que fossem maiores de oito anos. Jamais foi regulamentado, e suas diretrizes não foram colocadas em prática (MINHARRO, 2003, p.24).

A notícia da primeira tentativa parlamentar chega com o Projeto n. 4-A, de 1912, que deveria regular o trabalho industrial das crianças e adolescentes, proibindo o ingresso dos menores de dez anos, assim como limitando o tempo de atividade, para pessoas entre os dez e quinze anos, a seis horas diárias, condicionando, ainda, a admissão destes a apresentação de exame médico e certificado de frequência anterior em escola primária (NASCIMENTO, 2003, p. 55).

Durante os primeiros anos da República, a tutela do trabalho das crianças e adolescentes encontrou resistência de muitos parlamentares que se escondiam atrás de um argumento que transferia a responsabilidade estatal sobre a matéria, para os pais, detentores do pátrio poder, o que acabou por gerar inúmeros diplomas legais sem nenhuma efetividade.

Em 1927, foi aprovado, com o Decreto n.º 17.943-A, o chamado Código de Menores brasileiro, que em seu capítulo IX tratava do labor infanto-juvenil, apregoando, dentre outras proibições, o trabalho para menores de doze anos de idade e o labor noturno para os menores de dezoito anos. Tal diploma perdurou até o ano de 1979, quando foi revogado pelo Novo Código de Menores, que em suas linhas gerais manteve o mesmo equívoco de seu antecessor, qual seja tratar, na realidade, apenas da criança em situação irregular (os órfãos ou os chamados "pequenos delinquentes"), considerando que a situação de dependência não ocorria por fatores estruturais, mas sim da orfandade (acidente) e da incompetência das famílias ao não conseguir criá-la.

Merece destaque, em todo o período de vigência do Código de Menores, a sistematização, no ano de 1943, de toda a legislação trabalhista que existia até então, entrando em vigor a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), prevendo, dentre outras disposições, que a idade mínima para o labor era catorze anos.

Nos dias atuais, é possível arrazoar sobre uma doutrina legal brasileira de proteção ao trabalho da criança e do adolescente, pautada na defesa da dignidade do ser humano. Tais instrumentos encontram-se presentes na Constituição Federal de 1988, na CLT e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990.

2.2.1 A Doutrina Especial de Proteção ao Trabalho da Criança e do Adolescente no Brasil Hodierno

Em linhas gerais, na contemporaneidade a proteção ao trabalho das crianças e adolescentes no país dá-se pela convergência dos mandamentos esculpidos em cada um dos três corpos legais retromencionados, e ainda, nas supracitadas Convenções da OIT, devidamente ratificadas pelo Brasil.

No intuito de facilitar a compreensão dos dispositivos que destacam especial proteção ao labor pueril, optou-se neste, pela sua divisão por temas.

Assim, o primeiro ponto se refere à idade mínima para o trabalho. A Constituição Federal dispõe em seu artigo 7º, XXXIII, acerca da proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos, sendo, pois, tal previsão corroborada pelo disposto nos artigos 403, 404 e 405 da CLT, deixando evidente a proteção especial à criança, que nos termos do ECA é a pessoa de até doze anos de idade incompletos, e ao adolescente, estando aqui compreendidos os sujeitos entre doze e dezoito anos de idade (artigo 2.º, caput, da lei n.º 8069 de 1990). Cumpre esclarecer que antes da Emenda Constitucional n.º 20 de 1998, era permitido o trabalho infantil já a partir dos quatorze anos de idade.

Já em relação à jornada de trabalho, são obedecidas as mesmas regras do contrato em geral, porém com algumas restrições, dentre as quais destacando-se que a jornada de trabalho somente poderá ser prorrogada em até duas horas, desde que o excedente de um dia seja compensado em um outro dia. E excepcionalmente em caso de força maior, até o limite de doze horas, quando o trabalho do menor for imprescindível para o funcionamento do estabelecimento, devendo neste caso ser pago um acréscimo no salário (artigos 411 e 413 da CLT). De acordo com o artigo 414 da CLT, quando o menor trabalhar em mais de um estabelecimento a jornada deverá se totalizada, ou seja, o menor trabalhador terá uma jornada diária de no máximo 8 horas.

No que tange ao contrato de trabalho do menor, são seguidas as mesmas regras do contrato de trabalho normal, porém devem ser observadas algumas restrições. O artigo 439 da CLT traz o direito do menor de celebrar o contrato de trabalho e dar quitação aos pagamentos de salários, e ainda veda o menor, quando da rescisão do contrato de trabalho, de dar quitação no recebimento de indenização.

Para a extinção do contrato de trabalho do menor deverão ser observados, fundamentalmente, os mesmos preceitos levados em consideração para a extinção do contrato laboral do adulto com algumas advertências importantes, notadamente no que diz respeito aos efeitos prejudiciais da atividade para a saúde e o desenvolvimento físico ou moral do menor, conforme o revelado no corpo dos artigos 407, 408 e 424 da Consolidação das Leis do Trabalho.

