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A não renovação do contrato de seguro de vida

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01/07/2011 às 17:29
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4. A INTERPRETAÇÃO DOS SEGURADOS

A alegação dos consumidores-segurados, com a qual concordamos inteiramente, como já dito, é de que não pode a seguradora, após décadas de renovações contratuais sucessivas, dizer que o contrato não mais lhe convém e rescindi-lo.

De fato, a liberdade de contratar deve ser exercida nas razões e no limite da função social do contrato.

Assim sendo, em contratos de trato sucessivo, principalmente os contratos de massa, é de se esperar a renovação. As companhias seguradoras criam no segurado a legítima expectativa de que, sendo pago o prêmio, quando ocorrer o inevitável sinistro (nos casos de seguro de vida), a família do segurado estará protegida. É a essência do contrato de seguro de vida.

Argumentam as seguradoras que cumpriram sua obrigação, já que, durante toda a vigência do contrato, os segurados estavam protegidos, pois sua obrigação contratual é a garantia de que, havendo o sinistro, pagará a indenização; não havendo o sinistro, naquele período, não haveria indenização.

Em comparação, mencionam o contrato de seguro de automóvel. Nele, não ocorrendo nenhum imprevisto com o veículo, findo o contrato, não há que se falar em indenização.

Contudo, acreditamos que o seguro de vida não pode ser comparado com o seguro de dano, em razão do interesse garantido naquele tipo de contrato, ou seja, a vida do segurado.

O segurado espera a contínua renovação do contrato porque foi isso que a seguradora o fez crer. E é por esse produto que ele paga o prêmio mensalmente, ou seja, a seguradora captou muitos consumidores com a segurança da sucessiva renovação e com isso, certamente, auferiu lucro.

A professora Cláudia Lima Marques chama esse fenômeno de "catividade", dizendo que ele ocorre principalmente em contratos de massa, onde empresas inspiram uma garantia ao consumidor, que acaba por depositar sua confiança em determinada empresa.

Em relação ao contrato cativo de longa duração, a renomada doutrinadora esclarece que:

[Essas empresas prestam] serviços que prometem segurança e qualidade, serviços cuja prestação se protrai no tempo, de trato sucessivo, com uma fase de execução contratual longa e descontínua, de fazer e não-fazer, de informar e não prejudicar, de prometer e cumprir, de manter sempre o vínculo contratual e o usuário cativo. [...] Estes contratos baseiam-se mais na confiança, no convívio reiterado, na manutenção do potencial econômico e da qualidade dos serviços, pois trazem implícita a expectativa de mudanças das condições sociais, econômicas e legais na sociedade nestes vários anos de relação contratual. A satisfação da finalidade perseguida pelo consumidor (por exemplo, futura assistência médica para si e sua família) depende da continuação da relação jurídica fonte de obrigações. A capacidade de adaptação, de cooperação entre os contratantes, de continuação da relação contratual é aqui essencial, básica. [16]

Nesses contratos devem ser obedecidos os princípios de boa-fé, lealdade e a função social dos contratos [17], e deve-se considerar, principalmente, a previsibilidade do conteúdo da prestação, cuja adequação e eficácia devem permanecer inalteradas ao longo do tempo.

Importante ater-se ao fato de que era previsível e inevitável que o grupo de segurados de determinada apólice envelhecesse e ocorresse mais sinistros, se a seguradora deixa de oferecer esse tipo de apólice no mercado.

As companhias seguradoras deveriam ter elaborado um contrato estruturado sobre um regime financeiro apto a formar um fundo de reserva suficiente para suportar a carteira de seguros antes de ofertá-lo no mercado.

Não é possível que, após anos de renovação, as empresas aleguem que o valor atual dos prêmios pagos pelos segurados torna inviável a manutenção do contrato.

