5 PESSOA JURÍDICA PRESTADORA DE SERVIÇOS INTELECTUAIS
5.1. Análise da Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001
Com o advento da Lei Complementar n° 104, de 10 de janeiro de 2001, foi inserto o parágrafo único no artigo 116 do Código Tributário Nacional, com a seguinte redação:
Art. 116 [...]
Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.
Em realidade, tendo em vista os preceitos constitucionais estudados anteriormente (livre concorrência, livre iniciativa e autonomia privada), que autorizam a realização do planejamento tributário pelo empresário ou até mesmo por qualquer pessoa física, resta claro que o objetivo da norma não foi o de impedir a elisão fiscal, mas evitar atos ou negócios jurídicos dissimulados que caracterizam a evasão fiscal.
Se a referida norma buscou evitar a elisão fiscal, evidentemente, a declaração de sua inconstitucionalidade é medida que se impõe.
O dispositivo em apreço deve ser regulamentado por meio de lei ordinária, o que ainda não ocorreu. A tentativa de regulamentação ocorreu através da edição dos artigos 13 a 19 da Medida Provisória n° 66/02, que foram rejeitados pelo Congresso Nacional.
Releva notar a posição de José Eduardo Soares de Melo, que defende que a Lei Complementar n° 104/2001 não proibiu o planejamento tributário:
A simples leitura da LC 104 evidencia que não se cogita de abstrair-se a legitimidade dos autênticos atos ou negócios jurídicos, mas apenas desconsiderá-los no caso de os mesmos ocultarem (dissimularem) os verdadeiros procedimentos dos contribuintes.
O advento da LC 104 não elimina nem cerceia o planejamento tributário, que continua constituindo um direito de pessoas naturais e jurídicas de ordenarem suas atividades e negócios profissionais, pautados pelo princípio da autonomia de vontade e de conformidade com os institutos, conceitos e formas previstos pelo legislador.
Decorrendo a natural minoração ou inexistência de carga tributária não poderão ser desconsiderados os atos e operações. [28]
Note que o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional não obsta a realização do planejamento tributário, mas visa evitar condutas caracterizadoras de evasão fiscal. Logo, o dispositivo legal em comento não é uma norma antielisiva.
Lê-se em paradigmático trecho da obra de Alfredo Augusto Becker:
É aspiração naturalíssima e intimamente ligada à vida econômica, a de se procurar determinado resultado econômico com a maior economia, isto é, com a menor despesa (e os tributos que incidirão sobre os atos e fatos necessários à obtenção daquele resultado econômico são parcelas que integrarão a despesa). Ora, todo o indivíduo, desde que não viole regra jurídica, tem a indiscutível liberdade de ordenar seus negócios de modo menos oneroso, inclusive tributariamente. Aliás, seria absurdo que o contribuinte, encontrando vários caminhos legais (portanto, lícitos), para chegar ao mesmo resultado, fosse escolher justamente aquele meio que determinasse pagamento de tributo mais elevado. [29]
A Lei Complementar n° 104/2001 não pode servir como autorização para a autoridade fiscal desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão fiscal; constituiu-se, entretanto, para combater os procedimentos adotados através de dissimulação, o que já era permitido pelo ordenamento jurídico.
Não podem os entes políticos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), dessarte, desconsiderarem atos ou negócios jurídicos praticados licitamente pelos contribuintes com o fim precípuo de redução da carga tributária.
5.2 Dissimulação e simulação
A doutrina classifica a simulação em absoluta e relativa, sendo esta última entendida como dissimulação. Em simples palavras, valendo-se do ensinamento dos civilistas, dissimulação é o ato de ocultar aquilo que é verdadeiro.
Sobre o tema se manifestou o saudoso doutrinador Silvio Rodrigues:
Na simulação relativa, encontram-se dois negócios: um, simulado, ostensivo, aparente que não representa o íntimo querer das partes; e outro, dissimulado, oculto, que justamente constitui a relação jurídica verdadeira. [30]
Na simulação absoluta, busca-se aparentar o que não existe; há um fingimento para se criar uma aparência de realidade. Podemos citar como exemplo o prestador que emite recibo de prestação de serviços mecânicos para uma pessoa que não tomou seus trabalhos.