A teor do ingresso de pessoas de tenra idade no mercado de trabalho, entra em cena a aprendizagem, esculpida na CLT, entre seus artigos 428 e 433, e no ECA, com disposições a si referentes, entre os artigos 60 e 69. Tem por finalidade preparar o jovem para o labor, oferecendo ao mesmo tempo a teoria e a prática. Para regular a aprendizagem do jovem foi criada a Lei 10.097 de 2000 (Lei de Aprendizagem) alteradora de vários dispositivos da CLT e informadora dos critérios necessários para a celebração do contrato de aprendizagem. Aos menores aprendizes asseguram-se todos os direitos previdenciários e trabalhistas intrínsecos ao contrato comum de trabalho, conforme artigo 227, parágrafo 3º, II da Constituição Federal e artigo 65 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

No concernente à remuneração, o salário do trabalhador infante poderá ser estipulado livremente entre as partes, sendo sempre obedecida a Magna Carta que reza sobre a garantia do salário mínimo ao trabalhador (artigo 7º, inciso IV) e apregoa que não deverá haver diferenciação no salário por motivo de idade, conforme estabelece o seu artigo 7º, inciso XXX.

Ante ao exposto, pela exemplificação de casos acima, pode-se balizar o quão diferenciado é, nos dias atuais, o tratamento oferecido pela legislação pátria ao trabalho da criança e do adolescente.


3 DA TUTELA ESPECIAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NA ESFERA TRABALHISTA

No que tange a origem da especial proteção dos direitos da criança e do adolescente no ambiente laboral pode-se afirmar que o processo de conquista destes direitos foi árduo e penoso, atravessando etapas nas quais a ausência total de direitos, suprimindo desta feita qualquer possibilidade de dignidade, fazia parte do quadro percebido nas relações de trabalho envolvendo os menores.

Assim, a grande questão que pode ser suscitada neste ponto gira em torno de se compreender o fenômeno da atribuição de direitos especiais a determinados indivíduos ou grupos sociais, compreendendo o fenômeno da multiplicidade de direitos, a partir da diversidade de sujeitos.

3.1 Direito Fundamental à (Des)igualdade

Neste momento cabe o esclarecimento de que a forma de multiplicação dos direitos acontece a partir de uma alteração do conceito sobre o homem, que deixa de ser genérico partindo para suas especificidades relacionadas à idade, ao gênero, e às suas condições físicas e psicológicas. Com fulcro nestas especificidades há diferenças em termos de direitos, fazendo com que se proceda a um tratamento e uma proteção desigual. Acompanhando esse raciocínio, "a mulher é diferente do homem; a criança do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes etc." (BOBBIO, 1992, p.69).

A tutela da diferença não é utópica, habitando as sociedades de forma rotineira, uma vez que todas as culturas tendem a fazer a distribuição de pessoas e grupos sociais entre dois princípios competitivos de vinculação hierárquica, a igualdade e a diferença – cabendo a uma política emancipatória de direitos humanos, o dever de distinguir entre a luta pela igualdade e a luta pelo reconhecimento igualitário das diferenças (SOUSA SANTOS 2003, p. 442).

Na seara jurídica, acompanhando o ideário acima, ocorreu a transição do Estado de Direito, balizado pelo princípio da legalidade, para o Estado Democrático de Direito ou Estado Constitucionalista, pautado no princípio da constitucionalidade, passando a igualdade a ser vista não somente sob o ponto de vista formal, mas sim, sendo observada sob o prisma material, indo de encontro ao direito de prestação positiva do Estado, que precisa, indubitavelmente, tratar de forma desigual os desiguais em busca de um maior equilíbrio nas esferas econômica e social, proporcionando aos mais diversos sujeitos de direitos, uma existência digna, valorizando, sobretudo, os seus direitos fundamentais.

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Dentre os direitos fundamentais, recebe inegável destaque a cláusula da isonomia, na medida em que é tida como "signo fundamental da democracia" (SILVA, 2004, p. 210). A isonomia, indubitavelmente, acaba por ser o centro do Estado Social e de todos os direitos advindos de sua ordem jurídica. De todos os direitos fundamentais a igualdade é o que mais tem se elevado em relevância no Direito Constitucional hodierno, sendo, como não poderia deixar de ser, o direito-guardião do Estado Social (BONAVIDES, 2002, p. 340).

3.1.1 Índoles Formal e Material do Direito Fundamental à (Des)igualdade

A compreensão acerca do direito fundamental à igualdade deve observar suas dimensões formalematerial. Os textos constitucionais originados após e com fundamento nas revoluções estadunidense e francesa recepcionavam o princípio da isonomia apenas em sua dimensão formal, significando a igualdade da lei para todos, sem a admissão de privilégios, percebendo o mesmo valor a todos perante os textos legais, com a proibição de qualquer espécie de discriminação.