Em substancioso voto proferido em embargos infringentes, o Desembargador Paulo Sérgio Scarparo, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, afirma que:

Em face dessas circunstâncias, afigura-se inadmissível a escusa apresentada pela seguradora de que o prêmio cobrado do segurado é muito baixo para a garantia do risco. [...] Ao perceber a sua redução de margem de lucro em razão do envelhecimento de seu cliente, agora simplesmente se recusa a renovar o contrato do consumidor idoso, que certamente encontrará dificuldades insuperáveis para contratar um seguro similar com outra companhia. [...] Como admitir uma prática comercial que desampara alguns dos consumidores mais vulneráveis da ré em homenagem à liberdade contratual? [18]

Como já dissemos, a liberdade contratual é exercida em razão e nos limites da função social do contrato. É fundamento do Direito a liberdade contratual; todavia, o interesse social prevalece sobre o interesse individual.

Sobre o tema, citamos o excelente estudo de Luiz Renato Ferreira da Silva:

a moderna noção de autonomia privada se insere dentro de um quadro onde os fins condicionam os meios. Supera-se a mera noção de poder individual para que se dê lugar a uma visão de poder-função, voltada para uma sociedade massificada onde o indivíduo perde como tal, mas ganha como membro da comunidade. Desvincula-se cada vez mais a solução dos problemas do domínio do dogma da vontade e aprende-se a tratá-los como conflitos de valores entre a tutela do indivíduo e a proteção do tráfico jurídico. [19]

Dessa forma, não é mais contrário ao direito individual de liberdade o fato de impor-se a contratação. O citado doutrinador diz a razão:

É que, em ambas as hipóteses, as normas constitucionais que visam a garantir a igualdade entre os cidadãos e a livre iniciativa como valor social, passam a ter incidência imediata. [...] Aqueles que exercem atividades de interesse comunitário (como por exemplo um dono de hotel), não podem deixar de contratar com quem os procure sem que para tanto haja um motivo significativo.

Apenas esse tipo de ‘intromissão’ no que era o amplo campo da autonomia privada pode ser eficiente para minorar os abusos e as pré-contratações feitas por vendas de máquinas, por contratos de adesão, por condições gerais dos negócios, etc. [20]

A justificativa das seguradoras para a não renovação do contrato de seguro de vida não é plausível. Como já dito, era previsível e inevitável a ocorrência de um maior número de sinistros, com o envelhecimento dos segurados de determinado tipo de apólice.

Não é possível, portanto, que as seguradoras argumentem que os valores dos prêmios estabelecidos por elas mesmas não eram suficientes e que os cálculos atuariais que deveriam prever o desequilíbrio da apólice, não o fizeram.

Como demonstrado fartamente neste estudo, a não renovação do contrato de seguro de vida estudado é uma conduta comercial desleal e abusiva, deixando desprotegida toda uma massa de segurados e beneficiários hipossuficientes contratualmente.

Da mesma forma que no tópico referente à interpretação das seguradoras, trazemos a seguir ementário que tem como objetivo demonstrar a grande divergência entre os Tribunais e entre suas próprias Câmaras internas, provando a grande celeuma que se encontra na legislação securitária.

Apelação Cível. Contrato de seguro de vida. Renovação da apólice. Nulidade de cláusula modificativa. Função social do contrato. Sentença de procedência. Prorrogação do ajuste. [...] Parcial procedência do apelo.

A liberdade de contratar tem limites na função social do contrato de seguro, caracterizado pela catividade, mostrando-se abusiva a interrupção deste, embasada em desajuste das despesas operacionais. Mantida sentença que declara a nulidade de cláusula contratual e determina a prorrogação do ajuste, nos termos originalmente pactuados. [...] [21]

Apelação cível. Seguros. Ação declaratória de nulidade de cláusula. Aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de seguro. É abusiva a cláusula contratual que prevê a possibilidade de cancelamento unilateral do contrato de seguro em caso de alteração da natureza dos riscos. O fato de a seguradora ter demonstrado seu prejuízo com a contratualidade não se mostra suficiente para configurar desequilíbrio, mas mera realização do risco assumido. Ou seja, não pode pretender a seguradora operar apenas com lucros ou denunciar o contrato em face da ocorrência do risco, pois isso está intrínseco na própria natureza e finalidade do contrato. Apelo provido. [22]

Apelação cível. Seguro de vida em grupo. Não renovação imotivada do contrato. Cláusula contratual abusiva.