De forma exemplificativa, Silvio Rodrigues ensina que:
Uma das hipóteses mais freqüentes de simulação é a da venda por preço inferior ao efetivamente ajustado, com o intuito de burlar o Fisco. As partes convencionam a alienação por um preço, mas, para pagar menos imposto, fazem constar na escritura um outro que não o efetivamente combinado. [31]
O artigo 167 da Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, traz em seu bojo:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.
§ 1o Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:
I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;
II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;
III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados.
§ 2o Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado.
O próprio Código Civil trouxe a possibilidade de se decretar a nulidade absoluta do ato ou negócio jurídico praticado com simulação ou dissimulação, tornando-se despicienda a regra trazida pela Lei Complementar n° 104/2001.
Caberá ao Fisco o ônus probatório para que os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato jurídico tributário ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária sejam desconsiderados.
Levando em consideração o conceito de dissimulação (ocultar algo existente), verifica-se que o legislador buscou desconsiderar os atos ou negócios jurídicos ilicitamente praticados após a ocorrência do fato jurídico-tributário. Noutras palavras, nada impede a prática de atos lícitos antes da ocorrência do fato imponível - elisão fiscal.
5.3 Abuso de direito e fraude à lei
Os institutos de direito privado em estudo são espécies do gênero evasão fiscal e são utilizados para atingir vantagem tributária de maneira ilegal, motivo por que são reprimidos pelo ordenamento jurídico.
O artigo 187 do Código Civil mencionou o abuso de direito como ato ilícito da seguinte maneira: "Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."
Desse modo, a prática de abuso de direito com o fim de diminuição da carga tributária não configura elisão fiscal, que exige a utilização de meios lícitos. O abuso de direito limita o campo de atuação do planejamento tributário, que, uma vez ultrapassado, será alcançada a esfera da fraude fiscal.
Tratando do assunto, Heleno Tôrres preconiza que:
(...) qualquer abuso de direito contra normas tributárias, por serem cogentes e não-dispositivas, converte-se de imediato em sanção, por descumprimento frontal de norma impositiva de conduta, tal como uma espécie de fraude à lei. [32]
O conceito de fraude é fornecido por Maria Helena Diniz de forma esclarecedora:
É o ato de burlar o comando legal usando de procedimento aparentemente lícito. Caracteriza-se pela prática de ato não proibido, em que uma situação fática é alterada para escapar à incidência normativa, livrando-se, assim, de seus efeitos. Por exemplo, venda de bens a descendentes, sem anuência dos demais descendentes, levada a efeito por meio de interposta pessoa, que, depois, passa o bem àquele descendente. Atinge-se, assim, por via oblíqua, o objetivo pretendido, mediante violação disfarçada da lei. [33]
Em se tratando de matéria tributária, a conduta ilícita praticada pelo contribuinte com a intenção de obter vantagem pessoal em detrimento do Fisco configurará fraude à lei.
5.4 Negócio jurídico indireto
O artigo 14, § 3°, da Medida Provisória n° 66/2002, tentou equiparar os atos e negócios jurídicos praticados através de dissimulação com o negócio jurídico indireto.
Contudo, o negócio jurídico indireto não guarda nenhuma relação com o instituto da dissimulação, sendo absolutamente lícito no ordenamento jurídico brasileiro. Com a prática do negócio jurídico indireto, busca-se uma finalidade atípica do negócio praticado.
Tendo em vista que a Medida Provisória 66/02 não foi convertida em lei e que o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional não é uma norma antielisiva, o Fisco está impedido de desconsiderar os atos e negócios jurídicos celebrados com o intuito de economia da carga tributária (negócio jurídico indireto).