Trata-se, pois, a igualdade, em sua vertente puramente formal, de corolário de dimensão negativa, na medida em que afasta o tratamento desigualitário do ordenamento jurídico, não propondo qualquer ação que possa mitigar as desigualdades no plano fático. E, diante desta visão negativista, o princípio da igualdade não oferta espaço senão para a aplicação categoricamente igual da norma jurídica, sejam quais forem as diferenças e semelhanças passíveis de verificação entre os sujeitos e as situações em análise (RIOS, 2002, p. 38).

A compreensão do atual artigo 5º, caput, da Constituição brasileira de 1988, que expressa a igualdade em seu aspecto formal, não pode ser restritiva, devendo, pois, ser realizada em conjunto com outras normas constitucionais, especialmente com as chamadas exigências de justiça social (SILVA, 2004, p. 213).Do que pode-se inferir que a dimensão essencialmente formal da igualdade é insuficiente, não encontrando guarida na atual concepção de Estado Democrático de Direito. Daí porque o texto constitucional pátrio quis aproximar as dimensões formal ematerial da isonomia, uma vez que não se limitou ao mero enunciado da igualdade perante a lei, trazendo vedações a distinção de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação (SILVA, 2004, p. 214).

Em outra via, a concepção material do direito fundamental à igualdade encontra pilares no conhecido pensamento filosófico de Aristóteles, segundo o qual, devem-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Pensamento este, que, se incorporado ao discurso jurídico, oferece subsídios para que se possa apreender o significado da cláusula geral da igualdade, com a vinculação do ideal de igualdade à noção de justiça.

Ao contrário de sua espécie formal, a índole materialousubstancial da cláusula da igualdade, além da não discriminação diante da lei, pugna por uma atitude positiva por parte do Estado, na direção de que sejam promovidas oportunidades a todos, via de suas normas e políticas públicas, objetivando a redução das desigualdades.

Nesta linha de raciocínio, mulheres, crianças, afro-descendentes, migrantes, portadores de alguma deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificações e peculiaridades de sua condição social, surgindo, ao lado do direito à igualdade, o nomeado direito à diferença, assegurando-lhes trato especial (PIOVESAN, 2004, p.120).

3.2 A Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao Adolescente

A origem da doutrina de proteção integral à criança e ao adolescente encontra guarida em princípios que, em sua essência, são formadores desta especial tutela.

Os princípios desempenham, pois, uma tríplice função: a) fundamentadora, à medida que inspiram o legislador e servem de alicerce às normas positivas por ele adotadas; b) normativa, porque atuam de forma supletiva, suprindo as lacunas do ordenamento; c) interpretadora, pois se constituem como instrumento de orientação do aplicador da norma, que deles não pode prescindir na descoberta do seu verdadeiro sentido (SÜSSEKIND, 2001, p. 61).

Analisando o rol de princípios especificamente reservados ao Direito do Trabalho, pode-se apontar como ápice, o nomeado princípio da proteção integral ao trabalhador, correlacionado ao princípio da igualdade e também encontrando lastro no princípio da dignidade da pessoa humana.

No contexto determinado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, a par de outras legislações anteriores, foi adotada pela Organização das Nações Unidas, ONU, em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, visando oferecer à criança e ao adolescente o respeito a seus direitos humanos, exteriorizando os Princípios da Prioridade Absoluta e da Proteção integral ao trabalhador infanto-juvenil e, neste sentido, o respeito absoluto à sua dignidade de ser humano especial, por estar ainda em franco desenvolvimento físico, mental e social.

No Brasil, especificamente, pode-se visualizar tais princípios positivados na Constituição Federal de 1988, especialmente em seu artigo 227, assim como da leitura do corpo do Estatuto da Criança e Adolescente, Lei n.° 8069 de 1990.

Destarte, é dever da sociedade promover a integração daqueles que estão em fase de desenvolvimento e formação social, e, por fim, ao Estado, cabe adotar medidas que garantam às crianças e adolescentes o acesso a seus direitos.

Aqui, o momento é propício para lançar mão de políticas públicas que, de fato, possam dar eficácia aos mandamentos legislativos já existentes, uma vez que as políticas públicas representam os instrumentos de ação dos governos, numa clara substituição dos "governos por leis" (governmentby law) pelos "governos por políticas" (government by policies). O fundamento mediato e fonte justificadora das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de implemento dos direitos fundamentais positivos, que, por sua natureza, exigem uma prestação positiva por parte do Poder Público (BUCCI, 1996, p.135).

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Sobre o autor
Rodrigo Cogo

Mestre em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)<br>Professor dos Cursos de Graduação em Direito e Pós Graduação em Direitos Humanos da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COGO, Rodrigo. A tutela jurídica do trabalho da criança e do adolescente: dos primórdios à doutrina de proteção especial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2918, 28 jun. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19429. Acesso em: 26 abr. 2024.

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