1. É ônus da seguradora informar adequadamente os seus segurados a respeito das cláusulas que regem o contrato entabulado entre as partes. Não cumprida essa obrigação, os referidos dispositivos contratuais não obrigarão o consumidor. Inteligência do art. 46, do Código de Defesa do Consumidor. 2. Mostra-se abusiva, por contrária aos princípios da legislação consumerista, a cláusula que autoriza pura e simplesmente, à seguradora, a não renovar o contrato de seguro, imotivadamente, ao final de sua vigência. Ato que põe em risco a segurança das relações jurídicas. Apelo provido. [23]

Apelação cível. Ação ordinária. Contrato de seguro de vida. Não renovação. Imposição para readaptação à novas propostas. Impossibilidade.

A cláusula que faculta à Seguradora rescindir unilateralmente o contrato por meio de mera notificação é abusiva, ainda que igual direito seja conferido ao consumidor, pois estabelece vantagem excessiva à fornecedora, tendo em vista as peculiaridades do contrato de seguro. Tratando-se de contrato de adesão, que tem como escopo principal a continuidade no tempo, não há como se admitir a rescisão com o intuito de que o segurado contrate novo seguro, em condições mais onerosas. [24]

Seguro de vida

em grupo. - Ação de manutenção de seguro de vida - Renovação automática por longos trinta e oito anos - Ré que alega a existência de expressa previsão contratual possibilitando a não renovação da apólice quando findo o seu prazo de vigência - Desinteresse imotivado da seguradora na renovação automática do contrato - Abuso de direito engendrado pela seguradora, impondo o prevalecimento de exagerada desvantagem para os consumidores, incompatível com os princípios da boa-fé, da equidade e do equilíbrio que devem presidir as relações de consumo [...] Recurso parcialmente provido, apenas para reduzir a verba honorária. [25]

5. A ATUAÇÃO DOS ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

A atitude de diversas companhias seguradoras em não renovar os contratos de seguro de vida (ou rescindi-los unilateralmente) provocou um grande dano aos consumidores-segurados, que, desta forma, buscaram auxílio do Poder Judiciário promovendo milhares de ações judiciais.

Além disso, alguns órgãos de proteção ao consumidor ajuizaram ações de âmbito coletivo, com objetivo de garantir aos segurados a continuidade dos contratos de seguro.

Dentre esses órgãos, destacamos a atuação dos Ministérios Públicos Estaduais, do Instituto de Defesa do Consumidor (IDEC), e de PROCONs.

As ações foram ajuizadas, principalmente, em face da Companhia de Seguros Aliança do Brasil, da Sul América Seguros e da Itaú Seguros, entre outras seguradoras, além da SUSEP.


CONCLUSÃO

A liberdade de contratar e a autonomia da vontade são princípios embasadores do Direito moderno e, consequentemente, da legislação contratual brasileira.

Todavia, não é diferente com os princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato, bem como da relação de hipossuficiência dos consumidores perante as empresas.

Tentamos demonstrar que o contrato de seguro de vida é contrato de massa, típico de adesão, e que é regido, além do Código Civil e de normas da entidade autárquica responsável pelo mercado (a SUSEP), pelo Código de Defesa do Consumidor.

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Apesar de todos os princípios mencionados fazerem parte da relação contratual entre as companhias seguradoras e os consumidores-segurados, devido à importância econômico-social do contrato de seguro de vida, os princípios da boa-fé e da função social do contrato devem prevalecer, limitar a autonomia da vontade e a liberdade contratual.