Com a prática do negócio jurídico indireto, o contribuinte, obedecendo aos critérios e aos limites legais, pretende que um fato econômico não se enquadre na hipótese de incidência tributária. Assim, de forma lícita (elisão fiscal), a tributação será afastada e o contribuinte alcançará a economia de tributos almejada.
Desta feita, alcançados resultados lícitos através da prática do negócio jurídico indireto, não há falar em aplicação do artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, ou seja, o ente tributante não poderá desconsiderar os atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte.
5.5 Desconsideração dos atos e negócios jurídicos sem propósito negocial
Malgrado o artigo 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, não se tratar de uma norma antielisiva, a União tentou cuidar do dispositivo como sendo. Através da Medida Provisória n° 66, de 29 de agosto de 2002, buscou-se desconsiderar atos e negócios jurídicos praticados pelos contribuintes com o propósito de simplesmente economizar tributos.
Eis os artigos 13 e 14 da Medida Provisória n° 66/2002, que não foram convertidos em lei:
Art. 13. Os atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador de tributo ou a natureza dos elementos constitutivos de obrigação tributária serão desconsiderados, para fins tributários, pela autoridade administrativa competente, observados os procedimentos estabelecidos nos arts. 14 a 19 subsequentes.
Parágrafo único. O disposto neste artigo não inclui atos e negócios jurídicos em que se verificar a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.
Art. 14. São passiveis de desconsideração os atos ou negócios jurídicos que visem a reduzir o valor do tributo, a evitar ou a postergar seu pagamento ou a ocultar os verdadeiros aspectos do fato gerador ou a real natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária.
§ 1° Para a desconsideração de ato ou negócio jurídico dever-se-á levar em conta, entre outras, a ocorrência de:
I – falta de propósito negocial; ou
II – abuso de forma.
§ 2° Considera-se indicativo de falta de propósito negocial a opção pela forma mais complexa ou mais onerosa, para os envolvidos, entre duas ou mais formas para a prática de determinado ato.
§ 3° Para efeito do disposto no inciso II do § 1°, considera-se abuso de forma jurídica a prática de ato ou negócio jurídico indireto que produza o mesmo resultado econômico do ato ou negócio jurídico dissimulado.
O Poder Executivo tentou alcançar a tributação dos atos e negócios jurídicos pelo propósito negocial - business purpose test. Desse modo, os atos e negócios jurídicos seriam tributados pelos efeitos econômicos que fossem produzidos, sendo irrelevante a forma do negócio.
Com esse entendimento, se o agente praticasse um ato ou negócio jurídico meramente com o interesse de reduzir a carga tributária de seus negócios (sem propósito negocial), o Fisco poderia tributar as atividades praticadas com normalidade.
Os dispositivos editados pelo Poder Executivo merecem severas críticas, na medida em que tal matéria somente poderia ter sido tratada por meio de lei complementar, ex vi do disposto no artigo 146 da Constituição da República Federativa do Brasil.
Bem assim, o parágrafo único do artigo 13 da Medida Provisória n° 66/2002 inseriu no ordenamento jurídico a possibilidade de simulação sem dolo, fraude ou má-fé, em total afronta ao princípio da legalidade tributária.
5.6 Desconsideração da personalidade jurídica e serviços de natureza intelectual prestados por pessoas jurídicas
Insta registrar que a constituição de pessoas jurídicas para a prestação de serviços intelectuais encontra respaldo constitucional, especificamente nos incisos XIII e XVII artigo 5°, que trazem, respectivamente, o livre exercício profissional e a liberdade de associação.
Nada impede que o contribuinte constitua uma pessoa jurídica com a pretensão de limitar a responsabilidade a uma parte de seu capital, separando o patrimônio da pessoa jurídica e o da pessoa física.
No que concerne à regra-matriz de incidência tributária, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica encontra morada no critério pessoal (consequente), cujo objetivo é identificar o sujeito passivo da obrigação tributária.
A aplicação do artigo 50 do Código Civil aos problemas tributários apresenta bastante celeuma na doutrina.
O artigo 50 do Código Civil de 2002 tratou da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
O artigo 146, inciso III, b, da Carta Constitucional, reserva à lei complementar a possibilidade de estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, mormente sobre obrigação tributária.
Como se sabe, o sujeito ativo e o sujeito passivo compõem a obrigação tributária, cabendo, então, à lei complementar a matéria referente à desconsideração da personalidade jurídica, de modo que deve ser afastada a aplicação do artigo 50 do Código Civil, sob pena de violação da reserva de lei complementar.
Em relação à aplicação do artigo 50 do Código Civil, Alberto Xavier, na obra Prestação de Serviços Intelectuais por Pessoas Jurídicas - Aspectos Legais, Econômicos e Tributários, assim se pronunciou:
Em primeiro lugar, porque não pode alegar-se desvio de finalidade quanto a uma pessoa jurídica que exerce regularmente o seu objeto social consistente na exploração dos direitos patrimoniais decorrentes de atividades profissionais não empresariais ou da cessão do direito ao uso de certos direitos autorais, tais como imagem, nome, marca ou som de voz.
Em segundo lugar, também não se pode alegar confusão patrimonial, eis que se encontram claramente delimitadas as fronteiras que separam o patrimônio da pessoa jurídica do patrimônio das pessoas físicas, fronteiras essas traçadas por uma escrituração regular.
Em terceiro e último lugar, porque, nas hipóteses do artigo 50 do Código Civil, a desconsideração da personalidade jurídica é um efeito decorrente de uma decisão judicial a requerimento da parte ou do Ministério Público, não se admitindo que tal efeito possa ser atribuído a simples ato administrativo unilateral da administração tributária, como é o lançamento. [34]
Em questões tributárias devem ser observadas a regras estabelecidas no Código Tributário Nacional sobre responsabilidade tributária, dispensando-se a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica prevista no Código Civil.
Deve-se distinguir a desconsideração da personalidade jurídica das hipóteses elencadas no artigo 135 do Código Tributário Nacional, que prevê a responsabilidade pessoal em casos de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto.
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região diferenciou a desconsideração da personalidade jurídica das hipóteses previstas no artigo 135 do Código Tributário Nacional de forma bastante explicativa:
TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. RESPONSABILIDADE.
1.Existem duas hipóteses nas quais podemos observar a participação dos sócios no pólo passivo da execução fiscal. Na primeira hipótese, a execução fiscal é ajuizada diretamente em face da pessoa jurídica e do sócio-gerente, que consta da CDA. Dada a presunção de veracidade que possui esse título executivo, o ônus da prova compete ao executado, que deverá demonstrar a ausência dos requisitos do art. 135, do CTN. Na segunda, a execução fiscal que, originalmente, fora ajuizada somente em face da pessoa jurídica, é redirecionada contra o sócio, que não consta da CDA. Nesse caso, cabe ao exequente provar a ocorrência de algum motivo que leve à desconsideração da personalidade jurídica da executada ou a prática de atos pelo sócio com excesso de poderes ou infração da lei, contrato social ou estatuto (art. 135, do CTN), a fim de que possa autorizar o redirecionamento em face de pessoa que não consta no título executivo.
2.A hipótese dos autos é de redirecionamento, e a exequente não comprovou a ocorrência de qualquer motivo que leve à desconsideração da personalidade jurídica da executada ou a prática de atos pelo sócio com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto (art. 135, do CTN), sendo certo que a mera ausência de recolhimento do tributo não caracteriza, de pronto, sua responsabilidade.
3.Apelação provida. [35]
Com essas considerações acerca da desconsideração da personalidade jurídica e superado o princípio de reserva de lei complementar apenas hipoteticamente, urge focar nas possibilidades de aplicação do instituto para as pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais.