O que é totalmente estranho a um contrato de compra e venda mercantil, por exemplo, não o é para o contrato de seguro em geral, mormente o da modalidade vida, pois se trata aqui de uma imensa diferença de forças entre contratante e contratado.

Não se pode, assim, tolerar o cruel mecanismo de rescisão contratual praticado pelas companhias seguradoras e permitido pela SUSEP. Como pode um contrato de seguro de vida renovado há décadas ser simplesmente rescindido, quando o consumidor-segurado conta com mais de oitenta anos de idade, ou seja, quando necessita verdadeiramente proteger sua família?

Conforme ambicionamos demonstrar, a SUSEP normatizou que bastaria a mera comunicação da seguradora ao consumidor de que não mais desejaria renovar o contrato de seguro de vida para que ele fosse rescindido em seu próximo aniversário. Tal prática não é digna de quem se diz defensora dos direitos dos segurados.

Não consideramos o mais importante, nesse estudo, a mera denominação (rescisão ou não renovação); nem o fato de haver ou não, no contrato, cláusula tal que previa a renovação automática ano após ano (da qual os consumidores não tinham conhecimento), ou que o direito de rescindir cabia igualmente aos consumidores.

O principal nesse estudo foi demonstrar que a expectativa, a confiança, a vontade do contratante de pagar e de receber pelo que foi pago, deixaram de ser correspondidas com a não renovação do contrato de seguro de vida.

Ora, contrata-se um seguro de vida por toda vida. Era isso que esperaram em vão milhares de consumidores, na sua grande maioria, idosos, que foram iludidos pelas maiores companhias seguradoras do país.

Queremos ressaltar que os prêmios pagos mensalmente pelos segurados não tiveram valor imutável no decorrer de todos os anos do contrato, mas foram periodicamente ajustados por índices determinados contratualmente pelas próprias companhias seguradoras.

Tanto é que todos os seguros de vida existentes hoje no mercado brasileiro têm cláusulas de reajuste por idade. Assim, o que esperam as seguradoras, é aplicarem aos contratos de ontem, as regras dos contratos de hoje, para compensar seus cálculos atuarias que estariam, dizem, defasados.

Dito de outra forma, quando todo o grupo segurado de determinada apólice era jovem (e os sinistros, baixíssimos), ocorria a mutualidade, ou seja, os prêmios de vários segurados jovens cobriam a indenização que seria paga por um sinistro de um segurado provavelmente idoso.

Anos depois, após as seguradoras descobrirem um contrato que lhes era mais viável (no caso, com reajuste por faixa etária), simplesmente deixaram de comercializar aquele tipo de apólice. Consequentemente ocorreu o envelhecimento do grupo segurado e, portanto, mais sinistros.

Agora, as seguradoras deixam de renovar todos os contratos e apresentam outros, com valores dos prêmios mais elevados e com reajuste por faixa etária.

Frise-se: os valores dos prêmios não permaneceram sempre os mesmos, mas foram reajustados pelos índices que as seguradoras mesmas estipularam.

O que foi defendido nesse estudo não é uma indenização imposta judicialmente, ou a devolução dos prêmios pagos aos segurados, mas apenas a renovação desses contratos nos mesmos moldes que previstos inicialmente.

É necessária a intervenção estatal no mercado securitário, tornando a SUSEP realmente um órgão que proteja os segurados.

E, principalmente, é necessária uma alteração na legislação securitária, para que cesse essa injustiça que já atingiu e continua atingindo milhares de consumidores-segurados já idosos que pagaram prêmios por anos a fio, e agora vêem seus contratos rescindidos e sua família completamente desamparada.

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Sobre o autor
Thiago Raddi Ribeiro Moreira

acadêmico do curso de Direito da Universidade Paulista - UNIP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Thiago Raddi Ribeiro. A não renovação do contrato de seguro de vida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2921, 1 jul. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19453. Acesso em: 18 abr. 2024.

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