Consoante o artigo 966, parágrafo único, do Código Civil:
Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, artística ou literária, ainda com concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Por conta desse dispositivo legal, as sociedades constituídas para a prestação de serviços intelectuais serão organizadas como sociedades simples. A personalidade jurídica desse tipo societário nasce com a inscrição, no Registro Civil das Pessoas Jurídicas do local de sua sede, do contrato social (artigos 985, 998 e 1.150 do Código Civil).
As sociedades simples podem adotar as seguintes formas societárias previstas no Código Civil: sociedade em nome coletivo, sociedade em comandita simples e sociedade limitada (artigos 1.039 a 1.092 do Código Civil).
Conforme a parte final do artigo 966, parágrafo único, do Código Civil, se o exercício da profissão intelectual (artística, científica ou literária) constituir elemento de empresa, o profissional será considerado empresário, não podendo se presumir que os artistas, jogadores, técnicos de futebol e apresentadores não são pessoas jurídicas para fins de tributação.
Com a aquisição de personalidade jurídica, malgrado a ausência de lei complementar regulamentando a matéria em Direito Tributário, paira grande celeuma na doutrina acerca da desconsideração da personalidade jurídica de pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais.
O eminente tributarista Ives Gandra da Silva Martins faz a seguinte colocação:
Muitos agentes fiscais têm pretendido desconsiderar pessoas jurídicas formadas por profissionais liberais que prestam serviços a empresas, sob a alegação de que essa modalidade de conformação social não agrada ao fisco por gerar menos tributos que os que incidiriam no caso de os serviços serem prestados pela pessoa física.
É como se, ao parágrafo único do artigo 170, que assegura a liberdade de associação, ao dispor:
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Fosse acrescentada a seguinte frase:
[...] e desde que qualquer agente fiscal não se oponha a sua formação.
[...]
Como é possível que funcionários subalternos da administração fazendária possam criar, para hipótese rigorosamente idêntica àquela que está sendo discutida no congresso, sua própria solução legislativa, sem a participação do parlamento, tributando como pessoa física sociedade que o fisco e o congresso entendem que é empresa, com regime jurídico e tributação pertinente à pessoa jurídica. [36]
Com base nesse entendimento, a atividade de fiscalização desregrada deve ser afastada, pois o próprio artigo 149, inciso VII, do Código Tributário Nacional, determina que seja realizado lançamento de ofício pela autoridade administrativa competente em caso de dolo, fraude ou simulação do sujeito passivo ou de terceiro em benefício daquele.
5.7 Estudo do artigo 129 da Lei n° 11.196/05 em cotejo com casos concretos decididos pelo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda
O texto original do artigo 129 da Lei n° 11.196, de 21 de novembro de 2005, emanou da Medida Provisória n° 252/05, a famigerada MP do Bem, que não foi convertida em lei. Posteriormente, através da Medida Provisória n° 255/05, o texto originário foi convertido em lei.
Eis a redação do artigo 129 da Lei n° 11.196, de 21 de novembro de 2005:
Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil (grifos nossos).
Extrai-se da participação de Antonio Carlos Garcia de Souza e Rubem Perlingeiro, no livro Prestação de Serviços Intelectuais por Pessoas Jurídicas: Aspectos Legais, Econômicos e Tributários, que:
[...] não há base legal para se tributar na pessoa física a receita pertencente a pessoas jurídicas prestadoras de serviços profissionais; pelo contrário, é legal a constituição dessas sociedades e a sua tributação como pessoas jurídicas. [37]
O dispositivo legal em estudo é meramente interpretativo, devendo, por isso, ser aplicado a fatos pretéritos, ex vi do disposto no artigo 106, inciso I, do Código Tributário Nacional. [38]
A justificativa de inserção do artigo 129 do ordenamento jurídico pátrio foi a seguinte:
Os princípios de valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no art. 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da Administração e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo controvérsias sobre a matéria. [39]
Antes da vigência do artigo 129, a 6ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes julgou o caso da empresa L. F. Promoções, Serviços e Representações Ltda, de propriedade de Luiz Felipe Scolari, que foi contratada pela Sociedade Esportiva Palmeiras, tendo como objeto contratual a prestação de serviços de treinamento da equipe profissional de futebol e supervisão de equipes amadoras.
Merecem destaques alguns trechos da decisão da 6ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes:
- entendo que o trabalho prestado pelo contribuinte foi exercido de forma individual e personalíssima, é um direito personalíssimo, pois qualquer outro sócio, ou funcionário empregado de sua empresa, mesmo que não houvesse vedação contratual estipulada com a Sociedade Esportiva PALMEIRAS, não poderia exercer, ou não desempenharia com a mesma "perfomance", requerida pela SEP;
- CTN, em seu art. 116, parágrafo único, autoriza a autoridade autuante a desconsiderar atos ou negócios jurídicos com a finalidade de dissimular a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, tal como sujeição passiva, ou mesmo a ocorrência do fato gerador do tributo;
- também fundamentado no parágrafo único do art. 116 e no art. 123, entendemos que os técnicos de futebol, cujos serviços são prestados de forma pessoal e individual, terão seus rendimentos tributados na pessoa física;
[...]
- houve uma ação conjunta entre a Sociedade Esportiva Palmeiras e o contribuinte com o intuito de modificar as características essenciais do fato gerador da obrigação tributária, deslocando para a pessoa jurídica interposta como beneficiária de um rendimento que é um direito personalíssimo [...]
[...]
A acusação que dá azo à tributação e à aplicação da multa qualificada é de simulação. A fiscalização desconsiderou o contrato de prestação de serviços mantido entre a Sociedade Esportiva Palmeiras e a L. F. Promoções, Serviços e Representações Ltda, empresa da qual o Recorrente é sócio majoritário, por entender que a avença tinha caráter personalíssimo e, desta forma, deveria ter sido formalizada com o Recorrente – pessoa física – e não com a pessoa jurídica da qual é sócio, já que nesta modalidade redundou na redução da carga tributária (grifamos). [40]
Em que pese o entendimento firmado pelo Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, ousamos discordar do julgado em comento, haja vista que não há falar em prática de simulação (evasão fiscal), mas, sim, em elisão fiscal, que deve ser enxergada como uma forma lícita de organização tributária.
Deve-se considerar que a empresa L. F. Promoções, Serviços e Representações Ltda não surgiu somente para contratar com a Sociedade Palmeiras Ltda e, ainda, a pessoa jurídica tinha outros objetos sociais, não visando apenas a prestação de serviços profissionais esportivos.
Além disso, os serviços de treinamento profissional esportivo não eram prestados somente pelo técnico de futebol, fazendo-se necessária a disponibilidade de uma equipe de profissionais para auxiliar de forma efetiva a organização das atividades. Assim sendo, não há falar em prestação de serviços em caráter personalíssimo e, por conseguinte, em simulação ou abuso de forma, revelando o caso estudado um nítido exemplo de planejamento tributário praticado de acordo com o ordenamento jurídico pátrio.
Todo tipo de prestação de serviços demanda a presença de pessoas físicas, sendo a pessoa jurídica uma ficção apta a contrair direitos e obrigações.
O Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa, Alberto Xavier, expõe com clareza:
Com efeito, em uma sociedade de advogados, de médicos ou de arquitetos, é inimaginável que seja a pessoa jurídica, uma simples ficção do espírito, a redigir uma petição, a realizar uma consulta ou cirurgia ou a desenhar um projeto. O mesmo se diga das pessoas jurídicas constituídas por apresentadores de televisão, treinadores de futebol, jornalistas, etc., em que também é impensável que a prestação de serviços seja realizada por uma entidade puramente abstrata, sem corpo e sem alma, que é uma pessoa jurídica.
[...]
Se fosse considerado que o caráter pessoal (ou mesmo personalíssimo) da prestação de serviços é que não pode constituir objeto de pessoas jurídicas, cair-se-ia no absurdo de recusar a existência de toda e qualquer sociedade de prestação de serviço, absurdo esse rejeitado pela realidade do mundo contemporâneo.
[...]
Ora, se tais direitos patrimoniais foram legitimamente atribuídos à pessoa jurídica, pelo mecanismo facultado por lei que é a sociedade simples, não pode o fisco pretender um deslocamento dos rendimentos da pessoa jurídica para a pessoa física, sem que se invoque um fundamento específico de nulidade do ato ou contrato que deu origem à constituição da pessoa jurídica ou do ato ou contrato que esta celebrar com a entidade pagadora das remunerações. [41]
Como dito acima, o julgado da 6ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes foi proferido antes da vigência do artigo 129 da Lei n° 11.196/05. Entretanto, mesmo após a edição do aludido dispositivo legal em prol da segurança jurídica do contribuinte, o Fisco continuou com posturas arbitrárias. Dessa vez a decisão emanou da 4ª Câmara do Primeiro Conselho de Contribuintes, que julgou lançamento lavrado contra o jogador Donizete Francisco de Oliveira:
Não há dúvidas, que o artigo 129 foi editado para resolver problemas relacionados à tributação dos rendimentos produzidos em decorrência da prestação de serviços de natureza pessoal, oferecido ao mercado por intermédio de uma sociedade com personalidade jurídica ("empresas unipessoais"). Entretanto, no caso em discussão, o crédito tributário constituído, além de não ter origem em "empresas unipessoais", se reporta a fato gerador ocorrido antes da vigência da mencionada lei, razão pela qual se faz necessária a verificação se o referido dispositivo legal faz inovação ou criação de regime jurídico novo, ou apenas expressa entendimento sobre legislação já existente, ou seja, é esta norma meramente interpretativa?
[...]
É nítido que o referido artigo inovou no ordenamento jurídico, pois até então a legislação tributária acerca do imposto de renda nunca deixou dúvidas que rendimentos provenientes dos serviços individualmente prestados por um artista, ou seja, serviço personalíssimo, seria tributado na pessoa física prestadora do serviço, mesmo que os serviços fossem contratados e ajustados por meio de uma pessoa jurídica, pois se verifica que, na realidade, o que foi contratado foi um serviço individual.
Tenho para mim, que a referida norma tem por objetivo maior esclarecer e orientar os agentes da administração pública para que, no exercício de suas funções, não desconsiderem a personalidade jurídica de sociedades legalmente constituídas para prestação de serviços intelectuais, com a finalidade de tributar os sócios.
Assim, as empresas legalmente constituídas para a prestação de serviços intelectuais (sociedades de engenheiros, arquitetos, advogados, médicos etc.) não podem ser descaracterizadas pelos agentes fiscais ao argumento de que o serviço prestado pelos profissionais aos seus contratantes seria regido pelas normas da CLT, com todos os reflexos trabalhistas e tributários daí decorrentes. [42]
Ao apreciar o caso de Carlos Roberto Massa, sócio da empresa Massa & Massa Ltda, não foi discrepante a decisão firmada pelo Primeiro Conselho de Contribuintes da Quarta Câmara:
APRESENTADOR/ANIMADOR DE PROGRAMAS DE RÁDIO E TELEVISÃO - SUJEITO PASSIVO DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA – São tributáveis os rendimentos do trabalho ou de prestação individual de serviços, com ou sem vínculo empregatício, independendo a tributação da denominação dos rendimentos, da condição jurídica da fonte e da forma de percepção das rendas, bastando, para a incidência do imposto, o benefício do contribuinte por qualquer forma e a qualquer título. Salvo disposições de lei em contrário, as convenções particulares, relativas à responsabilidade pelo pagamento de tributos, não podem ser opostas à Fazenda Pública, para modificar a definição legal do sujeito passivo das obrigações tributárias correspondentes. Desta forma, os apresentadores e animadores de programas de rádio e televisão, cujos serviços são prestados de forma pessoal, terão seus rendimentos tributados na pessoa física, sendo irrelevante a existência de registro de pessoa jurídica para tratar dos seus interesses.
APLICAÇÃO DE LEI SUPERVENIENTE AO FATO GERADOR - AUSÊNCIA DE CARÁTER INTERPRETATIVO - Inaplicável o art. 129 da Lei n°. 11.196, de 2005, a fatos geradores pretéritos, uma vez que dito dispositivo legal não possui natureza interpretativa, mas sim instituiu um novo regime de tributação. [43]
Como a constituição do crédito tributário derivou de fatos jurídicos tributários ocorridos antes da edição do artigo 129 da Lei n° 11.196/05, o Conselho de Contribuintes houve por bem entender que o aludido dispositivo legal não deve ser aplicado a fatos passados, posto que fora criado para fins de tributação como pessoa jurídica das empresas unipessoais.
Ocorre que a própria justificação do artigo 129 da Lei n° 11.196/05 declarou patentemente o caráter interpretativo da referida norma, devendo alcançar fatos jurígenos ocorridos antes de sua vigência. Este é apenas um dos motivos que denota a equivocidade do órgão julgador nos casos mencionados.
Diante dos julgados comentados, é possível perceber que o Fisco simplesmente vem ignorando o artigo 129 da Lei n° 11.196/05, deixando de aplicá-lo a fatos jurídicos ocorridos antes e depois de sua vigência.
Bastante impressionado com a postura dos agentes fiscais e dos órgãos administrativos, Ives Gandra da Silva Martins assevera que:
Preocupa-se muito, nos tempos atuais, essa contínua negação de justiça tributária, por parte do governo, e essa insistência de agir como se o art. 129 da Lei 11.196/05 não existisse, como se fosse "letra morta", como se fosse essa norma que necessitasse regulamentação, e não a Lei Complementar 104/01.
Infelizmente, a justiça tributária perde terreno, de mais em mais, para a desperdiçada política de mera arrecadação. [44]
Para ratificar e fortalecer o artigo 129 da Lei n° 11.196/05, foi introduzida a Emenda 3 no projeto de lei que instituiu a Receita Federal do Brasil - Lei n° 11.457, de 16 de março de 2007. A aludida Emenda 3 impedia o Fisco de autuar, de plano, as pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais, quando entendesse que a relação entre as empresas fosse uma relação de trabalho.
A Emenda 3, vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, remetia ao Poder Judiciário, enquanto não regulamentado o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional por lei ordinária, a decisão sobre a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que implicassem reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo laboral.
Em total consonância com os princípios da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano (artigo 170 da Carta Republicana), o artigo 129 da Lei n° 11.196/05 visou proteger as pessoas jurídicas prestadoras de serviços intelectuais da postura arbitrária e abusiva dos agentes fiscais, impedindo, inclusive, o deslocamento de rendimentos da pessoa jurídica para a pessoa física.
Em conclusão, não é difícil perceber que a norma em estudo veio a lume para fazer valer os princípios constitucionais estudados anteriormente, quais sejam: livre iniciativa, autonomia privada e livre concorrência.
Nesse rumo Meigan Sack Rodrigues e Edison Pereira Rodrigues observam que:
A liberdade de contratar e a boa-fé no estabelecimento de relações contratuais que envolvem a prestação de serviço, como em qualquer relação jurídica, são princípios básicos, que não podem ser desconsiderados (presunção) sem motivos relevantes e sem a participação do Poder Judiciário, tanto mais porque a Constituição Federal estabelece que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa (CF, artigo 170). [45]
Por derradeiro, o contribuinte brasileiro não pode ser forçado a optar pela forma de tributação mais onerosa, podendo se valer de artifícios legais (elisão fiscal) para exercer suas atividades com menor carga tributária. Dessa maneira, não provada a existência de dissimulação ou qualquer outro ato fraudulento, a pessoa jurídica formada para a prestação de serviços intelectuais deve permanecer incólume e ser tributada como tal.